Primeira parte da entrevista com a cineasta Thais Scabio.

Nossa entrevistada é a jovem ativista cultural, Cineasta da Quebrada: THAIS SCABIO.

Produtora executiva, diretora e roteirista, fundadora da Cavalo Marinho Audiovisual, junto com Gilberto Caetano, atuando à frente de projetos de promoção e produção audiovisual e cultural na região de Cidade Ademar e Pedreira, pelo Fórum de Cultura, pelo Coletivo Mascate Cineclube e Espaço Cultural JAMAC. Atua também no Movimento do Audiovisual Negro e Periférico sendo uma das fundadoras e membra da diretoria da APAN – Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro e é Gestora de Desenvolvimento de Negócios da plataforma Todesplay.

Expresso Periférico – Morando e sendo cria da periferia, enfrentando todas as dificuldades de acesso (cultura, arte, lazer) e parafraseando o verso dos Racionais “o mundo é diferente da ponte pra cá”, como nasce a cineasta, que ousa sonhar ser parte deste cenário raro para mulheres negras e periféricas?

Thais Scabio  – Às vezes eu brinco que em uma região como a nossa, Cidade Ademar e Pedreira, que não tem nenhum espaço de cultura, sou quase um milagre. Nascer uma cineasta num lugar desprovido de estímulos ou incentivos é bem difícil mesmo, é muito difícil, devo ser bem maluca (rsrsrs…). Desde criança sempre estive no meio da cultura: minha mãe me levava para São Bernardo, cidade do ABC e próxima do Jardim Miriam, para fazer teatro e sempre frequentei Diadema, cidade que faz divisa com o nosso bairro, um polo cultural, uma efervescência das artes. Enquanto Diadema tem o mesmo número de habitantes da nossa região e conta com 11 equipamentos de cultura, aqui não contamos com nenhum. A cidade de Diadema colaborou muito com minha formação: me deslocava da Cidade Júlia e ia para Diadema participar de atividades culturais. No Centro Afro-Brasileiro do Centro Cultural do Jabaquara, despertei para minha identidade de mulher negra, conheci o mestre Caranguejo e iniciei minha formação, debatendo questões raciais e dando os primeiros passos para a realização do sonho ousado de ser cineasta. Sempre gostei de filmes, íamos para a casa da minha bisavó sentar e ouvir ela contar sobre filmes, adorávamos esses momentos. Na minha casa com a presença da mãe “arteira” – ela gosta de artes plásticas que não é minha “praia” (rsrsrs…) – ela influenciou esse meu sonho e o apoio da família, a liberdade que nos deram de escolher nossos caminhos, a oportunidade de transitar e frequentar os espaços de cultura, foram incentivos para continuar minha escolha.

Passei a adolescência nos Centros de Cultura do Jabaquara e Vergueiro e com 14/15 anos passava por debaixo das catracas de ônibus (rsrsr…) para me locomover. Também ia até o Brás no Centro Cultural Mazzaropi fazer circo. Em 2003 me formei na Faculdade de Rádio e TV na UNISA, porque Cinema só tinha na FAAP e na USP e eu não tinha condições, vinda de um processo de seleção do Educafro, classificada entre os 10 primeiros para uma bolsa de estudos, abracei a oportunidade e a contrapartida era trabalhar gratuitamente na faculdade durante o dia e estudar à noite. Para ter algum dinheiro e continuar estudando, nos finais de semana fazia alguns “bicos”. Lembro que um pessoal que se formou comigo e morava em Moema, no último ano de faculdade, o pai de um deles montou produtora com programa garantido na TV Cultura e nós nem tínhamos equipamentos. Meu primeiro contato com audiovisual foi em Diadema, nas oficinas de 1999 e depois criamos o “Núcleo de Cinema e Vídeo Com Olhar”. Produzimos muito com equipamentos emprestados e com apoio da prefeitura na época. São oportunidades diferentes, as diferenças sociais que nos acompanham sempre. Isso não impediu nosso trabalho e formação ou diminuiu nossa capacidade em relação aos outros, mas se não fosse a diferença social dentro do audiovisual talvez, nesta época, já tivesse feito meu longa metragem, por exemplo. Acabei sendo reconhecida tardiamente por falta de recurso mesmo. Mas a produtora montada na faculdade fechou e a minha está aí firme e forte.

Expresso Periférico – Quais são os maiores enfrentamentos da cineasta, produtora, roteirista e agitadora cultural para atravessar esse mundo, ainda com forte presença da camada privilegiada da sociedade, branca e rica?

Thais Scabio – A profissão que eu escolhi não era a princípio para nós, mulheres negras e homens negros periféricos. Para me declarar cineasta, foi um trabalho de identidade para me colocar numa profissão que a sociedade nunca te apresentou como possível. O cinema, o audiovisual, no Brasil tem seu formato digital nos anos 90 e, se tornando um meio digital, democratizou e permitiu o acesso de pessoas como eu e outras de várias regiões, como do Capão, Paraisópolis, Cidade Tiradentes, entre outros locais. Todos começamos na mesma época e para me ver como cineasta foi bem complicado. Na mídia diziam que fazíamos vídeo, vídeo makers e aí quando você via o pessoal da faculdade, que estava fazendo a mesma coisa e usando os mesmos equipamentos, porém, para eles era cinema digital. Então, quando criamos no JAMAC o Cinema Digital, foi uma provocação e uma resposta: na periferia fazíamos sim,” cinema digital”. Isso foi em 2009 e foi muito importante para me reconhecer como mulher cineasta nessa sociedade. Quando nós começamos, eu e o Giba, meu primeiro filme foi em 2003, nós éramos os únicos negros nos festivais, era muito estranho e foi uma quebra de barreira muito importante, inclusive para a região.

Montamos a Cavalo Marinho Audiovisual, em 2005, na sala da minha casa na Cidade Júlia. Só tínhamos um computador que compramos usado. Tivemos que enfrentar diversos preconceitos. Teve um cliente que perguntou para um amigo nosso se éramos bons mesmo, só depois que ele foi na minha casa. Provamos que éramos e trabalhamos muitas vezes com ele.  Cansei de ter que ficar provando que entendia sobre audiovisual, só porque somos da periferia. Acontece até hoje.

Nas próximas edições Thais Scabio nos conta da sua formação como cineasta!

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Escrito por Evinha Eugênia

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