Batuque na Cozinha – Cheiros e Aromas do Brasil para a América Latina, assim chegamos, mulheres metidas e ousadas, com nossas ervas, com a possibilidade de amar com pele, com cheiro, sabor, saberes e liberdade.

Encantamos, enfeitamos, nos juntamos em roda, ciranda e dançamos o afeto que ecoa essas vozes de mulheres que resistem, insistem e acreditam nesse movimento visceral de seus corpos. Corpos políticos, transgressores, que desafiam com muito afeto e beleza o que foi posto para nós.

Assim, a  Coletiva de Mulheres, em plena pandemia, marca esse encontro que reúne mulheres diversas, plurais que tem atuação em frentes de luta de movimentos sociais em defesa por direitos da população do território, para exercitar uma escrita dirigida às nossas no Expresso Periférico.

Como passarinhas voamos, e nosso voo trouxe em suas asas o desejo de que todas ocupem e tenham seu lugar de protagonistas de suas vidas, de suas histórias, de suas lutas.

Vimos a possibilidade de trazer nossas cozinhas, esse lugar sagrado, de inspiração, de sobrevivência, de aconchego, de resistência, de reuniões e partilhas. Um lugar onde não somos órfãs,  esparramando cheiros e sonhos de mesa farta para todas, todos e todes. Um lugar para dizer que ninguém vai nos silenciar, vamos nos acolher e juntas construir uma vida de respeito e dignidade.

Fizemos barulho e colocamos o caldeirão para ferver no 8 de março e no 6º Encontro Literário #CaiuNaRedeÉCultura de 2021, não falta mulher no território para meter a colher nesse caldeirão.

“A minha cozinha não me CALA

Ela me ocupa

Me transforma

Me provoca e,

Alimenta todas as minhas loucuras

Em poucos instantes

Pode ser devorada, sem piedade

Por famintos que procuram saciar sua fome e prazer ou

Por sonhos que atravessam as frestas de suas janelas.

Ela salpica alegrias,

Apimenta os caminhos,

Escandaliza cheiros e

Move corpos numa dança frenética de desejos,

Carícias e toques.

Ela é confidente

Tem olhos e mãos para todos

É exílio para os excluídos

Que lá repousam a magia da mesa farta

Tem sempre um caldeirão de tampa aberta

Para aquecer as idéias e temperar os ingredientes

Em fuga

Todos chegam na cozinha

Para aquecer o estômago

ou

Acender a fogueira

Para roubar um queijo

ou

Um beijo

Ao pé do fogão

Fazemos planos

Contamos segredos

Perdemos a vergonha e nos

Despimos em versos

Diante do estalar da lenha em brasa.

Da minha cozinha eu vejo o mundo

Mesmo que meus olhos estejam na panela cobertos pela névoa do seu vapor.

Por lá passam senhoras e senhores dando suas ordens, crianças pulando de alegria e surrupiando colheradas de doces, donzelas seduzindo com lambidas em seus longos dedos

Todos dela se socorrem para seus encontros íntimos.

A minha cozinha é um bom esconderijo

Tem gente que lá não põe o pé

Tem medo do cheiro do seu rapé

Das escutas e delírios que rondam sua dona.

A minha cozinha é meu quilombo, minha comunidade, minha festa, minha inspiração, minha praça da liberdade.

Bendita cozinha

Que é minha ouvinte,

E eu sua escuta

Que me deixa mansa e feroz

E Nunca calada!”

Evinha Eugênia

Nesta edição vamos contar para os nossos leitores a emoção da Coletiva de Mulheres no primeiro encontro presencial com o 3º Batuque na Cozinha. Um encontro num espaço em que arte, forma, cores e panos (os panos são ancestrais) pintaram caminhos e histórias. Um encontro que trouxe o viver simples e curativo das ervas e temperos, das histórias em roda, do respeito aos saberes dos povos originários, por vezes menosprezados no resgate do passado e no pensamento de futuro. A beleza que é sentar em roda, ouvir casos, rodopiar olhares, laçar pedaços dessa enorme colcha de retalhos que é a vida, fazendo-a inteira para abrigar nossos sonhos.

Como a alegria e o nosso sorriso são nossas armas de luta, DJ Carlu trouxe o tempero das mulheres na música, fazendo intervenções com nossas deusas que ecoam suas vozes, nos lembrando sempre que temos nosso lugar de canto, poesia e existência onde quer que nossos desejos alcancem. DJ Carlu reiterou que podemos estar e ser tudo o que desejamos, inclusive à frente das picapes (lugar até pouco tempo negado às mulheres) fazendo dessa arte, sim,  uma profissão.

Alê Ferraz e Marcelinha representaram o Sarau do Vinil, trazendo para a roda a urgência dos movimentos culturais para as periferias da cidade. A arte de se aquilombar num Bar da Vila Joaniza e elevar essas vozes, descortinando a vida em música e poesia, deixando que transborde dores, alegrias e lágrimas é deixar que toda nossa gente chegue para brilhar, afinal o amanhã tem que ser uma promessa de vida melhor.

A roda é viva e mulheres nela pulsam. Natália Cruz, uma das idealizadoras do projeto Deixa Ela Tocar (uma casa para acolher mulheres na arte) com oficinas de canto, instrumentos, dança, ocupações artísticas e muita provocação para despertar talentos femininos, colocou na roda ser fundamental o fortalecimento desses espaços e o empoderamento da população frequentadora dos eventos. Em atividade há mais de 1 ano, a casa fica na Cidade Ademar e já é ponto de referência para as arteiras do território.

E nessa roda de afetos não faltou a sabedoria da Iyá Sambaleci, uma mulher que coloca seus saberes ancestrais em busca de equilíbrio para um mundo adoecido. Resiste há quase quarenta anos com seu terreiro e nos contou como suas orientações espirituais, seus chás e ervas ajudaram a amenizar as doenças daqueles que lá buscavam refúgio para suas dores. Iyá Sambaleci nos alertou do compromisso que todos devem ter com o entorno, em especial nos momentos de fragilidade social em que nós, sociedade civil (independente de crença, raça) temos que atender esse chamamento de tantos desabrigados e abandonados pelo poder público.

O saguão do Sesc Santo Amaro foi ocupado com a imensa saia de chita de Loreta Façanha, nossa contadora de histórias. Formou-se uma roda gigante de ouvintes atentos a uma história que, infelizmente é real e traz a narrativa do abuso e violência sexual infantil (tema abordado nesta edição na coluna Nosso Lugar de Fala da Coletiva de Mulheres) e o chamamento para a campanha “Faça Bonito” no dia 18 de maio, data em que a pequena Araceli foi assassinada, com requintes de crueldade e violência. Fazer bonito é não deixar impune esses crimes, denunciar casos de violência ou abuso sexual e instruir nossas crianças de como se defender e não silenciar diante do abusador.

Como falar de Cheiros e Aromas do Brasil para a América Latina, sem trazer toda a nossa ancestralidade, a cultura e a herança da diáspora africana. Ermelinda Marçal, assistente social e arte educadora (oficineira de bonecas Abayomi) contou a história da boneca, que foi criada por mães africanas dentro dos navios negreiros para acalentar seus filhos. Arrancavam pedaços de suas saias e com amarrações, sem outros recursos, confeccionavam as bonecas.

A oficina foi um momento lúdico, reuniram-se adultos e crianças: cada um recebeu um envelopinho com pedaços de tecidos e numa grande família ancestral, entre amarrações e enfeites, criaram cada um sua boneca. Um momento de fortaleza de vínculos, de troca de afetos e acolhimento.

Mônica Nador, sentou na roda para nos envolver na compreensão das estampas, a arte dialogando com a vida, expressando emoções, retratando o cotidiano e provocando pensamento crítico. A arte é libertadora, impulsiona o desejo de encontro com uma beleza que não é estática, é mutante. Os muros das diferenças, os abismos das desigualdades e o encanto que atinge nossas retinas, estão atravessados em cada traço e cor de uma pintura que é blz (beleza) pura. Nosso território, desde 2004, através do coletivo JAMAC – Jardim Miriam Arte Clube, formado por Mônica e reunindo expressões artísticas da região, experimenta “esses encontros entre arte e vida, estética e política, valendo-se de práticas e oficinas de estêncil, serigrafia, yoga e cinema, que situam na intersecção de arte e formação para a cidadania, diversidade, memória e direito à cidade (Bruno O.)”.

Como diz o dito popular, “beleza pouca é bobagem”. Flor e Jana, nossas companheiras de sonhos e lutas da Coletiva de Mulheres, flutuaram na sala com um espetáculo de dança cigana, que não sabíamos, mas nos preparavam para uma experimentação coletiva de aceitação das nossas emoções, recebendo-as expressivamente nos movimentos de nossos corpos.

“Quando eu as vi dançar

Trocando olhares

O movimento fluido do amor que,

Acolhe, transborda nos olhares das meninas

Brincadeiras de rodar

Trocando olhares de cumplicidade e ternura

Sem medo de ser e estar no mundo

Trocando olhares me levanto,

Resplandeço

Exalando amor, dança das borboletas”

Marilene Gerônimo

E assim, rodeadas por camomilas, cidreiras, erva doce, alecrim, canela, louro, hortelã, manjericão, apimentando e exalando cheiros na grande ciranda e, ainda, embaladas pela emoção do encontro, reafirmamos nosso compromisso de caminhar juntas até que todas sejamos livres.

Saiba Mais

Sugestões de leituras:

O feminismo é para todo mundo – Bell Hooks
Pequeno Manual Antirracista – Djamila Ribeiro
(Des)Águas e Afluentes – Marli de Fátima Aguiar
Notas sobre a Fome – Helena Silvestre
Ideias para adiar o fim do mundo – Ailton Krenak

Imagens: Coletiva de Mulheres

Compartilhe:

Escrito por Coletiva de Mulheres

2 thoughts on “O encontro das belezas: ocupação Mônica Nador + JAMAC e Coletiva de Mulheres”
  1. […] A quinta história é da Florencia Castoldi, mulher cis lésbica argentina, a historia é contada enquanto um chimarrão é bebido, ela compartilhou conosco a relevância que tem esta migração entre tantas que ela já fez, se ressignificar dentro da dissidência e se realocar na periferia de uma grande urbe, que acrescenta à  sua vida, outras formas de existir, resistir em comum uniões, como a Coletiva de Mulheres do Expresso Periférico. […]

Deixe um comentário