Uma mulher que enfrentou os desafios para viver e cuidar da família

Alfabetização e trabalho na roça. Emprego em bancos e contatos com movimento sindical. Formação e entrada para a educação. Militância e participação em administração na área educacional da prefeitura.

A história individual existe porque existe a história coletiva em sociedade. E, no Brasil, esta saga está enraizada nas injustiças praticadas pelas elites, na formação econômica do país, onde as riquezas produzidas sempre foram controladas por poucos espertalhões e exportadas para os países ricos. Basta olharmos como ocorreram os ciclos produtivos – pau-brasil, cana de açúcar, borracha, ouro, café, algodão, pecuária, mineração – onde a classe trabalhadora produziu, mas foi alijada, excluída dos frutos produzidos pelo Brasil afora.

Como não houve investimentos em educação, saúde e geração de oportunidades nestas localidades, restou à população migrar para outros estados, lutando para viver ou sobreviver. É em consequência deste processo histórico que vamos trazer um pouco da história da nossa lutadora do povo brasileiro, que, no início dos anos 80, deixou sua terra, família, costumes, cultura e veio para São Paulo à procura de trabalho e oportunidade de estudar, viver e poder ajudar sua família que ficou lá no Nordeste. 

Uma menina de 15 anos
Da família precisou se apartar
Partiu para bem distante
Para trabalhar e estudar
Um pouco da sua história
Aqui vai nos relatar.

Meu nome é Cícera Batista, tenho 57 anos, nasci em Sertânia, interior de Pernambuco, e vim para São Paulo, com 15 anos, no início da década de 80. Num primeiro momento, morei com meu tio e sua família na Zona Leste. A vinda para cá, tinha como primeiro objetivo trabalhar para ajudar a sustentar a família, como todos os nordestinos o fazem ao virem para esta cidade. Minha mãe ficou viúva aos 28 anos de idade, com 3 filhas e 1 filho para criar, então, eu precisava trabalhar para contribuir na criação familiar.

Fui alfabetizada na área rural, onde tinha que caminhar 6 quilômetros da minha casa até a unidade escolar. Minha mãe, embora não dominasse a escrita e leitura, valorizava muito que pudéssemos estudar. Fazíamos o trabalho de plantio, colheita e cuidado dos animais, mas o tempo para estudo era preservado. Como onde moramos só tinha até o 4º ano primário, precisamos ir para uma cidade para fazer da 5ª à 8ª série, onde ficávamos durante a semana na casa da minha vó e no sábado e domingo retornávamos para a roça, no intuito de ajudar nos trabalhos.

Ao terminar a 8ª série, falei para minha mãe que queria vir para São Paulo para trabalhar e dar continuidade aos estudos, uma vez que lá não tinha essa possibilidade. Foi quando meu tio esteve nos visitando e vendo minha vontade de estudar, me trouxe para morar na casa dele com a sua família. Aí, comecei a fazer o ensino médio, onde tinha o professor Edson, de geografia, que nos convidava para ir nas manifestações de greve nas fábricas do ABC. Meu tio trabalhava na Mercedes Benz e trazia jornais da CUT (Central Única dos Trabalhadores). Foram assim meus primeiros contatos com movimentos sociais e o momento mais forte, que me deixou emocionada, foi quando fui numa assembleia em São Bernardo do Campo e conheci o Lula.

Teorizando a matemática
Logo entrou em ação
Participou de sete greves
Fazendo reivindicação
Logo sendo demitida
Foi para a área da educação.

Aos 17 anos, consegui um emprego no Unibanco, quando já tinha concluído o ensino médio. Esse labor me possibilitou pagar um cursinho preparatório de vestibular e ainda continuar ajudando no sustento da família. Neste trabalho, meu chefe era engajado em lutas populares e eu comecei a participar do sindicato dos bancários, onde fazíamos piquetes para fortalecer a grande greve de 1985, que movimentou 100 mil pessoas, onde o Luiz Gushiken era uma liderança muito forte. Depois de liderar uma greve que durou muito tempo, fui mandada embora do banco. Eles comentaram que eu trabalhei lá por 7 anos e, nesse período, participei de 7 greves.

Quando saí do banco em 1989, já sendo formada em matemática pela PUC (Pontifícia Universidade Católica), fiz um concurso de professora no estado e passei, ingressei na área de educação, concretizando assim, um sonho que sempre falava para minha mãe que queria fazer matemática. Quando descobri a tabuada aos sete anos, dormindo, dei um grito pra minha mãe dizendo que já sabia fazer contas, uma vez que vendíamos farinha de mandioca e precisava computar os valores. Aí, passei a ensinar para minhas irmãs e o irmão também.

Todo salário que ganhava era dividido: uma parte ficava com meu tio, na casa de quem eu morava, outra para as minhas necessidades e as demais eram destinadas para a família que continuou morando no mesmo local. Depois, minha mãe veio a falecer e continuei a manter a família. Ajudei a minha irmã mais nova nos estudos, ela se formou em geografia e pedagogia. Nós duas fomos as primeiras da família a fazer formação universitária. Minha família continuou lá em Sertânia, a irmã mais velha com uma padaria e o irmão com trabalho na zona rural.

Passando por várias escolas
Onde muito se aprende
Pedagogia Freiriana
Conheceu o José Rezende
Trabalhando na periferia
Com o povo se entende.

Nos anos 90, já trabalhando na área educacional, através de concursos públicos, passei pelo estado e pela prefeitura, exercendo cargos diferentes em várias escolas aqui na região, como: Alferes Tiradentes, Susumu Hirata, Isabel Vieira, Chiquinha Rodrigues, Elza Maia e Conde Pereira Carneiro. Nesse processo todo, me formei também em pedagogia.

Além de professora de matemática, dava aulas de ciências também. Entre as várias funções que exerci, fui coordenadora pedagógica e de projetos, onde coordenei o projeto do Céu Alvarenga.

Neste período, foi quando o Paulo Freire assumiu a Secretaria de Educação na administração da prefeita Luíza Erundina, quando foi valorizada a educação como um todo, com tempo remunerado de preparo pedagógico e estudo para professoras e professores. Assim, entre outras exonerações que fiz, abri mão de aulas no Estado para me dedicar ao trabalho educacional na prefeitura, uma vez que os ganhos salariais davam para suprir as necessidades. Foi na escola Susumu Hirata que realmente aprendi a ser professora, com o processo de formação na gestão Freiriana, mas, com a vitória de Paulo Maluf na eleição de 1992, este projeto foi desmontado.

Na escola Conde Pereira Carneiro foi onde encontrei o professor de história José Rezende e, a partir desse momento, estabelecemos uma relação de amizade e companheirismo de trabalho. Foi aí que tomei conhecimento da Educação de Jovens e Adultos (MOVA). Na segunda gestão do PT, fui trabalhar na diretoria de ensino de Santo Amaro como coordenadora de projetos e o Rezende foi trabalhar comigo. Ele era uma pessoa muito engajada, me trazia para movimentos populares na comunidade. Costumo dizer que foi o Rezende que me ensinou a falar em microfones, pois ficava tímida na hora de falar e ele me incentivava dizendo que eu precisava falar.

Atuando em movimentos
Escolas e coordenações
Dinamismo peculiar
Tinha sempre indicações
Por suas habilidades
Atuou nas administrações.

Houve um período em que desenvolvia trabalhos de rua, com o Ricardo lá do Laranjeira, onde tinha participação na minha equipe, que tinha a participação da professora Marieta Gomes. Nestas atividades, às vezes, precisávamos fechar as ruas e o Rezende sempre preocupado para não sermos presos. Aí, fui conhecendo mais pessoas de lutas na região, conheci a Eliana Queiroz, que era a subprefeita da Cidade Ademar e ela me apresentou algumas pessoas, entre elas o Padre Maurílio, da Vila Joaniza, e assim fui me envolvendo nos movimentos sociais.

Nas administrações do PT, fui convidada para trabalhar em todas elas, na área da Educação: na última, com o Fernando Haddad, estava como coordenadora pedagógica. No dia da morte do Rezende, ele esteve na coordenadoria para resolver algumas questões, eu disse a ele que quando me aposentasse iria fazer militância no MOVA e ajudá-lo a se organizar. Após a sua partida, em um depoimento, organizado pela Cidinha Rodrigues, eu brinquei dizendo que a cada dois papéis na mão, ele perdia um. Ele era uma pessoa muito culta, com alto grau de conhecimento e com um linguajar que, às vezes, dificultava dar aulas para adolescentes. Era mais apropriado para nível universitário.

Antes da administração do F. Haddad, eu tinha adotado uma menina que se chama Alice, que está com 24 anos. Voltei para o CEU Caminho do Mar, que era uma forma de ficar mais perto da minha casa. Chegando lá, desenvolvia trabalhos de formação com as famílias, onde tinha a participação da Professora Tereza Cristina. As minhas idas para as administrações petistas tinha a ver com os trabalhos que já desenvolvia com educação, como o trabalho na Mata Virgem sobre educação sexual. Nos convites que recebia para ocupar cargos, eles diziam que eu tinha cara de população, de gente.

O Rezende fazia a liga
Com pessoas da região
O trabalho com o MOVA
Quase uma obsessão
Movimento permanente
Fazendo formação.

O Rezende que me ligava com as pessoas da região. Ele sempre me dizia que ia me apresentar uma pessoa muito parecida comigo, que gostava de gente, como eu gosto. Era a Terezinha Garcia, que na época era diretora da escola Carlos Augusto e tinha participação nas administrações petistas. Me senti lisonjeada ao ser comparada com esta grande mulher. Com a perda do Rezende, o CENTRO FREI TITO enfrentou muitas dificuldades: o MOVA passou por algumas coordenações e o Paulo e a Marilene me convidaram para vir dar continuação a este trabalho, embora a proposta anterior era de que eu fosse fazer parte da diretoria e não como coordenadora do MOVA.

Dando continuidade ao Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos, chegando no Frei Tito não como coordenadora, mas alguém que quer construir juntas/os. Claro que tivemos os percalços, mas fizemos um trabalho bacana. Nas administrações populares, sempre foi valorizado o MOVA, mas nas da direita, tivemos problemas, pois são contra este movimento. Com a pandemia, o então Prefeito Bruno Covas cortou as verbas de pagamentos das educadoras/res, mas como o MOVA é movimento, articulamos com parlamentares da esquerda, principalmente com ajuda jurídica do Paulo Teixeira, que nos ajudou muito para reverter a decisão do prefeito. Atualmente estamos com 7 salas funcionando: 5 na Paróquia do Jardim Miriam e 2 no Frei Tito.

Numa sociedade desigual
Que maltrata nossa gente
O machismo e o racismo
Estão sempre presentes
Para sua desconstrução a
Formação permanente.

Sobre o machismo, estamos numa sociedade machista, mas as pessoas não se identificam enquanto tal. Eu vejo que tem uma luta ainda muito incipiente. Temos feito um trabalho de reconhecimento, nem chega ser de conscientização. Além do esforço das/os educadoras/es, no mês de março, temos contado com a vinda de outras pessoas para nos ajudar, como a Terezinha e a Zulmira. Às vezes, nos surpreendemos com falas assim: ”As meninas não sabem se vestir, andar na rua com aquele shortinho mostrando tudo!” Não tem sido fácil esse trabalho. Quando vamos falar sobre esta questão, elas/es falam que isso não precisa ser discutido porque já foi dito outras vezes.

Na questão do racismo, o comportamento é semelhante, as pessoas não se reconhecem como racistas. Então, acho que a primeira coisa que precisa fazer é criar meios para fazer o reconhecimento. E isso tem acontecido não só no MOVA, mas também onde estou dando aulas de pedagogia e de cursinho. As pessoas sempre dizem: eu não sou racista. Temos usado vários exemplos de vivência para mostrar ações e atos racistas, no sentido de fazer as pessoas se enxergarem, como: uma pessoa branca e uma negra entram numa loja, qual será a primeira a ser atendida? Ou ainda: você está indo pela rua e na frente, de um lado tem uma pessoa branca e do outro, uma negra, qual delas você imagina que vai mexer com você? Temos feito um trabalho permanente com estes temas, inclusive não dando graça para piadinha que surge, não sendo conivente com o preconceito racial e o machismo.

Fazendo avaliação
Pra não mais errar
A menina de Sertânia
Que não para de lutar
Um sorriso infantil
E sempre a sonhar.

Sobre a atuação da esquerda, essa foi se afastando dos movimentos sociais e da base como um todo. Somam-se a isso os erros que foram sendo cometidos, entre eles, a indicação do Michel Temer para vice da Dilma, que foi um tiro em nosso pé. A preocupação que o Rezende tinha com a formação política, isso não aconteceu. Sem povo organizado, pode até ganhar as eleições, mas não governa. Vimos isso no governo da Dilma com o Impeachment, onde o povo não foi pra rua, porque não se sentia representado. Foi aí que abriu espaço para o Bolsonaro ganhar as eleições.

Sobre os meus sonhos, não tenho sonhos individuais, meus sonhos são coletivos. Sou uma mulher da luta dos movimentos sociais. Meu grande sonho é que o país se organize de novo e que possamos nos fortalecer enquanto movimento social e que possamos dizer que temos orgulho de ser brasileira/o. Estamos enfrentando uma situação muito difícil, nós, que estamos na periferia, sabemos da dura realidade enfrentada pelo povo na luta pela sobrevivência. No Brasil, em São Paulo, espero que a esquerda ganhe as eleições, pois nos governos populares, encabeçados pelo PT, tivemos muitos avanços das políticas sociais.

Saiba Mais

Nota sobre a introdução para a entrevista:

Os Ciclos de produção no Brasil.
Caio Prado Jr, em A História econômica do Brasil.

Informações sobre o MOVA:

As aulas acontecem de segunda a quinta feira nos seguintes locais e endereços:
Frei Tito – Rua Jacinto Paes, 57, Americanópolis – Matrículas a partir das 18h.
Igreja do Jd. Miriam – Av. Cupecê, 5347. Matrículas a partir das 16h30.
Levar documentos pessoais e comprovante de endereço.

Imagem: Acervo pessoal da entrevistada

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