Mulheres que lutam e voam

O entardecer do dia 20 de maio de 2023 reuniu numa grande roda de memórias no Centro Popular de Defesa dos Direitos Humanos Frei Tito de Alencar Lima (lugar de fala de todos os movimentos sociais) mulheres que se juntaram para celebrar o registro – em livro – de um período muito duro e caro para o nosso bairro. As lutadoras e lutadores, com orgulho, tomaram em suas mãos as suas histórias com a certeza de que somente com um coletivo forte e organizado teremos nossos direitos de volta.

Os anos foram 1970, o desafio era sonhar uma vida boa para essa população, em sua grande maioria formada por mulheres, reivindicando que seus filhos, companheiros, vizinhas, tivessem a possibilidade de viver com dignidade numa periferia invisível, esquecida e separada pelas pontes de privilégios e o abismo das misérias. 

Nossa mais velha (Dona Josefa), moradora antiga do bairro, com 82 anos, mãe, avó, bisavó, benzedeira e curandeira, mulher de fé e de saberes que, com toda sua força ancestral, deu boas vindas aos que chegavam abrindo sua Jurema, seu juremar e pedindo licença para a mamãe Iansã e nosso pai Oxalá para iniciar um encontro com presenças daquelas que vieram para se juntar a nós. São as Cecílias, Geraldas, Teresas, Iracys, Franciscas, Palmiras, Marias, Rosas, Marilenes, Conceições e tantas outras que nos inspiraram, ocuparam e lotaram nosso grande salão.

Juntas (Zuca Fonseca)

Vem, me dá a sua mão…
Vamos companheira, vamos caminhar.

Vem que te amparamos, nos amparando em você. 
Vem companheira, vamos juntas caminhar.

Se a dor bater mais forte.
Grite, chore, faça o que for preciso para extravasar.
Não tenha medo, não vamos deixar a dor te paralisar.
Vem. 

É estando com você, que firmes passos conseguimos dar.
E, se por ventura eu me cansar, sei que nas companheiras também posso me apoiar.

Não te julgamos e sabemos que não queres nos julgar.
Já temos eles, os carrascos, para nos diminuir, nos marginalizar.
Sempre prontos a nos apagar.
Vem…

As mais velhas nos ensinaram com quem podemos contar.
E na lida do dia a dia, vejo hoje, com as iguais e com as meninas, que caminhando lado a lado, mesmo tentando, ninguém vai nos derrubar.

Vem minha amiga, minha irmã, vem companheira.
Vem com a gente.
Vamos todas, abraçando as demais para conosco trilhar.
Pegando-as pelas mãos, chamando-as pelos nomes, sentindo os seus lamentos.
Todas juntas.
Explicando, dançando, vivenciando, cantando, aprendendo, recitando, ensinando.

E se nós chamarmos e mesmo assim ela não desejar se achegar.
Vamos com calma, damos um tempo.
São tantas dores contidas nesse corpo.
Ela tem medo.
Ainda não confia em nossa força ao nos juntar.

Vem companheira.
Vem com a gente caminhar.
Vamos todas bem unidas, combatendo, ensinando, transformando.
Validando nossa história.
Dando um basta no que está posto.
Para que as novas gerações, tenham asas bem mais fortes para que possam voar.
Vem companheira, vem conosco caminhar.

Por onde ecoaram nossas vozes?

A Coletiva de Mulheres – Expresso Periférico foi provocada pelo Memorial da Resistência de São Paulo para mergulhar em lembranças e enfrentar as dores que foi viver a adolescência e juventude em pleno período da ditadura, revivendo as perdas de pessoas, torturas, racismo, machismo e as lutas por moradia, transporte, educação, creches, postos de saúde e cultura e lazer para aliviar a aridez de um cotidiano de mesas vazias e greves por direitos dos trabalhadores.

Jardim Miriam, Cidade Ademar, Cidade Júlia, Vila Clara, Americanópolis, Vila Missionária, Vila Joaniza, por suas ruas as mãos femininas, punhos em riste, constroem um território onde o poder público não chega, mas as mulheres, como formigas ou passarinhas, abrem os caminhos e buscam uma vida melhor para seus ninhos.

Aqui não é diferente, é um retrato das mazelas da cidade. Violências contra as mulheres e ameaças aos jovens, desemprego, uma inquietação que percorre as ruas. Aqui nossa luta é antiga: escolas, postos de saúde, creches, transporte, feiras livres, praças, favelas, córregos a céu aberto (sim ainda temos córregos que são esgotos e proliferam doenças por falta de saneamento básico), lutamos por teto, falta dinheiro no bolso e comida na mesa, mas temos uma população majoritária de Marias, que quase não dormem para garantir que nossas vozes ecoem nos gabinetes do poder. 

Sabemos dos desafios da caneta e do papel de perpetuar e guardar as identidades que retratam as conquistas de um lugar, para que não esqueçamos que somos passados, presente e futuro. Que publicar esses relatos é um ato político, que subverte e encoraja outras e muitas outras a tomarem para si suas histórias. Não nos intimidamos e, na Coletiva de Mulheres não é diferente, dividimos nossos saberes, nossas escritas, nossas dores e nossas conquistas. Cada uma vem de uma história diferente, somos de várias idades, sotaques, cidades. Não estamos completas e por isso o medo de aprender com a outra vai sumindo um pouquinho todos os dias, até porque, mesmo não estando completas, temos tanto conhecimento em nós que até transborda e por isso partilhamos.

Para colocar em movimento o tema: Atemporalidade da Repressão e da Resistência/Mulheres em seu lugar de Resistência, chamamos mulheres do território para se somar, construir e fazer a partilha das nossas memórias, conquistas e o momento atual. A roda fez parte de insumos que a Coletiva de Mulheres Expresso Periférico utilizou para compor este material escrito (provavelmente livro!) que registra a trajetória das lutas das mulheres no território do Jardim Miriam, como parte do Percurso Curatorial “Gênero e Ditadura”, realizado pelo Acervo Bajubá a convite do Memorial da Resistência.

Memórias do período da Ditadura no território

A leitura do material levará o leitor às reflexões de temas que foram trazidos dos duros anos da repressão e da luta pela democracia provocadas por algumas indagações.

Organização de lutas sociais, a presença em espaços de resistência, a diversidade de mulheres e suas expressões, as estratégias de lutas junto à população, o convívio no cotidiano das organizações, a pluralidade de pensamentos, gênero, raça, são questões que nos acompanham e, apesar das lutas feministas em nosso país terem ganhado visibilidade no decorrer das últimas décadas, o machismo/patriarcado continua impactando dentro das diversas lutas.

Assim, a maternidade e o machismo merecem um olhar especial nessas resistências e disposições de lutas por um mundo justo e igualitário e a força dos coletivos são determinantes para a caminhada e para nós, mulheres, romperem o silêncio frente a todas as violências que sofremos.

É nosso desejo que as falas livres e cheias de cumplicidades que representaram o que cada uma gostaria de deixar e registrar nesse arcabouço de memórias afetivas e de resistência, possam ser instrumentos instigadores de desejos de transformação. 

O registrado nesta publicação são reflexões sobre as transformações sociais, individuais e coletivas. Os vínculos entre a diversidade, a ancestralidade, os pactos femininos que são feitos para essa imensa periferia VIVER e os pensamentos que percorrem o nosso querer de mundo. O desejo utópico de liberdade para todos os corpos.

Os Dis-postos (Evinha Eugênia)
Os dispostos se atraem
Se atracam
Se amam
Se odeiam
Se alegram
Se entristecem
Se gozam
Se lambuzam
Mas se dispõem sempre a viver como loucos

A acolhida na Casa Delas (Rua José Eid Maluf 20, Americanópolis) foi significativa para o registro destas memórias. A Casa Delas é um espaço que abriga a coletiva “Deixa Ela Tocar!”, grupo de mulheres que acolhe as expressões artísticas de mulheres da periferia da Zona Sul de São Paulo. O espaço fomenta o feminino, tornando-se um lugar de debate, provocativo, libertário, criativo e afetuoso, criado para (re)pensar a mulher em sua potencialidade artística.

A presença da Coletiva de Mulheres nas ocupações artísticas do JAMAC – Jardim Miriam Arte Clube, despertaram a sensibilidade para um uma beleza provocativa que a arte ocupou neste registro. 

A parceria com o Acervo Bajubá, projeto comunitário de registro de memórias das comunidades LGBT+, materializou e impulsionou nossa vontade de reunir mulheres em torno de suas histórias.

O Selo Agrupamentos, iniciativa editorial de pesquisa-ação em memória pública, com o apoio da Laura Daviña, deu concretude ao projeto, numa proposta editorial primorosa.

Ao lançador de sementes Bruno O., que vive sonhos coletivos de circular transformações, poesias e escrevivências das invisibilidades, acreditando que, sim, este caminho não tem volta.

Sim, podemos desejar!

E assim foi nossa noite de 20 de maio (mês das mães, das mulheres pobres, trabalhadoras e invisíveis). Nos juntamos como formigas para celebrar a colheita e numa revoada rezamos, dançamos, cantamos lá do alto palavras para registrar que resistimos, existimos e arrastamos gerações que sabem porque estão aqui e onde é o nosso lugar. 

Resistência tem voz de Mulher, esse é o nosso livro, nossa história escrita, carimbada e grafada em páginas que são orgulho para nossa existência e nos dão força para contar que o ventre é o sagrado feminino que revoluciona e convulsiona a vida.

A presença da dança, do corpo livre lançando olhares de cumplicidade e partilha e a femenagem às mulheres cantoras que embalaram nossas falas, determinaram que a noite era de muita celebração, encantos e encontros de multidões que constroem um mundo melhor, justo e igualitário para todos com muita alegria política. 

Germinar sementes (Marilene Gerônimo)

Uma semente lançada ao vento, um pé de ventania subindo e descendo em movimento circulares, dançando sinuosamente, flertando em lugares escondidos em frestas onde só o vento consegue passar

Uma semente lançada à terra, um pé! De quê? Um pé de vidas, germinando em total adaptação de solos, ainda que parecendo inóspito, transcendendo, crescendo e desbravando o não lugar, transformando em território de novos lugares de vivências ao brotar, espalhando poeiras povoadas de ancestralidade para lugares distantes

Uma semente lançada às águas foi levada pelo vento, fecundada em terras molhadas e profundas das minas, se entranham no barro, na lama…desembocam nos brejos, córregos, rios e cacimbas de onde emerge como uma nova vida, deslizando, acariciando o lajedo, por entre as pedras, das bordas ao miúdo, ganhando força, velocidade…vai abrindo caminhos, nutrindo corpos variados de múltiplas possibilidades de seres e formas, de habitar nessa cabaça carregada de sementes lançadas nos caminhos que levam para o grande mar das travessias e encontros…

Uma nação diversa, precisa encontrar no cenário da política sua representação feminina, negra, indígena, LGBT, periférica, artística.

O mundo só será um lugar bom para todes, quando as mulheres ocuparem os espaços de decisão, forem respeitadas em suas falas, construindo estratégias para além da mediocridade individualista. Que a coletividade seja a regra e que todas e todos caminhem partilhando sonhos e emprestando seus ombros para a necessidade do outro.

Que as diferenças não nos definam, mas sejam a possibilidade de, harmoniosamente, encontrarmos equilíbrio entre o humano e a natureza.

Imagens: Bruno O.

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Escrito por Coletiva de Mulheres

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