Seis mulheres, idealizando para mulheres da periferia uma “casa” de acolhimento para as talentosas e seus feitos artísticos. O sonho transbordou e o espaço já pode ser chamado de “seu”.

“Resistência, cultura, partilha, arte, corpo, som e cores num só movimento”

Um lugar para chamar de seu.

E com a força e ousadia feminina da nossa região, Americanópolis, Jardim Miriam, Cidade Ademar, Jabaquara e todo o entorno conquistaram um espaço para as Mulheres chamarem “de seu”.

Recém aberta ao público, com sua primeira atividade presencial, “O Sarau Delas”, realizada no último dia 30 de janeiro, o projeto Deixa Ela Tocar inaugura a Casa DelAs com muita música, poesia, pinturas e partilhas.

O Expresso Periférico, representado no evento pela sua Coletiva de Mulheres, traz para um bate papo conosco a GABRIELA FRANCISCO (a Gabi), professora, maquiadora, mediadora de debates sobre cultura/educação e uma das idealizadoras do Projeto.

Expresso Periférico: Gabi, conta para nós sobre a abertura deste espaço (A Casa DelAs) dentro do Projeto Deixa Ela Tocar!, que foi organizado por um grupo de mulheres e amigas conectadas na busca de um movimento para agregar as arteiras do território. Como as mulheres do território serão alcançadas?

Gabi: Bom, primeiro para aprofundar a análise do nome rs…, o Deixa Ela Tocar! é um grito, uma imposição e não uma solicitação pacífica, pois vem de um incômodo quanto ao protagonismo da mulher nas diversas vertentes da indústria da música e na sociedade patriarcal, machista, racista e capitalista. O intuito do projeto é de proporcionar para as mulheres do território um espaço de acesso à cultura, formação, debates sobre nossa pautas políticas, sociais, de promoção das artistas locais, de articulação e fortalecimento da rede de mulheres artistas

Expresso Periférico: As idealizadoras e organizadoras da construção do projeto são seis Mulheres (Bárbara Magalhanis, Gabriela Francisco, Juliana Santana,  Natália Cruz, Bianca Louise Magalhanis, Natália Lopes), diversas em suas potências, educadoras, militantes da cultura e encantadas pela arte e como esta pode transformar a vida das pessoas. Ter este espaço independente (para elas e com elas) encoraja as mulheres do território a serem protagonistas de suas histórias? Restabelece a relação de pertencimento e as referências femininas na luta por liberdade?

Gabi: Com certeza encoraja e nos motiva a darmos continuidade a esse projeto. Assim que finalizamos as primeiras adequações da Casa, promovemos um encontro com a artista Nenê Surreal. Ela fez a arte na parede externa da Casa. Este dia foi incrível, pois ver uma artista como a Nenê criando sua arte e compartilhando sua visão e sua trajetória foi magnífico! Em um dos diálogos, lembro dela comentar o quanto ficou feliz em chegar “na Casa” ver a estrutura e a organização feita por mulheres, mulheres do território e por haver mulheres pretas nessa liderança. Outro momento marcante de minha memória foi em uma live que participamos, promovida pela Dj Carlu (estávamos divulgando o projeto), e a Coletiva de Mulheres do Expresso Periférico estava como convidadas também. Ouvir seus depoimentos, suas lutas e a fala sobre a felicitação e contentamento de ver mulheres das novas gerações darem continuidade ao trabalho de muitas delas, na promoção da cultura no território e do protagonismo das mulheres, nos encheu de energia. Sabemos da potencialidade que temos e mesmo com todos os obstáculos (estrutura patriarcal, machista, capitalista) conseguimos nos articular, desenvolver e nos fortalecer mais a cada dia.

Expresso Periférico: Estar e viver no território estabelece vínculos com o cotidiano de “muitas” de nós. A inquietação de não ter representação nos espaços de arte (mulheres vivendo para e de seus talentos e de suas escolhas) influenciou de que maneira para juntar essas seis mulheres no pensar esse projeto? 

Gabi: Acho que até mesmo pensando na nossa trajetória de junção, responde a essa pergunta. Em todo depoimento sempre falo que a Natália Cruz foi nosso elo e ainda é uma das maiores articuladoras no grupo. Ela trabalha com produção cultural há mais de 10 anos e apenas recentemente se reconheceu como produtora cultural. Ela conhece muita gente e tem o talento de articular e direcionar as pessoas e suas habilidades nas funções que as mesmas mais contribuirão. Ela foi a primeira a pensar na ação que tivemos em 2019 do Deixa Ela Tocar!, na escola de Samba Unidos do Vale Encantado, e então  chamou a mim e a Bárbara Magalhanis para tocar essa ação. Ela fez a articulação com outros coletivos como o Mocambos de Raiz Nagô, a DJ Alê, do Sarau do Vinil, que discoteca só mulheres e as outras cantoras e convidadas do território. Foi um dia muito importante para nós! Logo depois, ela mencionou que queria escrever um projeto e chamou a Bárbara, que é a sua amiga desde a adolescência e é arte educadora, percussionista, integrante do bloco afro  Ilú Obá de Min, tem uma vida ativa na música e participa de várias ações e projetos. Chamou a Juliana Santana, que é sonoplasta e também dirigiu o curta Alternativas felizes para quando o sol não vem. Eu sou amiga da Natália desde que começamos a atuar como professoras de sociologia na rede estadual e, no primeiro evento Deixa Ela Tocar!, direcionei o debate para a atuação e oportunidades das mulheres na música. Todas as mulheres da coletiva tem uma atividade artística, sendo ela mais expressiva ou não. Exceto eu rs…,  todas têm algum envolvimento com a música e relatam em suas lembranças as situações de discriminação por serem mulheres querendo tocar ou aprender algum instrumento ou a referência masculina na família quando se trata de música.  Então, o projeto surge das experiências vividas enquanto mulheres no mundo da música, da dificuldade de acesso por conta do gênero ou classe social/territorialidade. Pensando nisso, escrevemos um projeto no qual teríamos um espaço de cultura, uma demanda e urgência na Cidade Ademar, onde tivesse formação introdutória na música para mulheres, promovendo as artistas da região e debates sobre as nossas pautas/necessidades enquanto mulheres artistas periféricas. Pensamos em uma pesquisa para mapearmos, fortalecermos  e facilitarmos a articulação das mulheres artistas.

Quando fomos contempladas pelo Fomento às Periferias, juntaram-se a nós na organização e planejamento das ações a Bianca Magalhanis, que é irmã da Bárbara e amiga da Natália também desde a adolescência. Ela toca no grupo Antena Loka, que tem como componentes a Juliana Santana e a Natália. A Bianca, na coletiva, ingressou a princípio com a função de nos inscrever em editais, projetar mais captação de recursos, mas, assim como todas nós, foi desenvolvendo outras ações e hoje toca várias funções de organização e planejamento. A Natália Lopes, amiga desde o tempo de faculdade da Natália Cruz, é a única que não é do território, mas, assim como todas nós, participa de vários projetos, tem uma inquietude de como as mulheres têm suas oportunidades cessadas ou dificultadas, seja na cultura seja no empreendedorismo. Ela aceitou nos auxiliar na adequação da casa e também assumiu a condução e planejamento das diversas ações que tivemos em 2021.

Expresso Periférico: A Casa DelAs nos leva a um lugar intimista, provocativo, libertário, criativo, afetuoso e ousado. Como as mulheres do território podem se juntar para construção e manutenção do projeto?

Gabi: Já estão fazendo: a articulação é a base fundamental desse fortalecimento. Recebemos doações como livros, cadeiras, mesas, geladeira, fogão, retroprojetor, impressoras e afins. Só nessa ação de doação envolveram-se não só as mulheres propriamente que doaram, mas também as mulheres que fizeram a ponte para que isso acontecesse. Na divulgação do projeto, o Expresso mais uma vez vem nos auxiliando com suas redes, as lives que participamos de diversos coletivos como Sarau do Vinil,  a participação das artistas nos debates e mostras e as que fazem nossos registros. As orientações/conselhos das mulheres que estão há mais tempo nesse “rolê” também foram muito importantes e eu nem citarei nomes pra não deixar ninguém de fora. Se não fosse por todas vocês que já contribuíram, não conseguiríamos fazer o pouco do muito que pretendemos fazer.

Expresso Periférico: O caminho é longo, as barreiras e os desafios para as mulheres são muitos, os enfrentamentos de gênero, raça, cor, classe e o desencorajamento que se apresenta todos os dias, cria um abismo para muitas mulheres. A arte para essa imensa camada da população é uma ferramenta de luta e resistência para reduzir essa distância?

Gabi: É das ferramentas mais potentes que temos, porque a arte é constante, é contagiante e não requer aprovação, autorização da elite, para ser criada,  executada e divulgada. A arte é uma ferramenta que independente da sua classe social, da sua condição física, da sua raça/cor, do seu gênero, orientação sexual e em algum momento você teve contato, teve acesso a ela, seja por meio da música, artes visuais, artes cênicas, artes manuais,  literatura e afins. Todas, todos e todes nós temos na memória o contato com a arte e uma das maiores dificuldades que tivemos na pesquisa é que muitas mulheres não se reconhecem enquanto artistas. A bordadeira, a artesã que faz biscuit, a compositora, a contadora de história, a costureira, a estilista de unhas decoradas, a confeiteira, a trancista e por aí vai. A arte se faz presente no nosso cotidiano. Na feira encontramos artistas, mas a elitização do conceito de arte (de forma proposital), a discriminação de gênero, a dificuldade de remuneração digna e justa pelo seu trabalho, fazem com que não haja esse reconhecimento e/ou autorreconhecimento e a valoração de nossos fazeres e saberes.

Expresso Periférico: Quase 1 ano da Casa, pensada em plena pandemia, com todas as dificuldades de um governo indiferente às urgências da população, que desmonta os poucos aparelhos culturais e de acolhimento, que corta e reduz fomentos, como e quais foram as ações promovidas?

Gabi: Infelizmente tivemos que ter nossas ações de maneira virtual, tanto a pesquisa quanto as mostras e os debates. No caso da pesquisa, que foi realizada de julho a agosto de 2021, contamos com 19 articuladoras(es) dos territórios de Cidade Ademar, Jabaquara e Pedreira, que auxiliaram na divulgação da pesquisa e, muitas vezes, no preenchimento deste questionário, já que enfrentamos dificuldades não só de acesso à internet, mas de manuseio de ferramentas tecnológicas. Essas indicações  foram fundamentais para que a pesquisa fosse realizada em plena pandemia. Sabemos que ainda não foi o ideal, que mais mulheres poderiam ter respondido. Entretanto, era a ferramenta que tínhamos no momento.

Expresso Periférico: 2022 será um ano difícil, porém necessário para organização das nossas demandas, para discussão das prioridades e urgências do território, para olhar para a nossa população e caminhar com passos firmes em direção a um projeto de mundo que devolva dignidade, respeito e justiça para todes. A arte é fundamental para nos acompanhar na luta e resistência. Quais são os projetos da Casa DelAs para acolher os talentos, promover artistas e fomentar ações de formação?

Gabi: De março a junho de 2022, teremos oficinas de introdução à corda, técnica vocal e percussão. Mais para o final do ano, teremos oficina de introdução à técnica de som e dicas de como escrever projetos para editais. As oficinas são voltadas para meninas e mulheres a partir dos 16 anos que residam no território de Cidade Ademar, Jabaquara e Pedreira. Acontecerão uma vez por semana, das 19h às 21h, e será no espaço Casa DelAs (Endereço: Rua José Eid Maluf, 20 próximo à escola Estadual México).

Além das 12 Mostras com as artistas do território e debates, no dia 25 de fevereiro, por exemplo, acontece a Mostra Mulheres no Cinema, que exibirá Curtas metragens e a apresentação das cineastas no espaço Casa DelAs.

Expresso Periférico: Como acessar as redes sociais do Deixa Ela Tocar! e como serão divulgadas as atividades e eventos da Casa DelAs?

Gabi: A divulgação principal é via redes sociais (Facebook e Instagram), o boca a boca. Agora estamos com as inscrições abertas para as oficinas de percussão, técnica vocal e cordas. As inscrições serão de 15 de fevereiro até 08 de março por meio do link http://forms.gle/Xix2s3a1EDpTpy7f7

O Expresso Periférico acredita no potencial de iniciativas como esta para alavancar as lutas das mulheres do nosso território. A organização da população feminina é fundamental para todas as lutas por direitos e reivindicações de espaços que recebem e acolhem as diversas demandas e carências da região.

Os fomentos para Cultura e instalações de espaços como: Casa de Cultura, Biblioteca, Teatro, Sala de cinema, Telões em praças públicas e outras ferramentas que estimulem a criação e o bem estar, não são favores a nós ofertados: são direitos da periferia viver dignamente e com acesso a lazer, conhecimento e formação. 

O poder público tem o dever de atender e garantir que educação, saúde, transporte e lazer cheguem até nós. Periferia não significa abandono, estamos afastados do centro urbano que determinam a vida comercial e financeira da cidade. Existimos e somos cidadãs e cidadãos contribuintes e com direitos.

Parabéns e vida longa para o DEIXE ELA TOCAR!

Imagem: União DEIXA ELA TOCAR!

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3 thoughts on “Deixe Ela Tocar porque A CASA É DELAS!”

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