Como pode o termo violência obstétrica não levar a nada?

No dia 04 de maio a nova Caderneta da Gestante (6º edição) foi apresentada pelo Ministério da Saúde sob as diretrizes de segurança, qualidade e humanização do parto, da gravidez e do puerpério. Durante as semanas que se passaram, no entanto, diversas críticas ao documento e à fala dos envolvidos na apresentação foram apontadas. Um breve olhar sobre o que se faz e o que se fala na atual gestão do governo seria essencial para se compreender o motivo das críticas.

Entre as atualizações da Caderneta, destaca-se a presença da episiotomia e da manobra de Kristeller. A primeira, consiste em um corte no períneo, região entre a vagina e o ânus, para facilitar a passagem do bebê (procedimento o qual a Organização Mundial de Saúde já afirmou não haver qualquer evidência científica que o apoie).  A segunda, também sem evidências da OMS, trata-se de um procedimento que corresponde à aplicação de, nas palavras do secretário de Atenção à Saúde Primária Raphael Câmara, “um leve empurrão” na parte superior do útero. Mesmo com as orientações da OMS, afirmou-se que a caderneta vem “muito nessa pegada de evidências”.

A narrativa e os procedimentos incentivados recaem sobre o já conhecido perfil do governo atual. Para explicar isso, cabe a atenção a mais uma das falas do secretário:

“Isso é por quê? Pra gente parar de ficar falando em coisas que dividem e falar no que junta. E a gente tenta  ajudar. Então, vamos parar de ficar usando termos que não levam a nada, como violência obstétrica, que só provoca desagregação. Que coloca a culpa no profissional”.  

Há anos, médicos, ativistas e instituições vêm denunciando a presença da violência obstétrica no país, por meio de pesquisas sérias.  Uma delas é a Nascer no Brasil (a maior pesquisa já feita sobre nascimento no país) que revela que 45% das mulheres grávidas atendidas pelo SUS são vítimas de maus-tratos.  Sobre a episiotomia, a pesquisa mostra que ela foi utilizada em 56% dos partos no Brasil, ainda que o índice de recomendação da OMS fique entre 10% e 30%. Ou seja, a violência obstétrica existe e o abuso desses procedimentos não recomendados é um fato que impacta gravemente a saúde pública.

É preciso destacar que boa parte da população ainda não tem total consciência do que seria uma violência obstétrica. Em uma reportagem para a Folha de São Paulo, a doutora em saúde coletiva e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública, Tatiana Leite, diz que os dados podem ser maiores: “Quando a pergunta é só se a mulher sofreu violência, ela diz que não. Mas se é: ‘Te amarraram? Te mandaram calar a boca?’ Ela diz que sim”. Diante da fala do secretário, seria importante a pergunta: Como pode o termo violência obstétrica não levar a nada? 

O fato é que, com esse discurso, tenta-se minimizar os dados envolvendo o termo violência obstétrica, assim como fazem com outros nomes que eles também acreditam  não levarem a nada, como: racismo, feminicídio, transfobia, etc. Seria bom se os nomes fossem destruídos com políticas públicas que combatessem as violências estruturais que os pariram. Mas não é assim. O que se faz é: apaga-se o nome para que ele não exista para o povo, já que esse problema não nos interessa.

Na cultura cristã, Deus cria o mundo com as palavras: “Deus disse: haja luz, e houve luz”. Não foi mais ou menos isso? Assim a sociedade faz quando reconhece a existência de algo: Dá-se um nome. No exercício da ciência de avançar e resolver problemas, reconhece-se o fato, investiga-o e dá-se um nome. A partir do estudo da realidade, identifica-se uma verdade. A violência obstétrica, infelizmente, é uma verdade no Brasil. Combatê-la não é colocar-se contra os médicos e a medicina: pelo contrário.

Ainda na esfera dos mitos religiosos que tanto explicam a sociedade brasileira, é importante resgatar uma fala de Mãe Stella de Oxossi, presente em um vídeo feito para a o museu da Casa do Rio Vermelho (Salvador – BA): “O bem é a verdade”. O que ela quis dizer com isso? Somente com a verdade se constrói um caminho de paz, e se a verdade for a revelação de um problema imenso, então é preciso lutar para superá-lo, caso contrário, não haverá paz e não ficará “tudo bem”.  Portanto, mais do que nunca é preciso conhecer os dados e estudos que trouxeram a existência desses nomes. Nesse caso, violência obstétrica. O uso desse termo não “desagrega”, pelo contrário, ele convoca a sociedade para um debate e um encaminhamento. Mas já é sabido que o atual governo não gosta de debate, por isso a política do “deixa isso pra lá” lhe cabe melhor.

Saiba Mais

Abaixo assinado por uma nova Caderneta da Gestante:

Abaixo-assinado · Contra a Violência Obstétrica! Por uma nova Caderneta da Gestante! · Change.org

Live de lançamento da nova Caderneta da Gestante:

https://www.youtube.com/watch?v=-M9_n9ayzzw

Reportagens:

Intercept Brasil

Uol

Folha de São Paulo

Profissão repórter (sobre violência obstétrica)

Canal no YouTube a respeito do tema:

Humaniza Coletivo Feminista (YouTube)

Documentários:

O que é parto humanizado?

O SUS e o parto humanizado (sanarsaude.com)

Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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Escrito por Gabriel Messias

One thought on “Sobre a nova Caderneta da Gestante e o velho discurso do atual governo”

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