O fator mais importante de nossa existência

Lucy E. Parsons escreveu uma vez: “De fato, embora pareça ser um paliativo à primeira vista, na realidade não é um paliativo, mas uma medida revolucionária porque o tempo é o maior fator em nossa existência”.  Nesse texto, ela se refere à greve dos trabalhadores de Chicago, em 1886, que reivindicavam pela jornada de 8 horas de trabalho. Os líderes desse movimento foram condenados, alguns à morte, como seu companheiro Albert Parsons. Depois disso, a senhora Lucy entregou-se de vez à luta por direitos, tornando-se uma das mais contundentes anarquistas de seu país. Não haverá nada mais revelador e profundo neste editorial do que a frase “o tempo é o maior fator de nossa existência”, cara leitora, caro leitor. Então, se quiser parar de ler por aqui, entenderemos.

Nós sabemos, na periferia, o quão intensa e longa é a demanda de trabalho da maioria dos moradores das comunidades. Muitas vezes o trajeto para casa toma mais de duas horas de nossas vidas todos os dias. O trabalho como motoristas de aplicativos ou entregadores acaba sendo uma opção para fazer um extra. A ideia de ser chefe de si mesmo nos seduz e dessa forma é que se inicia o processo de exploração das grandes empresas de tecnologia. O espírito empreendedor, na maneira como o capitalismo sugere à classe trabalhadora, junto às falas do senso comum: “é só você se esforçar”, ou “acredite nos seus sonhos” é uma cilada. E nós sentimos muito por ter que dizer isso.

Evidente que, nas condições em que vivemos, esforçar-se é uma necessidade, acreditar em algo também é. No entanto, a cilada mora justamente no que deixamos de ver enquanto tentamos alcançar a nuvem colorida que o capitalismo deixou flutuar pelos sinais da internet: que o jogo não é justo e alguém precisa chutar o tabuleiro.

Recentemente a Unicamp publicou um Dossiê das Violações dos Direitos Humanos do Trabalho Uberizado onde é constatado que mais de 40% dos motoboys que participaram da pesquisa trabalham mais de 60 horas semanais, sete dias por semana. Os aplicativos de entrega e transporte retiram direitos dos trabalhadores e os colocam em uma situação vulnerável diante das adversidades de seu cotidiano.  Com a crise de 2008, as grandes empresas de tecnologia criaram situações de trabalho cada vez mais “informais, desregulamentadas e flexíveis”, de acordo com o professor Ricardo Antunes.  O sujeito pensa que faz uso de um aplicativo para ganhar dinheiro, quando na realidade é a plataforma que o explora.

Trabalhar com o sistema de “uberização”, como popularmente é conhecido esse trabalho por demandas de aplicativo, na maioria das vezes não é uma escolha. O que torna o problema mais grave é acreditar que se houver “esforço suficiente” haverá resultado.  Diante disso, vivemos em uma sociedade em que o povo pobre vem trabalhando cada vez mais e com menos direitos garantidos. 

Sim, o retrocesso é possível. Basta lembrar que em 1886 pessoas foram às ruas pela garantia de uma jornada de trabalho de 8 horas, enquanto hoje vem crescendo o número de jovens e adultos que trabalham mais de 60 horas semanais para sobreviver. Haverá para essa pessoa pleno direito ao lazer, à cultura, à educação? Será que conseguirão acompanhar o crescimento dos filhos como gostariam? Será que a vida é assim mesmo e nada pode ser feito?

E sim, a jornada de oito horas foi um direito garantido, assim como a carteira de trabalho e os poucos direitos que ainda nos restam. Mas o acesso a isso é privilégio, mesmo antes do processo de uberização. Quem já ouviu a frase: “Conseguiu um emprego? Carteira assinada e tudo?”

O dia internacional da luta de trabalhadores surge dessa greve de 1886 em Chicago. Como já foi dito aqui, os líderes foram condenados, e, alguns, assassinados pelo Estado. O curioso é que o discurso do promotor público Grinnel, que defendeu essa condenação, é muito semelhante ao que a direita vem fazendo há anos no Brasil:

 “Senhores jurados, esses réus não são mais culpados do que os milhares que os seguem; foram escolhidos pelo grande júri porque eram líderes. Condenem-nos e salvem a nossa sociedade.”

É interessante perguntar: que sociedade e de quem eles querem salvar? Deixaremos essa questão para você resolver. Enquanto isso, seguiremos aqui tentando chutar esse tabuleiro, porque a vida não deve ser assim, e porque não vivemos em um sistema justo onde há condições para que todos tenham acesso digno ao que Lucy coloca como tão valioso: o tempo.

Imagem: Bruno O.

Compartilhe:

Escrito por Gabriel Messias

Deixe um comentário