O modo como nos referimos (ou deixamos de nos referir) aos filhos do presidente nos ajuda a questionar comportamentos condicionados

Finalmente, 2023! Ano esperançado por mais de 60 milhões de brasileiras e brasileiros que, após o segundo turno mais disputado da história, acompanham a chegada de Lula ao seu terceiro mandato. É tempo de falar do atual presidente do Brasil! E você, leitora e leitor, pode estar se perguntando: o que um espaço como esse, que visa abrir diálogo sobre perda gestacional e neonatal, tem a dizer sobre Luiz Inácio? Muita coisa. 

Poderíamos abordar programas de saúde da mulher e saúde materna que foram implementados em seus governos anteriores e até mesmo discutir o alcance e a necessidade de complementar leis que Lula sancionou anos atrás pretendendo assegurar direitos às mulheres grávidas. Valeria inclusive abrir espaço para problematizar as futuras ações do seu governo em relação ao combate ao racismo na saúde, que intensifica a violência obstétrica, e aos desfavores da atualização da NOVA CADERNETA DA GESTANTE feita em 2022. 

Mas hoje não pretendo escrever sobre leis ou aquilo que foi, ou deveria ser, instituído. Meu convite é para pensarmos em um comportamento específico que somos condicionadas e condicionados a reproduzir: invisibilizar crianças que não chegaram a nascer.

Quantos filhos tem o Lula? Se colocarmos essa pergunta no Google, vamos ver que a maioria dos sites (sejam eles de história, notícia ou fofoca) dizem que Lula tem cinco filhos: Lurian, Marcos Cláudio, Fábio Luís, Sandro Luís, Luís Cláudio. Porém, há de se rememorar um capítulo amargo da trajetória deste barbudo: 

_ Seu Luiz, o senhor vai ter que ser forte. Tenho uma péssima notícia para lhe dar.
Com o rosto molhado de lágrimas, respondeu entre soluços:
_ Eu já sei doutor. A Lurdes perdeu o bebê, nosso filhinho morreu na barriga da mãe.
O médico segurou-o pelos braços:
_ Não, seu Luiz, é muito pior. Sua esposa também acaba de morrer.

Livro: LULA, VOLUME 1: BIOGRAFIA – FERNANDO MORAIS (p. 246)

Se é sabido que em 1971 Lula se projetou pai ao lado de sua companheira Lourdes, por que essa criança não é citada ou nomeada quando se pretende apresentar os filhos de Lula? Anular um bebê que morre durante a gestação ou logo após o parto, não acrescentando-o na lista de filhos ou na árvore genealógica da família é uma questão cultural em nossa sociedade. É aquele tipo de comportamento que reproduzimos sem questionar, no automático. 

A questão que trago para refletirmos nesse início de ano não pretende classificar esse padrão de comportamento como certo ou errado. Mesmo porque cada pessoa lida com a morte de um jeito único. Meu intuito é chamar a atenção para a forma condicionada que nós, não individualmente mas como grupo, tratamos a passagem de bebês breves nas nossas vidas e nas de pessoas próximas. 

Vale dizer que quando mantemos essa referência de conduta, anulamos (ou buscamos anular) a representação dessas mesmas crianças na existência das demais pessoas. Anulamos a identidade de uma mãe, de um pai, de irmãos, de avós. Anulamos a ação de um encontro. Ou seja, diluímos identidades no todo da história.  

Percebam que validar a existência de bebês breves não significa apenas dar a quem partiu a oportunidade de existir. É mais do que isso. Significa dar a quem ficou a oportunidade de existir como pai e mãe daquela criança específica, não de outra criança que possa vir depois ou que já faça parte da família. Pai e mãe que desejaram esse vínculo com um bebê em um momento específico de suas vidas. 

Quando dizemos que Lula tem cinco filhos, de alguma forma apagamos sua história de amor com Lurdes. Apagamos o casamento no bairro do Sacomã, a lua de mel em Poços de Caldas, apagamos o fato de que:

A atividade sindical era estimulante, o trabalho na Villares o enchia de orgulho e a lua de mel parecia não ter fim. Somados, os salários do casal permitiram realizar o sonho alimentado desde os primeiros dias de namoro: ter um bebê.

Livro: LULA, VOLUME 1: BIOGRAFIA – FERNANDO MORAIS (p. 245)

Na minha experiência, digo que é importante e fundamental existir como mãe de um bebê breve. Luiz (o meu Luiz, não o Inácio) sempre será meu primeiro filho. E, acreditem, é menos doloroso existir como mãe de colo vazio do que não existir como mãe do Luiz, sendo forçada a engolir tudo que vivemos juntos.   

Termino esse texto com as palavras da filósofa Djamila Ribeiro, que nos diz assim: 

Eu repudiava fortemente quando as pessoas diziam “Djamila não tem mãe, não tem vó”, porque eu tenho, sim, elas só não estão mais nesse plano. Dizer que eu não tenho avó é negar a sua influência na minha vida, o amor que me protegeu e curou, é negar parte de mim.

Livro: Cartas para minha avó (p.142, 143) Djamila Ribeiro 

Que comecemos 2023 repensando comportamentos, talvez quebrando ciclos e nos dando mais oportunidade de existir mais. Feliz ano novo, com Luiz presidente!

Saiba Mais

CARTAS PARA MINHA AVÓ – DJAMILA RIBEIRO

Com o didatismo e a boa escolha das palavras que só Djamila Ribeiro possui, a autora generosamente empresta sua própria história para nos dar uma aula sobre racismo, sexismo e outras desigualdades presentes na sociedade brasileira. Não se trata de uma obra com tom teórico (como os livros da Coleção Feminismos Plurais, por exemplo). São memórias reflexivas compostas de natureza artística.

É um livro para grifar, chorar e reler sempre.

LULA, VOLUME 1: BIOGRAFIA – FERNANDO MORAIS

É aquele tipo de leitura em que temos a sensação de estar vendo um filme. O livro faz um passeio pela trajetória de vida de Luiz Inácio não seguindo necessariamente uma linha cronológica.  O autor já começa narrando um passado bastante recente, que é a prisão de Lula em 2018, possibilitando que a leitora e o leitor não apenas rememorem os fatos e conheçam mais detalhes e interpretações, mas também se perguntem: onde estávamos nesse dia? 

Neste volume da biografia visitamos também a infância de Lula, sua formação profissional e o início da sua trajetória política.

Vale a leitura e a espera pelo Volume 2.

Imagem: Renata Gibelli

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Escrito por Renata Gibelli

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