Se um substantivo comum serve para conferir nome aos seres da mesma espécie, procuro uma palavra que designe mulheres que vivenciaram a morte de suas filhas e filhos.

Na edição anterior do Expresso Periférico apresentei o título dessa coluna, Mãe Invisível, e versei sobre a importância de nomear. Seguindo nessa mesma direção, pego carona nas reflexões da Esther Vivas e provoco: como costumamos nos referir a mulheres que não tem filhos? Qual substantivo utilizamos para identificá-las? Esther, no livro Mamãe Desobediente, citando a obra No Madres da jornalista María Fernández-Miranda, nos diz assim:

A mulher que tem filhos é chamada de mãe; a que não tem um parceiro, de solteira; a que perdeu seu marido, de viúva. Aquelas que não têm filhos carecem de um nome próprio – em vez de nos definirmos pelo que somos, devemos fazê-lo pelo que não somos: não mães. Somos obrigadas a aceitar uma classificação pela negação, pois representa uma anormalidade.

Se não há um substantivo para classificar a mulher que não pode ou que optou por não ser mãe, a situação fica ainda mais complicada quando precisamos mencionar mulheres que assistiram a morte de uma filha ou filho. Eduardo Halfon, no livro Luto, traz uma reflexão que nos ajuda a entender essa dificuldade.

Falou que em hebraico existe uma palavra para descrever uma mãe cujo filho está morto. Talvez porque essa dor é tão grande e peculiar que precisa de uma palavra própria. Sh´khol, se fala em hebraico, falou.

Essa falta de substantivos específicos dificulta o pensar sobre o tema e também a comunicação como um todo. Mães de filhas e filhos não vivos, quando escutam a clássica pergunta “você tem filhos?” precisam respirar fundo antes de responder. Geralmente, as opções são duas. Ou você diz “não” e se sente fomentadora do apagamento da sua descendência ou solta um “sim” costumeiramente seguido de “mas ele não está mais aqui comigo”. 

Esse “mas” pede, na maioria das vezes, uma série de explicações que nem sempre estamos dispostas a dar para comentários do tipo “como assim, morreu?”. Vejam que isso não tem relação com o fato de gostarmos ou não de compartilhar nossas maternidades e paternidades. A questão é que nem sempre queremos dividir nossas memórias em filas de supermercado, salões de cabeleireiro ou corredores de escola. 

No livro “O pai da menina morta”, Tiago Ferro (que sofreu a morte da sua primeira filha) nos traz um exemplo do quanto pode ser avassalador articular essa resposta. 

Consigo relaxar quarenta e oito dos seiscentos músculos do meu corpo. “Te conheço, sim. Da FAU? Da Ilha? Do Paulistanos?” 2 metros de pé direito. “Não. Não. E também não”. (…) Tomo minha terceira taça de vinho. Já dá pra tirar a blusa. (…)  “Você tem filho” 1,50 metro de pé direito. A dor na cervical é maior do que o bem-estar proporcionado pelo álcool. “Sim, tenho”. (…). “Quantos filhos você tem?” 1 metro de pé direito. Tento rastejar. O tapete da sala está empapado de suor. (…) Me arrasto pelo chão até conseguir mergulhar no poço do elevador. (…)  Com sorte o elevador desce e acaba com tudo. Acaba com a dor.

A existência de uma palavra própria para identificar uma mãe ou um pai que viu uma filha ou filho falecer ajudaria muito nas conversas formais cotidianas. Apoiaria também na (re)construção de identidades dilaceradas pela morte. 

Cabe então a reflexão: não conseguimos criar uma palavra para caracterizar as mães e os pais que convivem com a fatalidade da morte de suas filhas e filhos ou preferimos que essas incômodas pessoas se mantenham invisíveis?

Saiba Mais

No livro “O pai da menina morta”, Tiago Ferro expõe de forma crua, cruel e caótica seu processo de luto. Acredito que não seja um livro para quem deseja acolhimento em forma de abraço durante o luto. Na minha experiência, a leitura de O PAI DA MENINA MORTA me confortou demais ao validar que, com a morte das filhas e filhos, “Vocês não encontraram as respostas, mas as regras do jogo ficaram mais claras”

No livro “Luto”, o autor Eduardo Halfo nos conduz da Guatemala aos Estados Unidos ao expor suas memórias que questionam a vida e morte de um tio. Tio que morreu quando criança e, como sabemos, sobre a morte de crianças pouco falamos. “Sempre me espantou mais a indolência do homem ante o horror do que o horror em si.”“Mamãe desobediente” comprei durante a minha gestação. Esther dialoga sobre a decisão de ser mãe, parto, amamentação, afastamento do trabalho e outros aspectos da maternidade. Essa discussão vem sempre numa perspectiva feminista fundamentada em dados e referenciais teóricos. É aquele tipo de leitura que você termina com uma lista de outros livros que viu nas referências e que ficou com vontade de ler.  E, sim, a perda gestacional e a adoção estão presentes de forma respeitosa e coerente.

Imagem: Renata Gibelli

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Escrito por Renata Gibelli

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