Conviver com a finitude é algo quase insuportável. Talvez, por isso, a gente prefira silenciar a existência de quem partiu.

Recentemente, saindo do elevador, encontrei uma vizinha. Ela comentou que a sogra havia falecido há poucos dias. Manifestei meu lamento e perguntei sobre o estado emocional do seu sogro. Evito questionar as causas de uma morte e não costumo sentir pena de quem morreu. Me preocupa os que ficam.

Minha vizinha disse que a família estava fazendo de tudo para distrair o sogro. Chamavam-no para dormir na casa dos filhos, o convidavam para almoçar e quando ele começava a falar da companheira, mudavam logo de assunto. Ela explicou que lembrar de quem se foi prejudica o movimento de seguir em frente.

Disse também que, logo após o processo de velório e enterro, os netos tiraram do apartamento as fotos da avó e seus pertences mais íntimos. Assim, ao chegar em casa, o avô não lembraria da esposa com quem já havia completado bodas de ouro.

Não consegui responder nada. Minha reação se limitou à pronúncia de um sincero “eu sinto muito”.

Conviver com a finitude é algo quase insuportável. Talvez, por isso, sejamos pouco ou nada gentis com os processos de luto, sejam eles nossos ou de outras pessoas. Talvez, por isso, nosso despreparo seja tamanho e nos enganamos com a ilusão de que silenciar a existência de quem partiu fará diluir a dor da ausência.

Toda essa experiência com a minha vizinha me fez lembrar de dois livros que li após a morte do meu filho: Agora pode chover, de Celso Sisto e Anna Cunha, e Minha vó sem meu vô, de Mariângela Hadad. 

Os dois livros (que compõem o acervo das Sala de Leitura das escolas municipais de São Paulo) apresentam a morte de avôs. As personagens de ambos buscam nas memórias um caminho para aprender a conviver com a ausência física de quem amam. De que amam, não de quem amavam. Porque a morte não mata o amor.

Em Agora pode chover, acompanhamos uma neta recordar os combinados que havia feito com seu avô, seus gostos e manias. Ela conversa sobre tudo isso com a avó. Com muita leveza e ilustrações delicadas como giz pastel, entendemos o que é um “dia de nó na garganta e azul profundo”.

Já no livro Minha vó sem meu vô, vemos uma esposa retomando antigos costumes para sentir que o marido segue com ela. Sem uma única palavra escrita, a cumplicidade é posta em cores e traços e o casal continua próximo e cúmplice.

O que esses livros têm em comum é a busca do equilíbrio entre ausência e presença. Quando perdemos alguém, a morte impõe ausência e as lembranças são as únicas coisas que possuímos para que nossas pessoas se façam presentes. As recordações são quase que como testemunhos que validam as histórias vividas. Apagar essas lembranças é impor mais uma morte, mais luto. Que haja espaço para escolhermos viver com nossos mortos da maneira que for possível. 

Saiba Mais

Deixa tristeza entrar ê
Molhado
Chora pra aliviar ê
Suado
Chora
Chora

A música Telhado, de Letícia Fialho e Rodrigo Zolet, é um chamamento ao sofrimento. Sim, um chamamento ao sofrimento. Em vez de fugir daquilo que faz doer, vemos a tristeza ser convidada a entrar. A tristeza entra e faz chorar para aliviar e, quem sabe, permitir que a sorte lamba e sol nasça. Telhado também nos traz Obaluaê, orixá responsável pela morte e pela cura.

Imagem: Renata Gibelli

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Escrito por Renata Gibelli

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