Algumas reflexões sobre a Copa do Mundo do Catar 2022

No domingo dia 18/12, ocorreu o encerramento da Copa do Mundo de Futebol – Catar 2022. A avaliação  do evento pode ser realizada sob dois pontos de vista: pela paixão, que envolve os torcedores e as emoções relacionados a um torneio  esportivo desse porte; ou pela razão, que considera a análise aspectos mais profundos, como os interesses políticos e econômicos que envolvem o torneio. Para os amantes do futebol, foi um encerramento com chave de ouro para uma competição muito esperada e que ocorre a cada 4 anos. Vitórias, derrotas, confirmações, surpresas, alegrias e tristezas são comuns numa Copa. Marrocos, por exemplo, foi sensação ao ser a primeira seleção africana a chegar a uma semifinal.  A grande final colocou frente a frente duas seleções até então bicampeãs mundiais e dois dos maiores jogadores dos nossos tempos: pelo lado da Argentina, Lionel Messi, 35, jogador que ganhou tudo o que era possível por clubes, em especial em sua passagem pelo Barcelona da Espanha, mas muito cobrado em seu país pela falta de conquistas por sua seleção, tendo, até então, conquistado apenas uma Copa América, realizada no Brasil em 2021. De outro, pelo lado da França, Kylian Mbappé, 24, jogador com menos títulos por clubes, mas já campeão mundial pela sua seleção em 2018, na Rússia. Outro ponto interessante foi o confronto entre uma seleção europeia multiétnica, a França, com muitos jogadores negros, contra uma seleção representante da escola sul-americana, a Argentina, mas sem nenhum jogador negro no escrete. Isso dividiu a torcida brasileira na final. Torcer para a rival local, mas irmã de continente, Argentina, ou para mais uma vitória da seleção do continente colonizador? Torcer para Messi ou Mbappé? Não torcer para ninguém? Enfim, cada torcedor fez sua difícil  escolha que deve ser respeitada por seus argumentos.

A final em si foi super emocionante, com a Argentina sagrando-se tricampeã após empate por 2×2 no tempo normal, sendo que a França empatou o jogo no final em menos de 2 minutos com dois gols do craque Mbappé após estar perdendo por 2 gols (Messi e Di Maria), mais um empate na prorrogação por 1×1, com Messi fazendo primeiro e Mbappé empatando novamente, e direito à emoção até os últimos segundos da prorrogação com uma defesa milagrosa do arqueiro argentino Emiliano Martinez e uma decisão por pênaltis favorável à Argentina com seu goleiro sendo decisivo de novo ao defender uma das cobranças.

A seleção brasileira acabou, mais uma vez, saindo precocemente nas quartas de final com a derrota nos pênaltis para a Croácia, após empate no tempo normal (0x0) e na prorrogação (1×1). Normalmente canalizadora da paixão dos torcedores em época de Copa, esse ano a seleção  gerou sentimentos contraditórios nos brasileiros, fruto da polarização política do país e do distanciamento da maioria dos jogadores da realidade do povo. Enquanto 33 milhões de pessoas passavam fome e muitos estavam na fila do osso para se alimentar devido à crise econômica e social pela qual passa o Brasil e convivíamos com  o descaso do governo Bolsonaro com os mais carentes,  jogadores e ex-jogadores da seleção comiam carne folheada a ouro no Catar. O principal jogador da nossa seleção, Neymar, contribuiu muito para esse afastamento de parte da torcida devido a seus posicionamentos e polêmicas, como prometer dedicar gols e o possível título ao presidente Bolsonaro, mesmo diante da catástrofe que o seu governo representa. Além disso, a própria camisa da seleção acabou virando símbolo dos seguidores do presidente de extrema-direita nesse último período, o que acabou agravando a aversão de parte da torcida pela seleção, assim como o alinhamento político de diversos jogadores com o então presidente. Claro que havia exceções e o fato do Richarlison, jogador simpático, acessível, consciente e engajado a causas sociais, ter feito os dois gols da primeira vitória brasileira no torneio contra a Sérvia, acabou aliviando tensões e trazendo de volta boa parte da torcida para a seleção. 

Durante o período da competição, os olhos e lentes se voltaram para as partidas de futebol, para as estrelas dos times, lances espetaculares e polêmicos, vitórias, derrotas, zebras, torcidas e pouco se falou sobre a situação social e política do país sede em si, o Catar, um dos mais ricos do Oriente Médio, mas uma ditadura que convive com a desigualdade social e o desrespeito aos direitos dos trabalhadores que ergueram os belos estádios usados no torneio. Sabe-se de centenas, talvez milhares de mortes dos trabalhadores, em sua maioria imigrantes de países pobres da região (Índia, Nepal, Sri Lanka, Bangladesh, Paquistão), devido às péssimas condições de trabalho do país. O próprio governo do Catar assume entre 400 e 500 mortes, mas os números podem ser muito maiores. Outra questão é o desrespeito aos direitos das mulheres, dos LGBTQIA+,  a censura à imprensa e total desrespeito aos direitos humanos em geral. Portanto, nunca é demais reforçar que o Catar é um emirado absolutista governado sem o respeito a uma Constituição, onde não há partidos políticos, oposição. Uma ditadura. Um governo autoritário que tentou esconder durante os 30 dias de competição as mazelas que as populações vulneráveis enfrentam no seu dia a dia há anos e investiu muito para tentar passar uma imagem positiva do país.

Sob o ponto de vista econômico, na ótica da FIFA, a Copa foi um grande sucesso, gerando lucro estimado de 7,5 bilhões de dólares, 1 bilhão a mais que a Copa da Rússia 2018. Apesar da proibição da venda de cerveja dentro dos estádios feita de última hora pelos governantes do Catar, o que frustrou a marca de cerveja que é uma das principais  patrocinadoras do torneio em mais uma prova do caráter autoritário de seus governantes, o resultado final deve ter agradado bastante os cartolas que comandam a FIFA. O investimento do país sede para vender para o mundo uma imagem positiva é estimado em 220 milhões de dólares, gastos na organização do torneio. A presença do sheik Tamim bin Hamad Al Thani, Emir do Catar, sorridente na entrega das medalhas e troféus, em parceria com Gianni Infantino, presidente da Fifa, são simbólicos nesse sentido, O futebol não foge da regra de grande negócio, na lógica capitalista, onde o lucro vem à frente das pessoas e das causas políticas e sociais.  

A escolha de um país  em que há uma ditadura que persegue mulheres, LGBTQIA+, imprensa, explora trabalhadores imigrantes e fecha os olhos de forma conveniente  para diversas situações de opressão, serve como oportunidade de debater as questões políticas e sociais essenciais aos nossos tempos, como o combate aos racismo, à xenofobia, ao machismo, à LGBTQIA+fobia e, principalmente, à desigualdade social e a pobreza daqueles que vivem longe da carne folheada à ouro. A mensagem transmitida na Copa reforça que vale tudo pelo lucro, inclusive captar, cooptar e usar a paixão pelo esporte mais popular e mais difundido pelo mundo para atingir o lucro  que  vai garantir a boa vida e os privilégios de seus dirigentes e de uma casta de jogadores, enquanto a maioria dos adeptos do futebol, os torcedores, ficam com os restos e migalhas oferecidos pelo capitalismo, assistindo anestesiados a seus ídolos desfilarem em campo. Às vezes, se faz necessário separar a paixão da razão para enxergar o que está além da superfície também no esporte paixão nacional e mundial.

Imagem: Edi Vasconcelos/FolhaPress

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Escrito por Prof. Betinho

Roberto Bezerra dos Santos, professor Betinho, é formado em Letras pela USP e atua na rede pública de ensino desde 1996, sendo desde 2002 professor concursado de Língua Portuguesa no município de São Paulo e desde 2003 no município de Diadema. Ativista cultural, do movimento negro (Círculo Palmarino) e Hip Hop, é presidente de time de várzea (GRE Congregação Mariana). Facebook: professorrobertobetinho Instagram: profbetinho Twiter: profbetinho1973

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