No contexto do dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, a coletiva apresenta a historia de Janaina Fidell

Novamente sábado e o som do berimbau se mistura com o atabaque chamando todos e todas. Ela está ali, observando a roda do grupo Novas Raízes, deixando que suas lembranças sejam povoadas de tantas crianças, jovens e adultos que acompanhou na iniciação desta arte, deste conhecimento ancestral: a Capoeira. Estamos falando de Janaina Fidell, a professora Pantera, que desde finais do século passado utiliza a capoeira como ferramenta de libertação, respeito e igualdade.

Janaina nasceu no bairro de Americanópolis, em meados dos anos setenta, filha de pais que chegaram em São Paulo vindos de outras regiões do Brasil em procura de melhores condições econômicas. Pai operário e mãe empregada doméstica que com exemplos concretos de vida a encheram de valores que a acompanham e a fortalecem no cotidiano. Do pai, um gaúcho negro, aprendeu o valor da resistência através da cultura, ele através do samba e Jana agora por meio da capoeira. A mãe, uma mulher forte com antepassados indígenas, de convicções nítidas, que soube transmitir afeto e contenção e a estimulou a concretizar seus sonhos. 

Começou a jogar capoeira, apesar da negativa do pai, que achava esta prática pouco feminina. Mas, com ajuda da mãe e a teimosia que a caracteriza, fez desta arte seu estilo de vida. O pai não estava longe da realidade pelo fato da capoeira ser historicamente um espaço ocupado na maioria das vezes por homens, mesmo assim em 1995, na zona sul de São Paulo, ela se somou ao grupo do Mestre Borracha, parte da família Santamarense. O mestre sempre a motivou para a autossuperação e apresentou a riqueza de ser parte de um coletivo cultural que potencializa raízes e cria asas. Desde o início, seus parceiros foram majoritariamente homens, o que de fora podia ser lido como um espaço hostil para se desenvolver e progredir. Na região, ela não encontrou lideranças femininas dentro da capoeira, mulheres negras capoeiristas nas quais poderia encontrar representatividade, mas isso não fez com que ela desistisse, pelo contrário, fortaleceu-a para resgatar, junto a outras, a identidade ancestral desta minoria vulnerabilizada e invisibilizada na capoeira. Ainda há um longo caminho a percorrer para combater a desigualdade de gênero dentro deste espaço, especialmente quando se considera o baixo número de mulheres na condição de mestra, mas Pantera é uma das tantas que encorajou e encoraja muitas meninas a se somar e lutar por protagonismo dentro dos grupos de capoeira.

Jana abraçou a arte de ensinar a capoeira, quando, olhando a realidade de seu entorno, reconheceu que as crianças de seu bairro não contavam com espaços de lazer, esporte e inclusão. Um determinado dia, uma mãe se aproximou dela exibindo a preocupação pelo seu filho que tinha diagnóstico de hiperatividade e que precisava de algum espaço onde ficar, logo sugeriu que Jana abrisse um espaço para ensinar capoeira para as crianças. Assim foi como a semente de um novo grupo começou a germinar. O primeiro espaço foi na sua casa, onde cada dia de treino tinham que mover os móveis, arrumar o espaço para a roda e criar uma atmosfera favorável para transmitir não somente os golpes e gingas, mas também a filosofia própria da capoeira que ensina a importância da roda grande, a roda da vida, onde somos convidados a resistir e lutar coletivamente por uma vida melhor. 

Logo após, através de um convite muito especial, forjou um espaço de capoeira na comunidade Vila das Pratas – Vila Império –, onde em contato com adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social compreendeu a importância de oferecer a capoeira como ferramenta para que eles a conhecessem e assumissem mais a história de seu povo, seus valores, assumindo sua identidade. Cada encontro com eles e elas confirmava em Jana a importância de oferecer espaços de cuidado, de respeito e segurança, criando momentos de reflexão que aconteciam nas rodas de conversa, que se davam antes ou depois dos treinos. Neste contexto, ela vislumbra a força da capoeira, como ferramenta educacional e seu papel como educadora popular. Compreendendo a educação popular desde sua posição emancipatória, desde a opção política pedagógica que a chama para fortalecer capacidades e provocar um compromisso com a mudança que a realidade exige, vinculada ao entendimento da luta social da capoeira, que serve como ensinamento não apenas para a roda da capoeira, mas também para vida.

Como educadora popular, também passou por profundas transformações, a partir das oficinas que ela dava de capoeira no CEJOLE (ONG) e no Frei Tito (Cidade Júlia), onde chegou a dar oficinas para mais de 180 crianças e adolescentes, conseguiu pagar seus estudos de pedagoga e, com esta formação, obter novas ferramentas para transmitir esta arte que vincula música, cultura, histórias, afeto e movimento.  

Ela também teve a possibilidade de dar aulas de capoeira em outros lugares, realizou atividades em Minas Gerais, no Centro Educacional São Tomás, e compartilhou o poder revolucionário da capoeira na Argentina, pelo período de dois anos, mas, ao retornar para Americanópolis, sintonizou rapidamente com a necessidade de construir por meio da capoeira uma vida melhor para as crianças, adolescentes e jovens no bairro. Já perdeu a conta de quantas crianças, adolescentes e jovens deu aula de capoeira, mas é significativo, ao caminhar pelo bairro, quantos e quantas se aproximam para cumprimentar e agradecer o tempo compartilhado.

Na roda e na vida sempre compreendeu que nada pode fazer sozinha, que há muitas opressões para se enfrentar, de gênero, raça, classe e tantas outras que se encontram entrelaçadas, pelo que sempre procurou a articulação territorial, o acompanhamento integral, somando outros e outras, entendendo que a luta por outro mundo seria incompleta se deixasse de lado o enfrentamento a alguma destas opressões. Como fala a cantiga de capoeira “Quebra a cabaça e espalha a semente” sempre tenta estimular aos adolescentes e jovens a difundirem a capoeira como importante manifestação da cultura brasileira, especialmente na comunidade, e a serem multiplicadores e oficineiros desta arte. 

Atualmente, é a coordenadora do Grupo de Capoeira NOVAS RAÍZES que a cada sábado (das 8h30 às 11h30) atende gratuitamente mais de 30 crianças, adolescentes e jovens. Nesse espaço, realiza desde treinos básicos da Capoeira como golpes, acrobacias, orientação em instrumentos, contragolpes e floreios, sempre lembrando de transmitir a força ancestral desta prática dialogando sobre a história e filosofia da Capoeira e da cultura afro-brasileira. O grupo está cumprindo 20 anos de trajetória e reconhece que seus passos vêm de longe. O principal objetivo do espaço é a promoção da valorização da vida, da cultura afro-brasileira e a defesa do direito à cultura, esporte e lazer de crianças, adolescentes e jovens. No caminho já percorrido, se continua confirmando que o Novas Raízes não abrange apenas treinos e rodas, mas potência a noção de convivência pacífica e diversa, preocupados e preocupadas em manter viva a tradição para que se propague o valor das raízes às novas gerações.

Imagens: Acervo pessoal de Janaina Fidell

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Escrito por Coletiva de Mulheres

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