O Brazil tá matando o Brasil

O Brazil não merece o Brasil
O Brazil tá matando o Brasil
Jereba, saci, caandrades,
cunhãs, ariranha, aranha
Sertões, guimarães, bachianas,
águas Imarionaíma, ariraribóia
Na aura das mãos de jobim-açu
Uô, uô, uô
(Querelas do Brasil – Maurício Tapajós e Aldir Blanc)

Ao longo dos últimos 5 séculos, a Terra Brasilis vem buscando se entender e mostrar-se compreensível, tarefa incumbida a inúmeros intelectuais que esboçaram o espectro do que seria a terra dos tupinambás e tupiniquins. Por séculos, lutas foram travadas, onde indígenas e negros lutaram por liberdade e súditos portugueses defenderam os interesses de sua alteza o Rei de Portugal (ou da Espanha, durante a União Ibérica), assim como os inconfidentes, os insurgentes e os revoltosos defenderam novos modelos de organização social, embora a maioria não rompendo com o modo de produção capitalista.

Como o Brasil é um país em construção a partir de uma miscelânea étnica, que sempre reproduziu o modelo baseado nas experiências europeias, estadunidenses e asiáticas, tentativas de experimentar novos modelos são abortadas antes que a experiência dê satisfatórios resultados. Ao longo do processo de formação, tivemos avanços e recuos. Um dos avanços foi o fim do bipartidarismo e o surgimento de vários partidos políticos, das mais variadas estirpes ideológicas, embora algumas de concepções duvidosas. Entre esses, está o Partido dos Trabalhadores, fundado na ideia de um partido de massas, buscando se contrapor ao cenário então posto. O partido, dividido internamente em vários grupos, ensejou importantes debates na política nacional. Uma delas foi a adoção dos Conselhos Populares e a formação dos Núcleos de Base, mecanismos de participação direta.

Neste texto vamos analisar a experiência dos núcleos de base adotados no início da formação do Partido dos Trabalhadores e traçar um paralelo com a proposta pannekoekiana de Conselhos de Trabalhadores, proposta que aparece como mecanismo de participação de todos os indivíduos interessados adaptada à realidade dos grandes centros demográficos sendo, portanto, um exemplo de democracia direta.

A concepção pannekoekiana de Conselhos Operários

“Todo poder ao sovietes!”

Anton Panneköek[1], em Os Conselhos Operários[2], aponta a democracia como a forma natural de organização das comunidades humanas primitivas, com todos os membros do agrupamento participando das decisões em absoluta igualdade. A organização em pequenos agrupamentos permitia que todos fossem ouvidos, reservando aos mais velhos – portanto com mais conhecimentos – a decisão final. A democracia aqui era não a expressão de uma concepção teórica sobre a igualdade dos direitos de toda a humanidade, mas uma necessidade prática do sistema econômico. Já nas comunidades, demasiado amplas para se reunirem em uma assembleia única, os indivíduos delega a representante a tarefa de resolvem os seus problemas. Assim, os cidadãos das cidades livres da Idade Média governavam-se através de conselhos de cidade e as burguesias de todos os países modernos possuem o seu parlamento. Quando falamos de administração das coisas públicas por delegados eleitos, é sempre nos parlamentos que estamos a pensar, e é, portanto, sobretudo com os parlamentos que teremos de comparar os Conselhos Operários se quisermos descobrir os seus aspectos essenciais. É evidente que dada as grandes diferenças existentes tanto entre as classes como entre os objetivos, os corpos representativos correspondentes terão que ser essencialmente diferentes.

A massa de trabalhadores foi privada do direito de voto, pois, por ser numerosa, poderia controlar o parlamento e, consequentemente, o poder. É por isso que, durante todo o século XIX, a democracia política se converteu no objetivo de sua ação política: participar do jogo. Esta classe estava apegada à ideia – e sempre está – de que a disputa no campo da democracia burguesa, mediante o sufrágio universal, legaria o poder governamental e, desse modo, seria capaz de abolir o capitalismo por dentro da sua estrutura, ou seja, a simples tomada do poder significaria a sua emancipação. Para manter o status quo, a burguesia sinalizava um poder ao povo que, na prática, não se efetivava. Ao contrário, a ilusão de participação arrefecia a luta. O direito de voto se estendeu paulatinamente, chegando ao direito de voto igual para todos, homens e mulheres, e nada mudou. A democracia parlamentar, longe de ser um perigo ou uma fonte de debilidade para o capitalismo, é uma de suas forças.

A massa explorada escolhe entre os seus pares, em muitos casos, estimulada por suas lideranças sindicais, aquele que o representará no parlamento, legitimando o modelo parlamentar burguês. O deputado que, dentro do status quo, lhe garantirá as migalhas que despencam da farta mesa do burguês. Uma vez no cargo, se acostumam com o pomposo salário e as benesses que o cargo propicia e buscam se perpetuar no poder. O argumento de que a característica essencial da democracia é o próprio povo eleger os seus dirigentes não se realiza na democracia parlamentar, pois o objetivo da democracia é assegurar o domínio burguês, mantendo as massas a ilusão de que podem decidir a sua própria sorte. Repete-se a cena do mágico no palco: um ilusionismo onde todos sabem que estão sendo enganados, mas o desejo de descobrir como o truque é feito é maior que a chaga de ser enganado. Temos um jogo com cartas marcadas. A suposta igualdade que o capitalismo prega – fomentado em um dos lemas da Revolução Francesa – Igualitè – não se aplica ao proletariado, assim como os demais lemas – Libertè e Fraternitè – cabe apenas a burguesia.

Os núcleos de base e os conselhos populares do PT

A emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores

As assembleias dos Metalúrgicos do ABC, nos anos de 1978, 1979 e 1980, levavam até 150 mil operários para o Estádio Municipal Arthur da Costa e Silva (hoje renomeado Estádio Primeiro de Maio). Os discursos dos líderes sindicais, com destaque para o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema[3], Luis Inácio da Silva, o Lula, e a participação direta dos trabalhadores nas decisões foram o mote para a criação de um partido de massa.

Desde a eleição de Gilson de Menezes[4], a grande máquina eleitoral petista cresceu e esteve entre os dois primeiros colocados em todas as eleições diretas da Nova República, saindo vitoriosa em 4 delas (2002, 2006, 2010 e 2014). Neste momento da campanha eleitoral de 2022, o cacique petista lidera a corrida para mais um mandato, cercado de liberais “arrependidos” ou receosos de não terem mais um cargo na administração.

O processo de formação do Partido dos Trabalhadores[5] teve participação de grupos heterogêneos. O seu estatuto de fundação trazia em seu artigo 72º que “as decisões importantes dos Diretórios e das Bancadas deverão ser tomadas após consulta aos Núcleos de Base do Partido (…)”. Submeter as decisões importantes aos Núcleos de Base corroborava com o objetivo estratégico do PT: a conquista do socialismo e a construção de uma sociedade socialista no Brasil e, para tal, “(…) as formas de organização fundamentais que surgem na luta cotidiana no interior da sociedade burguesa e que têm maior importância para a luta socialista são as que nascem da auto-organização dos trabalhadores, as formas de luta pelo controle operário nas fábricas (a partir da generalização das comissões de fábricas e empresas) e de controle popular nos bairros.”, apontava as resoluções políticas do 5º Encontro Nacional (1987), realizado no Senado Federal – DF. Ao criar os Núcleos de Base, espalhados por diversos bairros, principalmente os mais carentes, as demandas eram elencadas considerando a realidade local. Desta forma, o Partido dos Trabalhadores democratizava as decisões do partido, apesar da necessidade da palavra final da Diretoria Executiva moldar as propostas da base ao seu projeto de poder. Isso contribuiu para que o PT se tornasse um partido de massa e servia como mecanismo de formação de quadros. Originalmente, as lideranças petistas tinham ciência de que o caminho para o socialismo passava por um processo de conscientização da classe trabalhadora de que ela deve ser sujeito do processo e não objeto. E os Núcleos de Base tinham um papel importante para o debate com a classe trabalhadora e os movimentos sociais de uma forma geral. O procedimento também ajudava na formação de quadros, primordial para um partido em formação. Contudo, quando os primeiros petistas foram eleitos, continuar formando quadros poderia gerar conflitos internos. A proposta inicial de limitação de mandatos logo foi abandonada: a luta por uma sociedade melhor é deixada de lado e uma nova carreira se avizinha. Líderes que já estavam fora do chão da fábrica ou de salas de aulas, principais expoentes no jovem partido, em atividades ligadas a sindicatos, trocam a burocracia sindical pela burocracia parlamentar e partidária.

Contudo, quadros do partido ainda defendiam uma proximidade com a base. Em longínquo ano de 1988, uma reportagem da Folha de São Paulo (16/12/1988) apontava um debate interno do partido para as eleições daquele ano sobre a criação dos Conselhos Populares. A controvérsia era quanto à natureza, forma e atribuições de tal elemento político. Havia duas concepções: um conselho com funções consultivas, defendida por Plínio de Arruda Sampaio e outra de um conselho com funções deliberativas, defendida pelo grupo ligado a Luiza Erundina. Este teve a preferência das bases, uma vez que restringir já de inicio as atribuições do conselho significaria sua anulação como entidade de participação popular, impedindo-o de ser uma instância a mais de assistência aos representantes eleitos (vereadores), dos órgãos administrativos e do Prefeito. Era preciso que o conselho surgisse como um elemento político externo à administração Municipal ou seria sempre uma entidade vazia. Nos anos seguintes, práticas assistencialistas, com o intuito de se reeleger, passaram a imperar. O partido que defendia o socialismo se adapta ao modelo partidário brasileiro e se transforma em uma máquina de ganhar eleições. Nos pleitos seguintes, crescerá constantemente, até o tombo propiciado pelo movimento que vai levar ao impeachment de Dilma Rosseuff e ao antipetismo, das eleições de 2018. O partido sairá ferido, mas não mortalmente. O presidente de honra do partido amargará 580 dias de prisão para despontar como candidato favorito a mais um mandato. As resoluções do congresso do PT de 1987 exaltavam a proposta inicial do partido: a conquista do socialismo e a construção de uma sociedade socialista no Brasil. Para tal, o partido apontava a necessidade básica da classe trabalhadora se transformar na classe hegemônica e dominante no poder de Estado, promovendo uma mudança radical na política do país. O partido entendia que era uma proposta nova e diferente em relação às formas de luta e de organização dos trabalhadores em seu cotidiano da época (o que não progrediu muito nos últimos anos). Uma das dificuldades apontadas é a existência de inúmeras propostas de intervenção, o que levaria a muita discussão e pouca ação. Contudo, isso é uma tradição na esquerda: o debate. Mas os defensores do centralismo democrático discordam.

Considerações Finais

A história do Brasil é pautada por lutas libertárias sufocadas quase que imediatamente e longos períodos de ditaduras extremamente violentos. Extinto o bipartidarismo em 1979, vivenciamos o surgimento de partidos políticos das mais variadas concepções ideológicas, embora algumas não explícitas e adaptadas aquele que controla o executivo naquele momento. Visando a emancipação e a inclusão política das massas populares, temos a criação do Partido dos Trabalhadores, proposta de um partido de massa com o intuito de adentrar a classe trabalhadora no espaço onde é discutido o seu destino.  O partido ensejou importantes debates na política nacional. Um deles foi a adoção dos Conselhos Populares e a formação dos Núcleos de Base, mecanismos de participação direta. Essa proposta de consulta popular estava prevista no Estatuto do Partido dos Trabalhadores, elencada por segmentos internos como forma de democratizar o debate. Assim, os Conselhos Populares e os Núcleos de Base marcaram o início dos debates petistas, mas foi abandonado com a ascensão política de diferentes lideranças assim como a aproximação a históricos “Coronéis” dos rincões do país, último reduto vencido pelo PT. A proposta petista remete a organização da classe trabalhadora em conselhos, ideia defendida por Anton Panneköek, a qual permite compreender e discutir as melhores decisões, assim como fazê-las concretizar, em um mecanismo de autogestão com o trabalhador representado a partir do seu grupo de origem, e, após os debates, as diferentes propostas seriam submetidas ao sufrágio dos diretamente interessados. As diferentes proposituras partiriam do espaço onde o grupo realiza as suas atividades laborais, qual seja a fábrica, a oficina ou do complexo industrial onde atuam e retornariam para nova rodada de debates. A democracia era a forma de colaboração e autogoverno da classe trabalhadora, isto é, os despossuídos, que nada tem além de sua força de trabalho para vender, e nada a perder a não ser as correntes que os prendem. Ao abandonar o debate nos Núcleos de Base, o petismo abdicou do processo da conscientização da classe trabalhadora e dos movimentos populares, assim como o emprego da ação direta como forma de chegada ao poder. O caminho traçado foi o da via parlamentar, com conciliação de classes como o mote. Os discursos ao longo da gestão Lula (2003-2010) sobre a ampliação do poder de compra dos estratos sociais associados às classes C, D e E, e de que “nunca na história deste país banqueiros e empresários ganharam tanto dinheiro” reafirmam o mote do líder petista de que a mediação seria o caminho a seguir. 

Para tal, uma maioria no Congresso Nacional – Câmara de Deputados e Senado Federal, posto o modelo bicameral – se faz necessária. Para atingir a maioria no Congresso e a desejada governabilidade, é garantida pela cessão de cargos estratégicos (e altamente rentáveis) ao Centrão[6]. A partilha do poder vem disfarçada de “dualidade de poder” [7]. As experiências da origem do partido – Conselhos Populares e Núcleos de Base – que poderiam (e deveriam) ter sido reforçadas e aprimoradas – foram abandonadas. Convém lembrar que a organização em Conselhos representa a mais elevada forma de democracia, a verdadeira democracia, pois é a democracia da classe trabalhadora.

Saiba Mais

CLAUDIN, F. (2013) A Crise do Movimento Comunista. São Paulo: Expressão Popular.

FERNANDES, Florestan (1990). A transição prolongada: o período pós-constitucional. São Paulo: Cortez

MARX, K; (2005). Crítica da Filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo.

PANNEKOEK, A; (2018) Os Conselhos dos Trabalhadores; Curitiba/PR:L-DOPA.

SECCO, Lincoln; (2000) A História do PT; 4º Edição. São Paulo: Ateliê Editorial.


[1] Anton Panneköek, (1873-1960), é um filósofo marxista holandês, conhecido como o teórico dos conselhos.

[2] Há uma tradução brasileira de 2018, com o título de Conselhos de Trabalhadores (ver referências). 

[3] Hoje nomeado Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, surgiu em 1933 com Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e englobava toda a região, pois só havia a cidade de São Bernardo nesta época. O Sindicato do ABC liderou importantes greves operárias ocorridas durante a Ditadura Militar brasileira.

[4] Sindicalista, líder da primeira greve dos metalúrgicos do ABC, na Saab-Scania. Foi o primeiro prefeito eleito pelo partido, em 1982.

[5] O Partido dos Trabalhadores foi fundado por militantes de oposição à Ditadura Militar, sindicalistas, intelectuais, artistas e católicos ligados à Teologia da Libertação, no dia 10 de fevereiro de 1980, Foi fruto da aproximação entre os movimentos sindicais da região do ABC, que organizaram grandes greves entre 1978 e 1980, e militantes antigos da esquerda brasileira, entre eles ex-presos políticos e exilados que tiveram seus direitos devolvidos pela Lei da Anistia.

[6] Centrão refere-se a um consórcio de pequenos partidos políticos sem uma orientação ideológica específica e que têm como objetivo assegurar uma proximidade ao poder executivo de modo que este lhes garanta vantagens e lhes permita distribuir privilégios por meio de redes clientelistas. 

[7] Dualidade de Poder é uma referencia ao período entre a Revolução de Fevereiro e a Revolução de Outubro de 1917 vigorou um processo conhecido como duplo poder na Rússia.

Imagem: Bruno O.

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