Enfrentando e vencendo desafios

Neste mês de novembro, em que comemoramos a Consciência Negra, o Expresso Periférico foi até o MOVA (Movimento. de Alfabetização de Jovens e Adultos) entrevistar uma pessoa muito especial: a educanda Marlene Maria de Sousa. Mulher negra, que aos 81 anos de idade, mesmo com toda sua sabedoria e experiências de vida, continua cativando os saberes da escrita e da leitura, o que lhe foi negado no período mais apropriado para o aprendizado.

Destacamos que a população africana que foi arrancada da África para o Brasil e submetida à escravidão e seus descendentes, após o que ficou conhecido oficialmente como “Abolição da Escravatura” a partir de 1888, foi excluída da sociedade e em algumas regiões, como no Nordeste, passou a trabalhar de “meeiro, agregado, assalariado agrícola, morador de condição, em usinas de açúcar e álcool…”, como aponta Clóvis Moura no livro: O Negro: de Bom escravo a Mau Cidadão? pág 51. É neste contexto, do trabalho em usina, que se encontra a família desta mulher que vai nos contar um pouco da sua história.

Ela tem sabedoria
E muito a nos ensinar
Deixou a terra querida
E aqui veio morar
Criou toda a família
E continua a lutar.

Eu Tenho 81 anos de idade, nasci e vivi por um tempo na fazenda do engenho, lá em Pernambuco, depois mudei para Recife, que era um dos meus sonhos, ir para cidades grandes. Meu pai trabalhava de marceneiro no engenho e minha mãe era lavadeira do dono da fazenda. Me casei lá, tenho 2 filhas e 2 filhos. Atualmente sou viúva. Vim para São Paulo em 1976. Chegando aqui, morei na Vila Missionária, Joaniza, Jardim Miriam e atualmente vivo na Cidade Júlia.

Apesar das dificuldades, eu gostava da minha terra, principalmente do Carnaval, que é muito animado. Mas, para trabalhar era muito difícil, principalmente para os homens que não tinham profissão. Esses dependiam do trabalho do corte de cana para as usinas, ou então tivesse o que eles chamam de padrinho e fizesse a indicação para algum emprego. Para as mulheres não era tão difícil assim, as que não tinham estudos trabalhavam de doméstica. Meu marido era de Caruaru, tinha estudado um pouco, mas, mesmo quando arrumava emprego, o salário era muito pouco.

Tomando decisões
Diante da realidade
Pegando a estrada
Deixando saudades
Na terra da garoa
Por uma oportunidade

Em 1975, houve uma enchente muito forte no Recife. Perdemos o pouco que tínhamos, então chamei o meu marido para vir para São Paulo, ele não queria porque achava que podia não dar certo, eu disse pra ele que quem estava sem nada, qual a diferença que fazia? Aí ele resolveu vir. Naqueles tempos era mais fácil arrumar serviço aqui, aí ele conseguiu entrar na Varig e trabalhou lá por 26 anos e depois veio a falecer. Nesse tempo, eu trabalhava de doméstica na Casa de Formação dos Seminaristas aqui na região e eles me deram muito apoio.

Aqui na região, ainda nos anos 80, comecei a participar de reuniões de moradia, chamado de Movimento de Favelas. Foi quando conheci os padres José, depois o Rezende e uma liderança, o Gecino, que eram do movimento. Tentamos fazer um movimento de empregadas domésticas para falar sobre nossos direitos, mas não foi pra frente, elas diziam que não precisavam porque as patroas eram boas e davam de tudo: roupas e presentes. Elas não entendiam que precisava ter registro na carteira e outros direitos. Faltava entendimento.

Consciência e negritude
MOVA no aprendizado
Resistir na juventude
E também na maioridade
Buscando adquirir
O que lhe foi negado.

Depois disso, começou a se falar sobre Consciência Negra, e tinha as irmãs que nos ajudaram, explicando essas questões e fazendo atividades, com danças negras. Houve uma campanha da fraternidade da Igreja Católica falando sobre este tema. Aí se criou um grupo de resistência negra, chamado Bakhita, onde a maior participação eram mulheres, das quais a maioria já faleceu, como: dona Palmira, Francisca, Luiza, Cecilia, Célia, Geralda, Eufrásia. Desse grupo, agora sobramos eu, a Ana e a Conceição que continuamos participando. A Conceição é uma das responsáveis por este trabalho e é tia da Rosária que participa no Frei Tito. Nossas atividades acontecem na comunidade São João Batista, no Jd. Luso.

Minha história no MOVA tem idas e vindas, desde quando começou, com a Luiza Erundina. Depois retornei, estou aqui e aprendi muito com a Eliana e agora com a Duda, que é muito boa. Ainda não sei tudo, mas aprendi muitas coisas. Não pude estudar quando era criança, pois, a escola que tinha, ficava a sete léguas de distância da fazenda e tinha que ir a pé. Os filhos do dono da usina estudavam, porque tinham cavalos para ir montados. Além disso, meu pai dizia que não precisa estudar, para não ficar escrevendo cartas para macho. Aos sete anos, a gente já tinha que trabalhar na roça, era como uma escravidão.

Está sempre atenta
Onde mora e atua
Observa a juventude
E moradores de rua
Gosta desta cidade
Como sendo sua.

Uma das preocupações que tenho é com a juventude. A situação pra eles está muito difícil. Como moro no mesmo local há quase 30 anos, vi eles crescerem. Muitos deles não trabalham e nem estudam. Quando estão usando drogas, ao me verem passar na rua, me chamam de vó e escondem o cigarro. Não sei se é coisa da minha cabeça, penso que jovens são pessoas alegres, mas não vejo alegria nos jovens hoje não, como era antes: não fazem festas, não brincam, não dão risadas. Fico olhando meus netos: um não gosta de conversar e nem dá risadas e um está passando por depressão. Tudo bem que eles não gostam de ficar papeando com gente de idade, mas pelo menos entre eles. Sempre digo que é preciso ter alegria e esperança.

Outra coisa que quero falar que me incomoda muito, são pessoas morando nas ruas e isso vem aumentando. É muita gente e entre eles tem jovens também. É só passar ali no Jardim Miriam, ao lado do Poupatempo, e ver quantas pessoas estão ali naquela situação. Se percebe que a maioria é gente negra. É muito triste isso. Se for lá no Centro da cidade, então, é um absurdo. Mas, apesar de tudo isso e da violência que enfrentamos nesta cidade, eu gosto muito de morar em São Paulo: tem muitas coisas boas também.

Saiba Mais

Gestão da Luiza Erundina PT, entre 1989 a 1992.

Campanha da Fraternidade em 1988 – “Fraternidade e o Negro”.

Bakhita 1: Nome de uma santa africana do sec. 19.

Bakhita 2: Nome em homenagem à primeira mulher africana trazida para o Brasil. Instituto de pesquisa Outros novos, R.J.   

Imagens: Acervo da entrevistada

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