A poesia fazendo o poeta e o poeta fazendo a poesia

O expresso periférico traz até vocês, caras leitoras e leitores, a entrevista de um dos lutadores poetas da nossa região, que sabe extrair dos minerais sociais aquilo que é de mais precioso, que está presente, pulsante e latente na periferia desta cidade, ou seja, a cultura. Sabemos que as políticas de fomento à cultura, além de não chegar na totalidade a quem produz arte, são insuficientes para garantir uma vida digna de forma permanente para produtores e produtoras. No caso do nosso entrevistado, tem um agravante a mais, pois, o estado brasileiro, através da negativa das perícias médicas, tem lhe negado o seu direito a algum benefício. Mas, apesar disso, o nosso poeta, mantém o bom humor, sempre disposto a um bom papo e claro, poesias na ponta da língua e sempre renovando a resistência e existência.

Com bom humor
Disposição e alegria
Vai contar sua história
Morando na periferia
Cultivando a cultura
Com muita sabedoria.

Meu nome é Daniel Alexandrino, sou solteiro, nasci e cresci aqui no Jardim Santa Amélia.  Tenho 5 irmãos e meus pais já não estão mais vivos. Embora estivesse morando por um tempo em outros bairros da cidade, sempre tive um olhar voltado para a Zona Sul. Voltei para cá e continuo morando aqui. Nesse retorno, foi muito interessante, porque voltei com várias experiências, ideias e cultivando novas possibilidades. Atuo em diferentes áreas da cultura: ator, poeta, documentarista e produtor cultural.

A minha entrada para a área da cultura foi se dando no processo. Ainda quando era garoto, comecei a participar de atividades de grupos de jovens na igreja. Essa participação foi acrescida quando recebi um convite para participar de uma peça de teatro do grupo da escola Tabacow, lá no Mar Paulista, onde era bem profissional mesmo. O orientador era o que hoje é o ator Marcos Vicca. Foi aí que aprendi técnicas de expressão corporal, interpretação, vocação, exercícios de voz, recursos que até então desconhecia. Buscando mais aprendizados, fui estudar na escola de teatro Macunaíma.

A arte é um instrumento
Espetáculo e inclusão
No palco dois mundos
Realidade e imaginação
Trazendo a história
Denunciando a escravidão.

Em 1988, no centenário da abolição, fizemos um espetáculo chamado de Negro 13, onde contava a história de um negro escravo, fazendo um paralelo com um negro operário, em dois processos de escravidão que se desenhava dentro do espetáculo. Essa peça foi premiada e eu levei o prêmio de melhor ator naquele momento e isso foi muito bacana. Não sei se era ser ator, mas que queria mesmo era poder comunicar melhor com a comunidade na periferia, e fizemos isso com apresentações em diversas comunidades, escolas, igrejas, padaria e onde fosse possível apresentar. Com as apresentações, gerava muitos debates e reflexões, percebia que isso tirava as pessoas do lugar, então me convenci de que era isso mesmo que queria fazer.

A vivência de poeta e escritor não é nada fácil, se não tiver um grande nicho.  Se a gente não tiver um grande número de contatos, fica sozinho, meio isolado. Existem algumas organizações sociais e culturais que nos abraçam e são abraçadas, também.  São os espaços onde realizam os saraus. São nestes locais que os poetas se encontram, abraçam, trocam palavras, sentimentos, suas poesias. Nos saraus não tem melhor ou pior, quem ganha é a palavra; se soma e faz a gente crescer, enquanto pessoa e socialmente.

Na sociedade racista
A violência é permanente
Só quem é negro e negra
Sabe bem o que sente
Brancos privilegiados
Pele negra excludente.

Na questão racial, eu enquanto negro, sei muito bem do que estamos falando aqui, o quanto trabalhei, me esforcei e o quanto me foi negado. A população negra em São Paulo e no Brasil é vista em segundo plano e está sempre jogada nas favelas, periferias no geral, subempregos e nas prisões. Para a gente sempre sobra aquilo que ninguém mais quer. E mesmo na periferia, onde estamos no mesmo barco, a gente sofre com relação às oportunidades, onde a pessoa branca consegue ser minimamente o gerente da padaria. Os cargos de poder não chegam até as pessoas negras, é uma pena. Colocar fogo na estátua do Borba Gato, um violentador e matador da população negra e indígena, reacende a discussão de quem são realmente os nossos heróis e a necessidade de resgatar a nossa história. Tem uma estátua da Maria Carolina de Jesus, mas fica lá em Parelheiros, mas ninguém sabe o que representa. Precisa colocar a literatura e a história negra nas escolas.

Para combater o racismo, primeiramente, precisa ter consciência real de que ele existe, coisa que a maioria da população negra não entende, porque sempre foi negado a ela esse entendimento de que o racismo está presente e corrói a vida. Às vezes, as pessoas negras não entendem por que não estão em determinados empregos e são discriminadas e não têm seus direitos respeitados. Pessoalmente, já passei por muitas situações de desrespeito, desde que era garoto, sofri violência policial. Quando estava em grupo, percebia a diferença de tratamento, quando tinha abordagem policial, e não podia falar nada, se não podia ser violentado. Isso sem contar as vezes que fui seguido por seguranças em shopping centers.

Foi morar no Grajaú
Nome indígena carajás
Organizando saraus
E a cultura despertar
Empoderando gente
Ocupando seu lugar.

Quando fui morar no Grajaú, queria entender a vida cultural de lá, então fiquei pensando como poderia fazer isso. Aí, surgiu a ideia de fazer um sarau, porque assim ia aparecer alguém que faz e gosta de cultura. No dia 26/01/2014, fizemos o primeiro e foram 7 pessoas, no segundo compareceram 8, então já tivemos um ganho. E assim sucessivamente, continuamos todos os meses, com exceção do período da pandemia.

Esse foi o primeiro contato com a comunidade e a poética local, trazendo a sensualidade poética da periferia. Na continuação, fomos somando com vários outros coletivos culturais da região e hoje está lá o grande sarau do Grajaú, despertando os e as poetas daquele bairro. 

Entre os vários poetas, temos lá o senhor Valdivino, uma pessoa muito simples e que veste seu terno e vai lá cantar uma música do Roberto Carlos. Essa é a referência poética dele, que é uma das coisas mais lindas.

Temos também, o Diones, um rapaz negro, elegante, simples e tímido, trabalha de manobrista, começou a frequentar o sarau com suas poesias e aos poucos foi crescendo e resolveu escrever um livro, chamado de O manobrista do estacionamento do alfabeto. Neste livro, cada texto é todo escrito com uma das letras do abc…, um destes textos traz as personagens Dália e Donizete, onde ele é apaixonado por ela, que é uma dançarina. Um pedacinho do texto que diz:

“Donizete desceu ao derradeiro degrau do domicílio de Dália, e desdenhou a Deus; desgraça, desgraça, desgraça, devo  dinamitar – me…”. Assim segue o texto, tudo com a letra D. 

Ocorreu um episódio, em que o Diones estava no estacionamento ali no Morumbi, lendo o texto para seus amigos, e eles riam muito e, naquele momento, chegou uma senhora da clientela branca e bem alimentada com o seu carro importado. Como ele e o seu colega demoraram alguns segundos para atendê-la e ela não gostou nada da demora, eis que ela perguntou: “do que é que vocês estão rindo”? O colega respondeu: “é porque o Diones estava lendo um dos poemas do livro que ele está escrevendo”. A mulher, com todo desdém do mundo, pergunta: “você quer ser poeta”? Ele olha bem na cara dela e responde com toda segurança: “Não, poeta já sou, o que quero é poder publicar um livro”. Isso demonstra o empoderamento e confiança que adquiriu em estar participando dos saraus e isso é muito gratificante para nós que organizamos os saraus do Grajaú.

Sonhando e trabalhando
Pensando na coletividade
O alimento é a cultura
Dentro da comunidade
Buscando vida nova
Renovando a sociedade

Meus sonhos, nem sei bem, não. Outro dia ouvi dizer que a arte leva pessoas em lugares que a gente nem imagina, onde falava de uma garota que fazia saraus numa escola e agora estava disputando campeonato de slam na França. Mas, o meu entendimento da arte é que ela me trouxe e me deixou exatamente onde eu queria estar, na periferia. Sou de uma geração que achava que dar certo na vida era poder sair da periferia. Não entendo mais desta forma. Para mim, dar certo na vida não é mudar da periferia, mas sim mudar a periferia, crescer e melhorar as condições de vida na periferia, este é o meu sonho, quero que meu filho, as pessoas vivam bem aqui, produzindo arte e cultura, e não precisa copiar ninguém, a periferia tem sua própria linguagem e cultura.   

Encerrando nossa entrevista, quais são os meios de acessar seu trabalho e suas produções?

Bom, vou fazer uma exposição fotográfica, “Um Olho Sol”, além das fotografias focadas na periferia, terá poesias também. Vai ser no Centro Cultural de Santo Amaro, a partir do dia 2 de abril, com coquetel de abertura, às 19h, e ficarei lá até dia 5 de maio de 2024, aberto ao público. Se alguém quiser agendar visitas em grupos, escolas, entre em contato comigo pelo telefone: 967125043.

Minhas redes sociais:
Daniel Alexandrino Facebook.
Sarau do Grajaú Facebook
Sarau do Grajaú oficial Instagram
Alexandrino 396 Instagram.

Imagem: Praça “Pedros”, em homenagem ao Pedro, pai do Daniel Alexandrino e a outros 2 Pedros que lutaram para conseguir esta Praça. Acervo do entrevistado.

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