Descendente de povos Afros e Indígenas.

Trabalhar, estudar e conquistar espaços numa sociedade racista. Em meados de outubro de 2021, num dia de chuva leve com ares de brisa fazendo dançar as folhagens das poucas árvores existentes nas calçadas, onde a respiração da terra foi sufocada pelo asfalto e construções cimentadas, o Expresso Periférico foi visitar e conhecer um pouco da história de uma moradora do bairro Jardim Pedreira, Zona Sul de São Paulo, nascida 36 anos após a abolição da escravidão no Brasil, em 1888.

Assim como um pé de cará-do-ar, que é uma planta ramificadora, nascendo em um espaço onde a luz solar lhe é negada, ela se ramifica subindo pelo tronco das árvores captando energia e produzindo seus tubérculos suspensos. É dentro de um contexto social desfavorável para a população negra, naquele período, que nossa anfitriã demonstrando sabedoria, vigor na sua fala, uma memória admirável e preservando sua religiosidade nos contará um pouco de sua história.

Innocência: Me chamo Innocência Teodorica Santana Julia, mudei para São Paulo em 1949. Minha descendência por parte de pai tem origem de povos trazidos da África no período da escravidão. Minha mãe era originária de indígenas, que já habitavam estas terras. Chegando aqui, morei na Mooca e outros bairros, mas há mais de 30 anos que estou aqui no bairro da Pedreira. Como católica, participo da Igreja Nossa Senhora Aparecida, da qual sou grande devota.

Em Mariana ela nasceu

Em Mariana foi criada

Em Mariana ela estudou

Em Mariana dedicada

Em Mariana pele negra

Em Mariana discriminada.

Innocência: Mariana, embora muita gente não saiba, mas era considerada o berço da civilização mineira, pois tinha grupos escolares, um seminário que comportava mais de 300 alunos . Mesmo os que não queriam ser padres iam estudar lá e depois decidiam o que queriam seguir. Graças a Deus, eu tive muita sorte e, a partir de 1932 a 1935, tive a oportunidade de estudar fazendo a formação primária. Como eu era muito dedicada e sempre tirava notas boas, a professora orientou meus pais a procurar o Colégio Providência, onde as moças estudavam o chamado Normal, para serem professoras do primário. Mas eu fui impedida de entrar pela direção, por ser negra. Mas agradeço mil vezes por não ter conseguido, pois as pessoas negras que conseguiram sofreram muitas humilhações, devido ao preconceito e à discriminação.

Fui agraciada, pois tinha uma família muito boa. Meu pai trabalhava de carpinteiro, marceneiro e como entendia muito de música, dava aulas à noite. Foi ele quem fundou as duas bandas da cidade, uma delas é a 15 de novembro, que ainda existe.  Quem for lá e visitar a sede, vai ver que na parede tem uma foto do meu pai. Minha mãe costurava muito para ajudar a manter a família. Meus avós, quando foram trazidos da África para cá, como escravos, mas como já eram devotos de Santo Antônio, quando saíram de lá, até trouxeram uma imagem que até hoje é uma relíquia da família e se encontra com meus sobrinhos. 

Antes de serem trazidos, eles receberam uma mensagem de que iam sofrer muito aqui, mas logo seriam libertados e foi o que aconteceu. Mas sendo escravo, todos sabem que a pessoa não tem valor nenhum. Mesmo sendo estes que faziam todos os trabalhos de produzir e preparar toda a comida gostosa para os senhores, uma enxada tinha um valor maior do que as pessoas de cor negra. As mulheres negras e meninas eram violentadas sexualmente pelos senhores e sinhozinhos, como algo que se usa e vira lixo. 

Conheceu o chão da fábrica

Ainda na adolescência

Da terra natal a São Paulo

com muita persistência 

Gente de outras terras

De longínquas vivências.

Innocência: Comecei a trabalhar com 15 anos de idade, em uma fábrica de tecidos, depois em companhias religiosas. Em 1949, quando cheguei a São Paulo, entre outros empregos, trabalhei no Moinho Santista tecelagem, onde era muito bom o ordenado. Tinha muita gente imigrante: italianos, alemães e iugoslavos que vieram da Europa, após o esfacelamento daqueles países feito na Segunda Guerra Mundial. Getúlio Vargas, que foi o melhor presidente do Brasil, em um primeiro momento, não queria entrar na guerra, mas chegou o momento em que precisou tomar posição e foi convencido por dois generais a ficar do lado dos Estados Unidos. Um dos meus irmãos chegou a ser convocado, mas não foi para a frente de combate direto, ficou guarnecendo nas fronteiras brasileiras, que são muitas, e até hoje continuam desprotegidas, dando vazão para a passagem de produtos ilegais e drogas.

Com estudos e trabalho

Fazendo a trajetória

Aos noventa e sete anos

Continua fazendo história

Lançar seu livro de poesia

Sua arte na memória.

Inocência: Eu sempre gostei muito de escrever e ler.  Meu livro favorito de poesia é o de Dom Aquino Correia.  Ainda em Mariana, fiz curso de corte e costura, crochê, bordado e depois fiz o Ginásio. Em São Paulo, já depois de casada, fiz a faculdade de Artes Plásticas e isso me ajudou muito nos trabalhos que já fazia. Escrevi o primeiro poema quando tinha 11 anos de idade, a pedido de minha mãe, em homenagem à minha avó que tinha falecido. Depois continuei escrevendo poesia. Sempre leio bastante: quem não lê, não conhece e nem pode aproveitar as coisas boas que existem: é o mundo da cultura. Depois de ter visitado alguns países europeus recentemente, numa excursão religiosa, um dos meus sonhos e objetivos é poder publicar um livro de poemas que já tenho escrito.

Imagem: Bruno O.

Compartilhe:

Deixe um comentário