Conheça um pouco da história de Clair Helena Santos. Mulher de fibra que atua em várias frentes, entre elas o movimento de moradia.

A entrevistada dessa edição é a mulher, mãe, esposa, avó, nora, sogra, educadora social, comerciante, militante do movimento de moradia e de tantas outras causas pela luta por vida com dignidade para todas as trabalhadoras e trabalhadores: Clair Helena Santos.

Educadora social desde a adolescência, já participou do Conselho de Saúde, é comerciante e co-fundadora, junto ao esposo Élio Ribeiro, do Brechó Elio & Clair. Militante do movimento de moradia, conselheira no Conselho Participativo de Cidade Ademar e Pedreira (na gestão Haddad), simpatizante e incentivadora de ações que propiciem a abertura de espaços culturais nas regiões periféricas e de polos que fomentem o empreendedorismo feminino. Amante da fotografia, está sempre registrando com fotos e vídeos todas as atividades no nosso território.

Expresso Periférico –Clair, quais são suas lembranças da infância e juventude aqui na região?

Clair Helena – Nasci em 1958 e o meu nome veio da minha madrinha. Os meus irmãos têm o nome começando com a letra “C e L”: Claudino, Claudio, Cleide, eu, Clarinor e dois irmãos já falecidos, Creusa e Claudionor. Quando chegou a minha vez, minha madrinha sugeriu esse nome porque tinha uma música que ela gostava muito – “Clair de Lune” e viu também num livro que tinha lido, então ela recomendou aos meus pais e eles concordaram.

Lembro duas coisas traumatizantes de minha infância: sempre gostei muito de fotografias e por alguns anos, por não ter máquina fotográfica, não pude registrar muitas coisas. Outra lembrança foi de muitas perdas que tivemos com as enchentes. Meu pai sempre nos protegia dos alagamentos, mas uma vez, quando ele estava doente, nossa casa foi alagada e perdemos muitas coisas. Perdi fotos de quando eu era ainda bebezinha, foto da minha primeira calça comprida de quando tinha treze anos de idade. Então ficou o trauma das fotos. Eu amo fotografar pessoas.

Tive uma infância difícil e ao mesmo tempo muito alegre. Nós éramos em cinco irmãos com diferença pouca, de dois anos, um para o outro. Meus pais vieram de Conselheiro Lafaiete, eu e mais quatro irmãos nascemos aqui (São Paulo). Eu vim para a Cidade Ademar muito cedo. Meu pai construiu uma casa no aeroporto e eu vim para cá (Americanópolis), acho que tinha dois anos. Com nove anos de idade já trabalhava em casa de família e nosso pagamento – minha irmã também trabalhava no mesmo local – era pão e leite que retirávamos do empório que era de propriedade dos meus patrões e, no dia do pagamento, eles descontavam a mercadoria retirada como vale.

Veja mais detalhes no vídeo onde Clair fala sobre sua infância.

Expresso Periférico –Tendo feito magistério e iniciado a vida profissional como professora, o que a fez migrar para o comércio?

Clair Helena – Concluí o magistério em 1984 e foi uma caminhada muito difícil. Estudei em escola particular iniciando no Campo Belo e concluindo em Moema, num colégio que se chamava Princesa Isabel e a mensalidade era caríssima, seria hoje o valor correspondente a quase um salário mínimo. E o que eu fazia para ter esse dinheiro? Eu fazia faxina na casa das minhas professoras e nos corredores da escola eu ia encontrando os filhos dela. Quando eu vi aquele filme “Que horas ela volta”, eu lembrei da minha história. Nos corredores eu encontrava com os filhos das patroas, nós conversávamos de igual para igual,  só que eu era muito mais aplicada do que eles. Minha média sempre foi 8. Eu trabalhava muito duro para conseguir pagar as mensalidades, então, quando chegavam as sextas-feiras, que os alunos faltavam às aulas para poder ir para as baladas, eu brigava com os professores: ‘E aí, professor? Não vai dar aula não?’. O meu dinheiro era muito suado para pagar o curso.

Foi muito bom lecionar diariamente como professora substituta no Colégio Maria Augusta. Não tive turma fechada, mas todos os dias tinha ausência de professoras e eu substituía. A maioria das professoras vinham de longe, dos bairros nobres, então faltavam quando chovia demais, quando tinham problemas domésticos, entre outros. Assim eu podia dar aulas todos os dias e os alunos faziam festa quando eu chegava para substituir, eles amavam minhas aulas. Também fui a primeira administradora da Creche Mãe Operária, estive por muito tempo no OSEM da Igreja São José, com a professora Nair, padre Ângelo Belloso Pena, que hoje está na Espanha. Conheci a luta contra a carestia, sempre ajudando, ensinando e aprendendo.

Com o tempo houve a necessidade de trilhar outros caminhos e como o comércio já estava presente em várias situações de minha vida e era algo de que gostava muito, diante da necessidade de pensar em algo mais sólido financeiramente, acabei mudando de profissão.

Expresso Periférico –Fale um pouco sobre sua veia comercial e o Brechó Elio & Clair?

Clair Helena – Élio e eu montamos o Brechó na Avenida Cupecê, 3565 em 1989. Ele perdura até hoje com a administração dos nossos filhos.

Eu vinha dos movimentos sociais, mas precisamos pensar na família. Tínhamos três filhos e precisávamos pensar no futuro. Não era fácil tocar financeiramente a vida para dar um bom estudo para os filhos, nós queríamos nossa casa própria e eu abri mão dos movimentos sociais com a promessa de retornar um dia. Então, nós resolvemos montar um Brechó, e começou com amigos que tínhamos na região. Eu praticamente nasci na Cidade Ademar e eu, minha mãe, meu pai, meus irmãos, conhecíamos muita gente: todo comércio depende desse conhecimento. Eu tinha participado da igreja, tinha a Sociedade Amigos de Vila Jacinto Paes que meus pais participaram. Meus pais tinham uma garagem e no começo do casamento nós moramos por cinco anos no mesmo endereço deles e, então, resolvemos vender coisas usadas. No início eram roupas, sapatos, acessórios. Eu já tinha a experiência porque fazia o bazar na Igreja São José, que era onde eu trabalhava e aos sábados fazíamos o bazar. Então resolvemos começar assim, nós comprávamos coisas novas, trocávamos por usados e o Brechó foi crescendo. Alguns parentes ajudaram no início. Nós fizemos anúncio numa revista de grande circulação em bairros como Moema, trocando objetos novos por usados e sempre vendendo produtos de qualidade. Tudo isso foi projetando o nome do Brechó. Tivemos matérias publicadas em jornal e eu sempre gostei de fazer o marketing. Fiz cursos no SEBRAE. Quando eu não podia, o Élio ia e assim fomos revezando. Logo os filhos já adolescentes começaram a acompanhar e com o tempo foram pegando gosto. Tivemos momentos difíceis durantes as crises financeiras que o Brasil passou, mas conseguimos nos manter juntos.

Eu descobri muito cedo que tinha algumas características de uma síndrome chamada Complexo de Diógenes, a parte de acumuladora, então transformei essa característica para o Brechó. No início fazíamos muitas trocas, a pessoa não tinha o valor completo da mercadoria, mas tinha algo que queria trocar, então fazíamos esses acordos, sempre com a ajuda do Élio e da família. Hoje quero acumular amigos e conhecimentos.

Expresso Periférico –Comente como iniciou sua atuação nos movimentos populares.

Clair Helena – Minha participação nos movimentos populares começou ainda na adolescência. Eu fui uma das fundadoras da creche Mãe Operária, e esse fato para mim é uma referência importante. Começou lá com padre Maurílio, padre Ângelo, padre Lucinio, padre Miguel, eram os padres da região que já estavam na luta. Minha mãe já participava na luta por creche na Sociedade Amigos do Bairro. A luta para resolver os problemas do córrego do Cordeiro já vinha daqueles tempos. Quantas vezes vi amigas perdendo vestidos de noiva, perdendo o enxoval todinho para as enchentes. Nós chorávamos juntas em cima dos vestidos de noiva tomados por lama. O meu pai, que era um homem muito inteligente, protegia nosso terreno plantando árvores enormes na beira do córrego. Isso garantia maior segurança ao terreno e, geralmente nossa casa não alagava, mas a luta era de todas as famílias juntas, por isso tínhamos que estar todos juntos.

Expresso Periférico – Como se envolveu com o movimento de moradia?

Clair Helena – Num certo momento da vida, com as coisas mais organizadas, os filhos criados, o meu filho mais velho comprou a minha parte no Brechó e eu sempre quis voltar aos movimentos sociais. Então,eu saí feliz, com o Élio me apoiando sempre, voltei par os movimentos. Iniciei no movimento da saúde e pouco depois conheci o movimento de moradia e me identifiquei, tinha tudo a ver com o que meu pai falava sobre a necessidade das pessoas em ter uma casa. Comecei a participar e me apaixonei. Eu via muitas mulheres que não tinham casa, aí o jeito das meninas, a Dorinha, a Deva e tantas outras, fazendo o cadastro e orientando as mulheres de que tinham que lutar por moradia me encantou, já fui fazer parte das reuniões e foi tudo tão rápido, logo depois me lancei como candidata ao Conselho Participativo sendo a mais votada da região de Cidade Ademar e fui me envolvendo. Participei do Fórum de Mulheres, procurava aprender tudo sobre os movimentos, ocupações. O movimento de moradia é uma escola, aprendemos nas reuniões, nas manifestações, nas ocupações e até nos despejos. É preciso muita organização e disciplina porque os resultados demoram muito. O movimento não dá moradia para as pessoas, ele dá o esclarecimento de como as pessoas devem se organizar e lutar para conquistar um direito. É como diz nosso mestre maior da educação, Paulo Freire:  “Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo”.  Quando o movimento de moradia faz as parcerias e leva as pessoas para a Escola de Cidadania, para o Centro Frei Tito, para as atividades da Rádio Poste, tudo isso é formação para que as pessoas possam conhecer os seus direitos e somente conhecendo os direitos é que aprendem como lutar por eles.

Expresso Periférico – Você gerenciou o Bom Prato na Vila Missionária. Foi possível perceber o empobrecimento da população usuária a partir da fila do almoço?

Clair Helena – Fui gerente administrativa no Bom Prato Cidade Ademar, que fica na Av. Yervant Kissajikian, 3.100, de julho de 2018 a junho de 2019. Foi um período em que conheci pessoas incríveis. Nessa época, os moradores em situação de rua tinham voltado daquela área chamada de “Cracolândia” para seus bairros de origem, depois daquele episódio que muitos vão lembrar, quando esguicharam água para expulsá-los do local onde estavam morando (ato comandado na gestão Dória, que usa jatos de água em pessoas em situação de rua). Então eles ficaram bem próximo ao Bom Prato. Assim podiam tomar o café da manhã e almoçar por lá, pagando o preço exigido e eles faziam as refeições. Tinha muitas dificuldades porque no Bom Prato não era permitido pedir dinheiro na fila, levar bebida alcoólica e entrar com cachorro, então tinha que conversar muito com eles para que cumprissem as regras. A fome aumentou muito, nosso país voltou para o mapa da fome de uma maneira muito triste. Eu participo da doação de máscaras para proteção contra a COVID (projeto da CECASUL –  Centro de Cidadania e Ação Social Sul, Movimento de Moradia) e percebemos, quando passamos na Praça da Joaniza e na Missionária, o número de moradores em situação de rua está sempre aumentando.

Expresso Periférico – Hoje você é uma mulher: mãe, avó e referência do núcleo familiar. Como você é vista na família por conta da sua participação política?

Clair Helena – Conheci o Élio quando estudava e depois de dois anos nos casamos. Ele é a pessoa da minha vida, o homem por quem me apaixonei. Hoje moramos eu, Élio e minha sogra. Temos três filhos e quatro netos maravilhosos. Depois que minha mãe faleceu, senti a necessidade de fazer um encontro da família. Já estamos no oitavo ano do encontro, onde cada um contribui com o que pode e passamos o dia inteiro juntos. Minha família tem uma diversidade muito grande. Tem pessoas com posição ideológica diferente da minha e nos respeitamos como somos. Eu me sinto respeitada dentro de minha ideologia, que é de esquerda, conseguimos conversar sobre todos os assuntos com o respeito de ideias.

Expresso Periférico – Fale um pouco sobre seus sonhos.

Clair Helena – Meu sonho é um tanto quanto coletivo, ele é rodeado por pessoas. Eu espero e quero me dedicar ao Élio, que é um companheiro incrível, sempre esteve muito presente durante o Brechó. Então, hoje ele já trabalhou muito e se ele quiser descansar ou ir para outro lugar, estarei sempre com ele. Minha sogra que tem 92 anos e meio e mora com a gente. Quero estar ao lado dos meus quatro netos, que são crianças encantadoras. Sou apaixonada pelos meus filhos, todos os três têm faculdade de administração. Também sou apaixonada pelas minhas noras, são pessoas que entraram em nossas vidas de maneira tão linda e importante. Quero me dedicar bastante a minha família, meus irmãos, meus sobrinhos. Quero também poder socializar tudo o que aprendi como microempreendedora com outras pessoas, com todas as mulheres do movimento de moradia, mulheres que tenham filhos especiais e de todos os outros movimentos.

Imagem: Acervo pessoal

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Escrito por Expresso Periférico

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