Por Sidnei Reinaldo dos Santos

Introdução

Nós, os brasileiros, temos uma profunda relação com o continente africano. Somos herdeiros da cultura africana, a qual é uma das matrizes do povo brasileiro, que infelizmente foi atrelada de forma abrupta e violenta com a exploração do trabalho da população negro-africana, caçada em seu território e transportada nos porões de navios pelo oceano Atlântico e escravizada. A insanidade de tal feito é magistralmente relatada pelo poeta Castro Alves,

(…)
Era um sonho dantesco… o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros… estalar de açoite…
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar…
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais …
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos… o chicote estala.
E voam mais e mais…
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
“Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!…”
E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais…
Qual um sonho dantesco as sombras voam!…
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!…

Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!…
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! …

(ALVES, Castro; O Navio Negreiro, in Os Escravos)

Castro Alves retrata, em seu poema O Navio Negreiro, as imagens da liberdade no continente africano são intercaladas com a prisão no navio negreiro e uma travessia pelo desconhecido oceano. A noite escura e aberta da savana se transforma num porão escuro, cheio de doenças e de morte. As condições desumanas do transporte de escravos são descritas de forma poética, realçando a desumanização deles. O mês de novembro serve como forma de rememorar a escravização de seres humanos em virtude de sua raça e lutar para que isso não se repita com qualquer outro povo. Sem opção de externar seus desejos, os africanos, de diferentes etnias, desembarcaram na terra de Pindorama.

Porém, apesar dessa relação fraternal, pouco conhecemos sobre os nossos ancestrais africanos. A literatura na grande maioria ressalta a luta contra a escravidão e as dificuldades do povo retinto em se adaptar no novo continente, na saudade dos seus que ficaram distantes assim como de se firmar na sociedade ou ascender a elite, inconcebível a muitos que eram nobres em sua terra natal. Mesmo sendo detentores de grande capacidade – física e intelectual – o racismo institucional, que perdura até os dias atuais, os excluiu ou criou tantos percalços que dificulta a sua ascensão social no modo de produção capitalista.

A identidade negro-africana

“Palavra dócil
Não para fazer literatura
Palavra
Que reproduz muda”
(…)
(Chico Buarque, A Palavra, in Chico Buarque 1984)

À margem de toda esta discussão, a África profunda segue seu rumo, como uma sociedade em que os valores que imperam são repetidos há milhares de anos, sem prejuízo para as relações sociais, que garantem respeito à identidade histórica. O berço da humanidade geralmente aparece nos noticiários internacionais de maneira pejorativa: como possuidora de uma miséria absurda, devido aos altos índices de portadores de doenças, muitas delas evitáveis com investimentos em saneamento básico ou devido as constantes guerras civis, reflexo da partilha do continente no Congresso de Berlin, no século XIX. De forma positiva, a África só é citada como possuidora de uma paisagem natural belíssima, a patética caçada pela savana, os velozes corredores nas maratonas e demais corridas de longa distância.

Pouco ou nada se estuda da África Negra, fazendo que pouco conheçamos da construção do ideário negro-africano. E estes valores são fortes o suficiente para edificar a sociedade. Conhecer este homem africano, a partir da sua perspectiva torna-se fundamental para conhecer a própria África, descaracterizada em poucos séculos por países como França, Inglaterra, Portugal e Estados Unidos. Conhecer a palavra, que se fortalece com o passar dos anos e a história viva africana, na palavra do contador de histórias – o griot, o mestre da palavra.

E uma das formas de abordar a vitalidade histórica das sociedades negro-africanas ainda manifestada atualmente, trazendo algumas contribuições para talvez melhor conhecer suas peculiaridades, é através do estudo de um de seus traços mais distintos – a palavra – juntamente com o estudo do perfil de seus agentes transmissores. Estudos da espécie podem fortalecer posições progressistas e respeito da realidade negro-africana para melhor conhecimento de configurações atinentes a sua identidade profunda e não-periférica. Na identidade negro-africana a palavra falada mantém viva no imaginário símbolos com poucas ou, mais comum, nenhuma mudança, que criam um povo forte o bastante para enfrentar o poder político militar estadunidense e europeu, que impõem sua cultura e tentam minar a resistência africana.

Devemos apreciar que a palavra tem sua formulação originária própria, ou seja, como transmissora de conhecimentos em sociedades negro-africanas que não adotaram a escrita como instrumento prioritário de comunicação. Para constituirmos uma visão geral sobre a palavra africana é necessário compreendê-la – a palavra – devemos apreciar o perfil de alguns agentes sociais que são detentores de palavras específicas como historiadores, profissionais – como médicos tradicionalistas, artesãos, ferreiros, caçadores, agentes da magia (bruxos, magos, etc.), adivinhos, sacerdotes de cultos a divindades ancestrais – e outros tipos que se revelem ao longo das pesquisas. Além desses perfis, evidentemente, procuramos atingir o quanto possível à natureza e conteúdo das palavras desses agentes sociais, ou seja, quais conhecimentos transmitem.

A definição da palavra em sociedades da África Negra – que na perspectiva aqui adotada a palavra não se confunde com a voz humana em suas múltiplas possibilidades de emissões e articulações para fins de comunicação, aqui aparecendo tão somente como um dos instrumentos da palavra, mas liga-se, mais apropriadamente, à problemática do conhecimento geral e diferencial de uma dada sociedade negro-africana além de constituir-se em valor civilizatório integrante de processos sociais específicos, a partir de abordagens em sociedades como os Iorubas e Mandenka (complexo que integra os Diula, Bambara e Malinke), as quais não adotaram a escrita como forma de transmissão de conhecimento, mas focaram na oralidade.

Outra preocupação é buscar autores engajados progressivamente com a realidade negro-africana que buscam a chamada visão interna sobre a África em contraposição à abordagem que leva à visão periférica, pouco reveladora da natureza dos fatos. É a contraposição entre África sujeito, que emana da primeira visão e a África objeto, que decorre da visão periférica.

Considerações finais

Para melhor conhecermos o continente africano devemos recorrer a milenar história da África, baseada em uma construção circular dos fatos – e não linear como propõe a escola europeia – com acontecimentos que se repetem de forma cíclica sendo, portanto, previsíveis, mas evitáveis. A filosofia africana, que antecede ao pensamento grego e em muito contribuiu para o desenvolvimento de maquinários e ferramentas, assim como conceitos depois aprofundados pelas demais escolas. A construção de seus valores presentes em uma cultura dinâmica e rica, com culinária, dança, música, lendas e, principalmente, religião.

A tradição oral, marca das comunidades estudadas, faz com que lembremos das conversas com os nossos avós, tios, vizinhos e outros idosos que contribuíram para formar o nosso caráter. A África está presente em cada um de nós, seja na miscigenação, seja nas histórias contadas e recontadas ao longo de nossas vidas.

Referências

  • ALVES, Castro, O Navio Negreiro. Domínio Público, acesso em 27/10/2023.

  • LEITE, Fábio. A questão ancestral (Notas sobre ancestrais e instituições ancestrais em sociedades africanas: Ioruba, Agni e Senufo). São Paulo, 1982.

  • ____________ Valores civilizatórios em sociedades negro-africanas; In África: Revista do Centro de Estudos Africanos USP. São Paulo 18/19 (I): 1995-1996.

  • ____________ A questão da palavra em sociedades negro-africanas; SECNEB, Salvador, 1992.

  • RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 

  • TEMPELS, Placide. Bantu Philosophy. Paris, Presence Africaine, 1969.

Imagem: JAMAC

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Escrito por Expresso Periférico

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