A palavra e a força vital.

“(…) a África negra e suas Sociedades que,
muitas vezes enunciados por autores
de prestígio no ocidente, acabam se tornando verdades internalizadas em
bibliografias que se repetem (…)” (LEITE, Fábio: “A questão da palavra
em sociedades negro-africanas”
Seminário Nacional – Salvador Bahia – 1992)

INTRODUÇÃO

Na edição do mês de novembro deste ano de 2023 aproveitamos os debates da Consciência Negra para falarmos da questão da palavra em povos da África Negra com o intuito de eliminar o preconceito sofrido pelos negros africanos e seus descendentes espalhados pelo mundo. Relembramos que durante os mais de três séculos de tráfico negreiro, milhões de seres humanos foram caçados e transportados nos porões dos navios para o outro lado do oceano Atlântico. No continente americano, o Brasil foi o país que importou mais escravos africanos. Entre os séculos XVI e meados do XIX, cerca de 4 milhões de homens, mulheres e crianças, o equivalente a mais de um terço de todo comércio negreiro, fizeram este percurso para serem escravizados pelos latifundiários brasileiros. Uma significativa parcela fazia parte da civilização Banto. 

Nas sociedades da África Negra há inúmeros povos que não adotaram a escrita para fins de apreensão e de transmissão de conhecimento, assim como dos dispositivos civilizatórios que constituíram para essa finalidade. Outra questão a ser posta é que grupos da África Negra mantêm uma relação com o espaço e o tempo bem diferente da que nós, com uma formação judaico-cristã ocidental, estamos acostumados. Suas origens históricas, sua integração com o espaço, sua tecnologia baseada em aparatos milenares e a produção de subsistência, suficientes apenas para atender as necessidades por um determinado período, são exemplos de que os valores civilizatórios das sociedades negro-africanas não correspondem ao que acreditamos como ideal para a nossa sociedade. Vale ressaltar também o conceito de propriedade comunal, mais lógica em um agrupamento, o que torna a propriedade privada algo individualista. 

Muitos estudos sobre o continente africano são carregados de preconceitos e devemos usar todos os meios possíveis para abandonar isso.

A FORÇA VITAL

Para os Bantos, a vida está centrada em um único valor: a Força Vital. Acreditam que todos os seres do universo possuem uma força vital própria: os homens, os animais, os vegetais e os minerais, todos foram dotados pelo Ser Supremo de uma certa força. Essa força é extremamente importante para o Homem, pois é ela que os aproxima de todos os elementos da natureza onde estão os recursos que nos nutrem e são vital para a sobrevivência. A força vital é o que os faz ser o que somos e que nos mantêm vivos.

Força e vida são a mesma coisa, tudo é força. E força e vida somente são inferiores à força divina, que é a força maior, isto é, a Força Suprema. O homem é o ser mais forte da criação. E é ele que, através de magia, bruxaria, remédios mágicos, invocação de espíritos e almas, vai utilizar o poder dos demais elementos – vegetais, animais e minerais – e partes das forças inferiores. Buscando energia nestes elementos, o homem aumenta a sua força vital.

Essa força vital chegou ao homem, vinda do preexistente, primeiro ancestral, que dominava todos os segredos e possuía a energia necessária para constituir a sociedade. Através das orações, os ancestrais se manifestam e energizam a sociedade. As almas dos primeiros ancestrais estão em um plano sobre-humano, por isso possuem uma força extraordinária e remetem um “poder” divino hereditário, essencial para a vida humana. Assim, a força vital será passada de geração em geração e, nesse período, se manterão e até aumentarão garantindo a força vital para as gerações futuras.

Se tudo é força, então a força de um ser pode influenciar outro? Em uma relação metafísica sim, pois Criador e criatura trocam constantemente forças, uma vez que todos os seres estão diretamente ligados à força divina (Ser Supremo). Entre os homens também, pois a força de um ser pode aumentar ou diminuir a força de outro ser.

A PALAVRA

De muitas formas, é possível obter força vital. Uma dessas formas é através da palavra. Leite (1992, pag. 89) aponta que:

“(…) a palavra constitui um universo concreto revelador das principais proposições históricas de uma dada sociedade, sendo capaz de explicar a organização do mundo e da realidade, bem como, as práticas sociais globais, a captação, exercício, acúmulo e transmissão de conhecimento, segundo valores civilizatórios próprios nascidos de sua identidade profunda.”

Ela é divina, remete diretamente aos ancestrais, além de poder ser manipulada para fins específicos. Pode ser exotérica (aquelas que se tornarão públicas) ou esotérica (aquelas que são diferenciadas, assim sendo dominada apenas por iniciados). Essa filosofia é seguida por outros povos (como os Bahemas, os Alurs, os Walendus, Akan, Senufo, Yoruba, Ewe-Adja-Fon, Bambara, Dagari, Mossi, Lobi, etc.), mesmo acreditando em outras divindades (cada grupo tem o seu Deus que não é necessariamente o Deus do outro grupo, não aceitando assim o Deus onipresente). Porém, todos acreditam que a força vital é essencial para o ser em si.

A oralidade humana traz uma voz com maior ou menor entonação e pode ser associada à pausa e ao silêncio. Isso tem um grande significado, pois pode exercer uma influência sobre o interlocutor, prendendo a sua atenção. Esse, contudo, possuidor de sua própria palavra ou energia vital, irá reagir. 

A dinâmica, que pressupõe interação, está presente em todas as relações dadas: entre os tecelões (cujo trabalho está relacionado com a trama da vida), entre os ferreiros (que dominam os quatro elementos da natureza e os coloca a serviço da tecnologia), entre os médicos (com sua interação com os reinos da natureza dos quais utiliza seus fluxos vitais), entre os adivinhos (conhecedores dos sistemas matemáticos que permitem o conhecimento esotérico), entre os artistas (dominadores da estética e da arte), entre os caçadores e pescadores (que interagem com os entes da terra e das águas), entre os historiadores (que contribuem para a construção da memória coletiva e individual, além de influenciarem na política como relatores das práticas sociais ligadas ao poder), entre bruxos e magos (detentores de acesso ao mundo transcendental).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar a etnia Banto é pensar através da palavra dos adivinhos, que ensinam “a palavra da vida”, que desvendam os segredos da natureza, além de completar o ser, pois palavra é força. Pensar a sociedade Banto é pensar uma África como sujeito da história e não mero coadjuvante. A África está viva, pulsante. Sente e age ampliando, cada vez mais, a sua força vital e enfrenta o modelo dominante. 

Pensar a etnia Banto é pensar como a Força Vital traz o poder necessário para manter o povo unificado e forte para enfrentar as adversidades naturais – longos períodos de seca, destruição das plantações por pragas. É pensar sobre o poder de destruição da sociedade ocidental, que tenta impor uma cultura, através da força, desprezando milhares de anos de história real.

A África Negra que desenvolveu sua cultura – crenças, danças, música, contação de histórias, culinária – por milhares de anos, em uma sociedade comunal e com economia de subsistência, hoje, teme por seu futuro. Repetir comportamentos que garantiram a preservação do grupo torna-se uma necessidade. É preservar seus valores ou capitular ante ao modo de produção capitalista, este sim cruel e desumano. 

Saiba Mais

CASTRO, Yeda Pessoa de. Localização e Origem da População Negra Escravizada em Território Colonial Brasileiro: As Denominações Banto e Iorubá. Revista Eletrônica: Tempo – Técnica – Território, v.3, n.2 (2012), p. 48-62.

LEITE, Fábio. A questão ancestral (Notas sobre ancestrais e instituições ancestrais em sociedades africanas: Ioruba, Agni e Senufo). São Paulo, 1982.
_ Valores civilizatórios em sociedades negro-africanas; In África: Revista do Centro de Estudos Africanos USP. São Paulo 18/19 (I): 1995-1996.
_
A questão da palavra em sociedades negro-africanas; SECNEB, Salvador, 1992.

TEMPELS, Placide. La philosophie Bantoue: chapitre II, “L’Ontologie de Bantous”, Collection Presente Africaine, Paris, 1949, p. 30-47.

Imagem: Expresso Periférico

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