Diziam que eu  era “burra”, que não conseguia ler para todos na sala: até hoje ainda estou superando este trauma da leitura em público.

Na edição desse mês, a Coletiva de Mulheres apresenta a entrevista realizada com Regina Cândida Bela Conceição. 

Regina Bela é uma mulher de 53 anos, formada em Serviço Social pela Faculdade UNISA, filha, mãe, avó, coordenadora de um serviço que atua no atendimento às famílias dos bairros da região de Cidade Ademar e Pedreira e que soube transformar a própria vida, encarando desafios e se fortalecendo com cada um deles.

Nós da Coletiva temos a certeza de que muitas Manas vão se identificar com essa mulher de garra que já deu várias “voltas por cima”. Que fez do sofrimento mola propulsora e que acredita e atua para que a transformação ocorra de forma coletiva.

Ao nos depararmos com o resultado dessa entrevista, ficamos encantadas em conhecer a história de Regina, que se assemelha à de muitas outras mulheres com as quais nos relacionamos no cotidiano das periferias do nosso território.

Essa entrevista ainda nos chama a atenção para que fiquemos atentas e atentos ao importante papel da escola no processo de formação de nossas meninas e meninos. A escola tem o dever de ocupar um espaço de Educação em Direitos Humanos permanente, continuada, plural e que ocorra dentro e fora da instituição, bem como com toda a comunidade escolar, envolvendo educadoras e educadores, famílias, educandas e educandos.

A escola jamais poderá ser um espaço de destruição de sonhos ou de cultivo de traumas.

Fiquemos agora com a entrevista encantadora e marcante realizada com a nossa convidada Regina Cândida Bela Conceição.

Quem é Regina? 

Regina … vamos lá: é uma mulher que vem de uma família de pai baiano chamado Deusdete e mãe mineira chamada Jesuína: o casal teve seis filhos. Minha mãe era semianalfabeta, só assinava seu nome, trabalhava de doméstica. Meu pai era analfabeto, conhecia as coisas por cores, trabalhava com vendas em uma loja de plásticos.

Olha, me lembro que meu pai e minha mãe tinham muito cuidado com a criação dos filhos e, apesar de ser uma família numerosa, eles sempre procuravam dar o sustento e cuidados. 

Mas, infelizmente, minha mãe teve um AVC, eu estava com 07 anos de idade. Foi uma época muito difícil, pois ela ficou em coma por 04 meses no hospital, teve uma recuperação bem lenta, esqueceu de todos e sua mobilidade ficou reduzida. Tínhamos que trocar fraldas e dar comida na boca, assim os cuidados de criação ficaram por conta da minha irmã mais velha e minha tia, irmã da minha mãe. 

 Nessa época, tive muita dificuldade na escola, pois não queria comentar para as professoras do ocorrido. Com isso, tinha muitas cobranças da presença da minha mãe na vida escolar, levava vários castigos como palmatória, ajoelhar em feijões por não ter o acompanhamento de minha mãe na escola, porém, minha mãe estava acamada ‘’eu que estava cuidando dela‘’. Na época, as professoras não procuravam saber o motivo da ausência dos pais na escola. Minha alfabetização ficou muito prejudicada, pois não tinha um suporte familiar e nem escolar para aprender.

Quando tentava ler na escola, as professoras me criticavam e diziam: “Onde já se viu? Uma menina na 4ª série ainda não está alfabetizada?” Diziam que eu  era “burra”, que não conseguia ler para todos na sala: até hoje ainda estou superando este trauma da leitura em público.

Ainda na 4ª série, meu irmão mais velho caiu na mesma sala. Ele não entrava na sala de aula, ficava em um muro gritando coisas para pirraçar e chamar atenção da professora. Sabia que se entrasse levaria castigo por não fazer as lições, assim eu sempre levava os castigos por mim e por ele. A professora ainda comentava ‘’família de maloqueiros é assim‘’. Meu irmão somente queria mostrar que não conseguiu fazer as lições, mas nem os gritos de socorro adiantavam. 

Ainda para dificultar, meu pai começou a fazer uso de álcool. Cresci em um núcleo familiar bem fragilizado. Na minha adolescência, tive que começar a trabalhar com 10 anos para ajudar no sustento da minha família. 

Meu trabalho era nas casas das vizinhas lavando louças, limpando banheiros para ganhar um prato de comida e levar algo que ganhasse para casa. Nos finais de semana, eu ia para a feira fazer carretos. Tive que me vestir de moleque, pois uma vez fui de vestido e ninguém me chamava para carregar as feiras. Então, percebi que tinha que ir vestida igual ao meu ‘’irmão’’, de boné e calça. Com o dinheiro, conseguíamos comprar um pouco de frutas e verduras para dieta da minha mãe e para todos em casa.  

Nunca perdemos os laços familiares. Revezamos entre nós, filhos, para cuidarmos da minha mãe. Através de várias fisioterapias e fono, ela voltou a andar e a falar.  Mesmo com a melhora da saúde da minha mãe, meu pai não parou com uso da bebida. Isso ocasionou várias questões desagradáveis na família, demanda de delegacia, hospitais, instituto médico legal, desrespeito e humilhação por pessoas que nunca encararam o alcoolismo como uma doença e avaliavam como desvio de caráter.

Na minha adolescência, tive que assumir uma responsabilidade muito cedo, comecei a trabalhar com carteira registrada aos 13 anos, todo meu pagamento ia para a minha família pagar o mercado que minha irmã mais velha comprava durante o mês.  

O estudo, nessa época, eu realizava no período noturno. Por conta de trabalhar com crianças portadoras de deficiência, não conseguia pegar nos livros durante o dia e mal conseguia revisar durante o trajeto no ônibus. Tinha uma convicção  de que iria terminar meus estudos, pois minha mãe sempre falava:  ‘’Eu quero participar de uma formatura de um dos meus  filhos antes de morrer’’ e isso, para mim, me dava força para continuar e não desistir.  

Neste período, enfrentei diversos desafios, um deles foi a perda do meu pai, quando tinha 15 anos. Ele morreu de AVC e minha mãe teve infarto. Ela teve que colocar uma veia coronária. Novamente, juntamente com meus irmãos, me vi cuidadora da minha mãe.

Diante dessa situação, conclui o Ensino Médio e, como não tinha condições financeiras para iniciar um curso superior, iniciei o Magistério no período noturno. Naquela época, por trabalhar com crianças portadoras de deficiência, minha vontade era realizar fisioterapia.

Após 4 anos, fui realizar o estágio e foi aí que me despertou o desejo por trabalhar com pessoas. Minha atuação foi no CCA Castelinho, onde era previsto eu ficar por um ano e meio, porém fiquei neste lugar por 15 anos, pois fui convidada para trabalhar inicialmente como Orientadora Socioeducativa, executando 10 anos na função.

Após diversos incentivos por parte da minha gerente, iniciei um  curso na faculdade de Serviço Social, realizado através de um financiamento estudantil – FIES, pois não tinha condições financeiras acompanhar este curso.

Em paralelo à minha vida profissional, com 19 anos me casei e a família do meu esposo não validava a mulher estudar, tanto que minha sogra sonhava em ser cabelereira, mas, por conta do marido, ela não conseguiu. E é neste cenário que me deparo e encaro mais uma luta: estudar sem o auxílio de ninguém e nem incentivo de quem estava ao meu lado.

Como meu foco sempre foi  estudar, ter filhos não estava em meus planos, porém, aos 24 anos, finalizando o Magistério, engravidei de minha única filha, Nubia. 

Eu sempre fui resiliente e destemida, mas foi a primeira vez que me deparei com um obstáculo concreto, pois a família do meu esposo, em todos os momentos oportunos, jogava na minha cara que eu só iria estudar, se tivesse cumprido com minhas obrigações com minha filha. 

E foi neste cenário de ter uma filha, trabalhar e não poder tirar notas baixas por conta do FIES que enfrentei diversos desafios. Durante 4 anos, sem computador, me oferecia para digitar os trabalhos de grupo de sala, pois meu esposo não aceitava que eu fosse fazer trabalho nas residências dos colegas de classe, justificando que esses grupos incentivavam o interesse por festas e bebidas. Assim, solicitava reserva, na faculdade, do laboratório de computação. Muitas vezes levei minha filha na cadeirinha nos finais de semana para realizar a ação a que tinha  me proposto.

Durante os 4 anos da faculdade, me empenhava ao máximo para absorver o conteúdo em sala, pois era o único momento que eu tinha para me dedicar 100% aos estudos. 

Ao final dos 4 anos, mais uma vez minha mãe adoeceu. Finalizei o TCC com ajuda de vários amigos e em 2004 fiz minha colação de grau.

Minha maior alegria, sem dúvidas, foi o dia da minha colação de grau, quando consegui pagar para minha mãe participar e realizar o sonho dela, de ver uma filha formada. Após um ano da minha formatura, minha mãe veio a óbito. 

Após tudo exposto, Regina é uma mulher que não se conforma com a dificuldade, que se abastece com os desafios e não desiste de que as coisas podem melhorar.

Quando você olha para sua carreira profissional, o que te causa mais alegria e o que te causa mais desconforto?

Minha maior alegria é ver que através da minha carreira, consegui e consigo auxiliar diversas pessoas que estavam em situações precárias de vulnerabilidade. 

Meu maior desconforto foi esbarrar com profissionais que o interesse não era a luta por direitos e igualdade de acessos, e sim pelo social: oferecer um salário bacana para atuação com carga de 6 horas.

Você acredita que a assistência social consegue dar conta das principais demandas da população mais carente?

Não. Para suprir a necessidade completa da família, como acesso à educação, trabalho, moradia, lazer e saúde, todas as secretarias precisam estar funcionando para a família sair desta situação de precariedade e vulnerabilidade. A assistência social, às vezes, é a porta de acesso, porém não é a única secretaria responsável pelo alcance de objetivos desta população.

Qual seria seu conselho para as pessoas que estão iniciando na área do serviço social.

Reconhecer a Assistência como uma política pública, identificando assim o serviço como um direito de acesso para todos que dele quiserem desfrutar. Deste modo, só permanecer na área se esse, de fato, for o objetivo de sua atuação, pois somente ganhos financeiros se tornam exaustivos, quando se está numa profissão que exige leituras e manutenção do conhecimento. 

O que a Regina de hoje diria para a Regina criança?

Calma, não tenha medo, é passageiro, não recua, fale. 

Depois tudo vai dar certo!

E assim encerramos a entrevista com essa mensagem linda de muita esperança. Não tenhamos medo. Vamos falar sim, mesmo quando desejarem nos calar. Vamos ter calma e perseverança, pois permanecendo nos caminhos da construção coletiva, tudo vai dar certo.

Imagem: Acervo pessoal da entrevistada

Compartilhe:

Escrito por Coletiva de Mulheres

2 thoughts on “Uma história de superação”
  1. Que linda entrevista, tenho a grande alegria de poder trabalhar com a Regina, mulher empodera e que dá espaço e acima de tudo Incentivo para todos os que fazem parte da sua vida!!
    Muito agradecida por uma entrevista tão maravilhosa!!

Deixe um comentário