Elas chegam à exaustão e nós, o que podemos fazer? Acolher suas angústias e dar fala para elas aqui no Expresso Periférico. Pela Coletiva de Mulheres do Expresso Periférico

É assim que encontramos as mulheres (trabalhadoras da saúde) que no último ano dedicaram suas vidas a cuidar de pacientes e, em sobrando algum tempo, olhando para seus familiares e amigos. Sim, sobrando algum tempo, porque, dentro das prioridades, o autocuidado nem entra na lista. Elas chegam à exaustão e nós o que podemos fazer? Acolher suas angústias e dar fala para elas aqui no Expresso Periférico.

Fomos saber como estão enfrentando as sobrejornadas: o trabalho, a falta de equipamentos de segurança para evitar o contágio com a COVID-19, as consequências dessa exposição na linha de frente do tratamento ao paciente, os cuidados com saúde mental dessas mulheres, os medos que rondam seus cotidianos e como andam seus afetos de mãe, filha, companheira, amiga, com a subtração desses tempos tão raros.

Até as entrevistas lhes causam algum desconforto e muitas não podem falar e não querem relatar esse caos que acometeu suas vidas. Duas enfermeiras – Ana Cristina e Solange Cristina – e uma Agente Comunitária de Saúde, que prefere não se identificar, foram generosas em partilhar conosco um pouco de suas vidas profissionais durante a pandemia, para que, assim, possamos entender essa equipe que é essencial e prioritária no trabalho de tratamento dessa doença que vem devastando nosso país. Até agora mais de 365 mil mortos e todos os dias quase 4 mil vidas são ceifadas.

Todas nasceram na região e aqui tem suas raízes, conhecem bem as dificuldades e os desafios de ser mulher, pobre e periférica, atravessar a ponte para estudar e desafiar a lógica do destino que nos reservaram.

Enfermeira Ana Cristina N Silva, pós-graduada em Hematologia, Hemoterapia e Terapia de Suporte, cursando Gestão Hospitalar e atualmente atuando como Supervisora de Enfermagem em um Hospital Público da zona sul. 

Enfermeira Solange Cristina Silvestre Silva.

Enfermeira Solange Cristina Silvestre Silva, 42 anos, atua em Saúde Pública Primária desde 2002. Em 2013 passou a dedicar-se à saúde do idoso e é responsável por uma equipe que atende, exclusivamente, o programa de atenção aos idosos, onde permanece até o momento.

Agente Comunitária de Saúde, há 9 anos atuando no território ( por solicitação da profissional não iremos identificá-la).

Enfermeira Ana Cristina Silva

Para Ana Cristina, a profissão que escolheu, com presença predominantemente de mulheres, é exigida de maneira exaustiva nesta pandemia e lembra que estamos vivendo não só uma guerra contra um vírus devastador, mas uma guerra da saúde física e psicológica que assola a vida de milhares de mulheres da linha de frente. Todos os profissionais da saúde estão exaustos, sobrecarregados, emocionalmente abalados por tantas perdas e pelo medo de serem contaminados ou de se tornarem um meio de contaminação para a família.

Solange Cristina reforça os sentimentos da sua colega de profissão e destaca que, em  2020, os idosos foram a faixa etária mais afetada pela doença da Covid, tornando uma pandemia mundial que causou a nós, trabalhadoras da linha de frente, uma sobrejornada de trabalho imensa: sentimos como nunca o peso desse momento. As consequências foram inevitáveis e logo percebidas, tais como: insegurança, culpa, medo, cansaço físico e mental”.

A Agente Comunitária de Saúde, relata que cada equipe conta com 6 ACS e cada uma atende em média 200 famílias, o que soma uma sobrecarga de atendimentos mensais, uma vez que uma família recebe várias visitas no transcorrer do mês. “Na pandemia, apesar da não exigência destes números, nosso trabalho com ferramentas tecnológicas (tablet) aumentou muito.”, ela relata. 

E continua seu relato: “Nesse mais de um ano de pandemia, várias doenças acometeram as profissionais, além de diversos casos de COVID, que não foram internadas, mas ficaram afastadas do trabalho e das famílias e, quando do retorno, apresentaram sequelas, como: problema de coluna, dores nas pernas, transtorno psicológico e outros. Tudo isso é agravado pelas novas solicitações, trabalhamos só no território e com a vacina somos deslocadas para outros lugares, saímos da nossa função (que é o cuidar das pessoas) e vamos para os ‘drives trhu’ registrar as vacinas. Isso é exigido de todos os agentes comunitários de saúde. Saímos do nosso território, pegamos ônibus lotado (temos transporte só de ida), a volta é por conta de cada uma. Isso é muito ruim, sob o ponto de vista de segurança, cuidamos de outras pessoas. Essa pandemia deixou muita gente dependente de remédio, ora para dormir, ora para se acalmar.”

A enfermeira Ana Cristina observa uma mudança nas relações no ambiente de trabalho. Acarretadas pelo grande número de internações da COVID, “Os profissionais estão mais sensíveis no sentido de empatia. Por outro lado, há muita fadiga e tensão, estresse e medo.”

Solange Cristina vive uma experiência positiva. Apesar do momento crítico e difícil, sente que a relação no ambiente de trabalho mudou muito durante esse período de pandemia. “As pessoas se tornaram mais próximas. Mesmo com o distanciamento físico, surgiu uma maior empatia, menos cobrança, maior colaboração mútua e despretensiosa.”

Já a Agente Comunitária de Saúde sente que falta uma relação de afeto entre todos. “Se um funcionário testa positivo, a única orientação é ficar em casa e manter o isolamento. Precisa de apoio da gestão, do médico e não apenas validar os 14 dias de isolamento e após vida normal. Isso é pouco para esta profissional que agora é paciente. Precisam ser mais atentos, se colocarem no lugar dessas aflições.”

Viver todos os dias com a ameaça silenciosa de que você pode ser contaminado e é um risco para sua família e outras pessoas com quem tenha contato é a realidade de Ana Cristina, que vivenciou muitas profissionais deixando suas casas por um determinado período, tendo contato com a família apenas por telefone ou vídeo chamada. “Muito dolorido para essas mulheres ficarem longe dos filhos, mas foi com a intenção de protegê-los.”

Solange Cristina, destaca que “uma vez contaminada, a profissional sofre a pressão psicológica pelo medo e a culpa de trazer o vírus para o seu lar e recebe ainda a responsabilidade de evitar que outras pessoas do seu convívio sejam contaminadas. As relações familiares, que já não estão firmes por conta da pandemia, acabam ficando ainda mais enfraquecidas.”

Cada uma com a sua realidade, o medo está sempre presente. Principalmente para quem já teve um caso na família, o medo é ainda maior. Nossa Agente Comunitária de Saúde teve a mãe internada por causa da Covid e o medo da reinfecção e também de infectar outras pessoas passa a ser uma sombra. Diz: “Sentimos muito medo e ele continua. Medo por estar na linha de frente. Medo de contaminar os filhos, o marido, sobrinho, enteados. É um medo que você não sabe definir.”

Nós, da Coletiva de Mulheres do Expresso Periférico, nos perguntamos quem cuida de quem cuida? Quem cuida dessa grande incidência de doenças emocionais provocadas por este quadro de urgências e perdas, presente no cotidiano da profissão? Foi pensada uma equipe dedicada a acolher e dar apoio, tratar do emocional de quem está na linha de frente?

Ana Cristina sugere como urgência a necessidade das instituições terem um espaço destinado ao apoio psicológico para os funcionários e que ofereça a oportunidade e a possibilidade de discutir questões conflitantes, sofrimentos e propor sugestões. Cita, como exemplo, a criação, desde o início da pandemia, de grupos voluntários de psicólogos para dar suporte aos profissionais da Saúde e fala de um lugar de quem viveu essa experiência: “Eu mesma fui atendida por uma das profissionais do grupo, um trabalho incrível que reuniu vários psicólogos de todo Brasil para atendimento individual e gratuito. Poder falar e ser ouvida nos dá a sensação de amparo.”

Solange Cristina, enfermeira cuidadora de idosos, entristece-se com a resposta. “A mais triste que existe para a própria cuidadora, porque ela não se dá por vencida e muitas vezes não tem ninguém que cuide dela. Infelizmente não tem uma equipe preparada e separada para cuidar das pessoas que atuam na linha de frente, o desgaste emocional e o físico não estão sendo assistidos.”

Solange lembra que “os equipamentos de segurança foram fornecidos adequadamente: nos foi  dado cursos para esclarecimento de uso e dispensação correta, porém, apesar dos equipamentos, alguns profissionais acabaram se contaminando e se afastando do ambiente de trabalho e não receberam apoio à distância. Ficaram literalmente em isolamento social. Não foi criado um trabalho exclusivo de acolhida para o retorno dessa colaboradora ou mesmo um monitoramento qualificado durante seu afastamento.”

A Agente Comunitária de Saúde, recentemente, viu no grupo de trabalho da equipe que “existe um grupo de apoio de psicólogos e psiquiatras para todos que sofrem ou sofreram com a pandemia. Tenho me mantido firme, não utilizei o serviço, mas existem pessoas que precisam desse apoio.”

Para Ana Cristina, o diagnóstico não deixa dúvidas: “Os principais motivos que levam as profissionais de saúde ao sofrimento mental durante a pandemia são: medo de ser demitido e perder seus meios de subsistência; medo de ser infectado e ser colocado em isolamento, separando-se da família; sobrecarga física e mental; filhos em casa em virtude do fechamento das escolas; necessidade de se atualizar sobre a nova doença; luto pelas perdas dos pacientes e colegas, sofrer hostilidades por parte da população pelo fato da profissional de saúde ter contato direto com o vírus. Diria que todo esse quadro nos leva ao diagnóstico de que a saúde mental dessas profissionais está bastante fragilizada.”

Solange Cristina enfatiza para nós que “a situação atual das profissionais da linha de frente está crítica, sufocante, porém, temos nos apoiado uma nas outras com diálogos francos, cooperação, escuta, fala coerente. Estamos no papel de mulheres que levantam e sustentam outras mulheres.”

E ainda lembra que “a nossa rede de afeto nos traz medo de errarmos no trabalho, nos traz medo de falhar na função, de não conseguir dar o diagnóstico correto, não dar o socorro preciso, de não dar o nosso melhor a cada dia.”

“A nossa saúde, de quem trabalha na rua e trabalha diretamente com a população, está muito fragilizada. Essa é a palavra correta, fragilizada”, diz a Agente Comunitária de Saúde, que se solidariza com suas colegas. “Não são todas que têm o mesmo ânimo, têm algumas que continuam trabalhando por necessidade, porque se não fosse a necessidade, já tinham pedido para sair”, destaca.

Finalizando nosso bate-papo, nossas entrevistadas deixaram uma palavra de carinho para suas companheiras de profissão, neste mês da mulher trabalhadora na saúde.

Ana Cristina coloca todo seu amor e respeito pelas colegas de profissão, poetizando para essas batalhadoras e defensoras da vida: “Mulher… Mãe… Profissionais da Saúde…Que sejas sempre lembrada, não apenas por um dia, mas no dia a dia… Que sejas festejada, não por convenção, mas pelo seu valor, sua força, seu coração. Que sejas respeitada com todo carinho, e todo amor… Hoje e sempre!”

Solange Cristina manda uma mensagem para suas companheiras de profissão: “Vamos vencer essa guerra, que, apesar de algumas profissionais terem nos deixado pelo caminho, isso nos fortalece dando garra para seguirmos firmes, pois o nosso valor está sendo reconhecido aos poucos, às custas de muitas perdas, lutas, choros, desesperos, inseguranças, medos, mas, com fé em Deus, vamos sair fortalecidas, confiantes, seguras, preparadas para ensinar à próxima geração de mulheres e profissionais  como vencer uma guerra apesar de tudo e de todos. Nada dura para sempre!”

A Agente Comunitária de Saúde lembra as companheiras e amigas que “por mais árdua que seja nossa luta, não pensem em desistir, pois guerreiras como nós não fogem à luta. Logo chegará a vitória.”

Nós, da Coletiva de Mulheres do Expresso Periférico, agradecemos às companheiras da saúde pela dedicação diuturna, prestando toda a nossa solidariedade, emanando energias da força do sagrado feminino para recuperação e cura do nosso planeta. 

Na próxima edição, vamos tratar de um assunto que deve ser debatido por todes: As relações do trabalho doméstico x trabalho escravo e o cárcere privado que, lamentavelmente, vem ocupando o noticiário e mostrando a triste realidade desse trabalho que, na pandemia, foi sacrificado ao extremo.

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Escrito por Coletiva de Mulheres

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