Os filósofos não nascem da terra como cogumelo. São frutos da sua época, do seu povo. Daí extraem as seivas mais sutis, as mais preciosas. E as mais visíveis para as exprimirem nas ideias filosóficas. O espírito que constrói os sistemas filosóficos nos cérebros dos filósofos é o mesmo que constrói as estradas de ferro com as mãos dos operários. A filosofia não é exterior ao mundo…

Karl Marx – “A Gazeta Renana”, 14 de Julho de 1842, Oeuvres, t.I, p. 242 Mega, in Sobre Literatura e Arte, Global Editora – 3ª Ed. São Paulo : 1986

Os pensadores Gilles Deleuze (filósofo, 18/01/1926 – 04/11/1995) e Félix Guattari (Filósofo e psicanalista, 30/04/1930 – 29/08/1992) iniciam a obra O Que é a filosofia? apontando que, “Talvez só possamos colocar a questão O que é a filosofia? tardiamente, quando chega à velhice, e a hora de falar concretamente.” (2010, pág. 7) fazendo com que a bibliografia sobre o assunto seja reduzida. Aduzem que apenas na velhice é possível buscar uma concretude, talvez porque há uma maior liberdade presente na “graça entre a vida e a morte” em virtude de uma maior leveza na relação do pensador com a filosofia. Os autores argumentam ainda que a maneira como a filosofia era formulada antigamente, isto é, de maneira indireta ou oblíqua, com grande artificialidade, sua construção era deveras abstrata. (2010, pág. 7). Este é o ponto que norteará o livro: a força concreta do conceito que experimenta constantes movimentos de desterritorialização e reterritorialização, a infinitude do plano de imanência e o quase sempre oculto personagem conceitual.

Ainda na introdução, apontam que cabe à filosofia fabricar, criar, inventar conceitos, tornando-o, mais que amigo da sabedoria: amigo do conceito. A filosofia é a disciplina que tem por objeto criar conceitos novos. Portanto, identificamos uma força no conceito ao explicar, com certa multiplicidade, mesmo àquele que inaugura uma “filosofia” ou rompe com outra, tal como uma semente que germina e já não é mais semente, é planta, sem nunca ter deixado de ser, pois esta é a sua natureza e sem nunca ter sido, pois semente não é planta. Contudo, toda criação é singular, inclusive temos uma singularidade no conceito como criação filosófica (2010, pág. 13). A planta é o devir da semente germinada, no exato momento em que ela é e será. Ao salientar que o devir não é fenômeno de imitação ou de assimilação, mas uma evolução entre dois diferentes mundos. Os filósofos insistem que o devir não é mudar pois, “não há término ou fim para o devir”.

Apresentam ainda que, ao serem criados, fabricados, inventados pelo filósofo, os conceitos ocupam o plano da imanência, um espaço pré-filosófico, apesar de haver uma ilusão de transcendência (2010, pág. 61) não surgem de forma transcendental. Os autores reforçam que o plano de imanência não é um conceito ou o pai de todos os conceitos (2010, pág. 45). Lembram que poderíamos nos referir ao plano de imanência como um plano de natureza, e é infinito, pois não remete a coordenadas espaço-temporais, não sendo referencial de posicionamento físico, já que é o horizonte que se movimenta, isto é, o horizonte relativo se distancia enquanto o sujeito avança. Como os autores argumentam, o plano de imanência não é um conceito pensado ou pensável, mas a imagem do pensamento (2010, pág. 47). É a esperança e a certeza de que a semente do trigo germinará e se transformará em trigo. Se fôssemos buscar a resposta no plano transcendental, acabaríamos por simplificar a ideia e a sua concretitude requer um processo de certezas somente possível no plano da imanência. Sustentam que o plano de imanência seria como um corte do caos, e que “o que caracteriza o caos, com efeito, é menos a ausência de determinações do que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e desaparecem: não é um movimento de uma à outra, mas, ao contrário, a impossibilidade de uma relação entre duas determinações, uma vez que uma não aparece sem que a outra já tenha desaparecido, e que uma apareça como evanescente quando a outra desaparece como esboço” (2010, pág. 53). Assim, “O caos caotiza, e desfaz no infinito toda consistência” (2010, pág. 53) e devolve o que já não é esboço, mas conceito.

A fuga ao abstrato também está presente naqueles que tipificam os conceitos, isto é, os personagens conceituais – mais que arquétipos construídos pela filosofia, ou melhor, pelo filósofo como bastiões da defesa do conceito, são tipos que possuem movimentos físicos e mentais psicossociais, com sintomas patológicos, atitudes relacionais e até mesmo modos existenciais (2010, pág. 85). Aduzem que aparecem muito raramente, mas se encontram lá. Nem sempre é nominado e por vezes subterrâneo, mas construído pelo leitor. Segundo os autores, o personagem conceitual não é um representante do filósofo ou uma personificação abstrata (2010, pág. 78). São os verdadeiros sujeitos e o devir de uma filosofia (2010, pág. 79).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo em simples conversas do cotidiano – na padaria, na feira, na portaria – ou na elaboração de um texto mais complexo, temos de nos ater na pureza do significado dos conceitos. Estes mudam no espaço e tempo e podem gerar desconfortos quando mal empregados.  A ideia que o conceito carrega é passada de geração para geração através de lendas, fábulas, parlendas, ditados e relatos orais ou registrados. Os neologismos não trazem uma definição conceitual final, pois o conceito deve experimentar constantes movimentos de desterritorialização e reterritorialização até atingir seu grau máximo e atender as expectativas de diálogos.

A argumentação de Deleuze e Guattari sobre conceito, personagem conceitual e o plano de imanência, nos primeiros capítulos de O que é a filosofia?, mostram a busca de uma análise concreta da filosofia. Isso humaniza o pensamento filosófico, distanciando-o de uma visão transcendental, e, consequentemente, contribuindo para popularizar a filosofia, posta que ela é uma criação dos homens. Isso é reforçado pelos exemplos propostos ao longo do texto. Contudo, popularizar não significa simplificar mas, através de novos conceitos, criar uma nova forma de relação Homem-Natureza. Contudo, ainda temos um longo caminho a seguir, pois isto requer uma educação básica bem estruturada, com amplos conhecimentos de história, geografia, mitologia, psicologia e literatura – popular e clássica, além de desenvoltura na interpretação de texto. E o filósofo, amigo do conceito, sabe que este passará por movimentos de desterritorialização e reterriorização, pois o devir não tem fim e dialogará com o leitor através dos personagens conceituais.

Saiba Mais

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix; O que é a filosofia?,  3ª ed. São Paulo: Editora 34, 2010.

Imagem: Bruno O.

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