Espaço onde Luana luta e resiste à luta de classe e à crise sanitária, por Celso Horta.

Aqualtume foi uma princesa africana. Em 1665, liderou uma força de dez mil congoleses contra a dominação portuguesa. Capturada, foi escravizada e enviada ao Brasil. Mãe de Ganga Zumba e avó materna de Zumbi dos Palmares, ajudou a organizar e comandar o maior quilombo da história, o Quilombo dos Palmares. A memória dessa princesa africana é a referência maior de Luana Vieira, nossa princesa Luana do Pagode na Disciplina, do Núcleo da Uneafro Brasil, da Coalizão Negra por Direitos, do Movimento Paulistano de Rodas de Samba e do Fórum de Cultura Cidade Ademar. Mãe de quatro mulheres e um homem, mulher preta como se define, 38 anos, Luana Vieira é nascida e foi criada no bairro do Jardim Miriam. Estudante de Direito e formada em Recursos Humanos, é também membra/estagiária da Comissão de Igualdade Racial da OAB/SP, articuladora na Coalizão Negra por Direitos e co-autora do Livro “Inovação Ancestral de Mulheres Negras“, lançado em 2018 pela Editora Oralituras. É ela a entrevistada dessa edição do Expresso Periférico.

Luana, como você se identifica para os leitores do Expresso Periférico?


“Eu sou cria aqui do Jardim Miriam. Meus avós vieram de Alagoas e Bahia, minha mãe nasceu no interior de São Paulo e veio para a capital muito nova. Eu nasci, fui criada e resido há 38 anos aqui”.

E é também aqui que Luana luta e resiste à opressão de classes e à crise sanitária, ela e seus filhos Raquel, 23, Rebeca, 19, Rafaella, 13, Raphael, 11, e Raysa, 9. O Pagode Na Disciplina, cuja sede está provisoriamente transformada pela pandemia em espaço de assistência social, é uma de suas trincheiras. 

Como você define o Pagode na Disciplina?

“O Pagode na Disciplina é uma comunidade de roda de samba que procura trazer uma perspectiva de bem viver para os moradores e frequentadores do bairro, os que se identificam com a cultura do samba de raiz, um espaço de acolhimento para crianças, jovens, mais velhos que se reúnem todo último domingo do mês para uma tarde de lazer, encontros e muito samba. Eu me criei em rodas de samba, meu marido Thiago Marcelino é músico e sambista, de uma família de tradição de sambistas. Em 2015, ele e seus primos tiveram a ideia de trazer esse momento para a comunidade, de se reunir com amigos e fazer uma roda de samba, já que no bairro não acontecia nada. Eles eram integrantes de outras comunidades de samba, como Samba da Laje (Zona Sul) e Maria Zélia (Zona Norte). Sentiram a necessidade de realizar a roda aqui, rever os amigos, trazer as famílias. No início, as rodas aconteciam ali no campo do CDM Jardim Miriam, na rua da feira de domingo. Ficou ali durante um ano e começou a ter uma proporção bem maior do que imaginávamos. Eu acompanhava de perto e foi preciso adequar a roda a uma organização maior. Fui convidada a contribuir e colaborar com os projetos e a primeira iniciativa foi ocupar a rua, utilizar a via pública como espaço para desenvolver o projeto. Não contamos com outro espaço no bairro, como uma praça, uma quadra pública, nada.”

Você é uma das principais lideranças do Pagode na Disciplina. Como você se envolveu com esse projeto?

“Eu sempre senti a necessidade de atividades culturais no bairro, eu cresci sem ver isso. Meus filhos mais velhos cresceram sem participar de atividade sociocultural aqui. Quando passei a colaborar no Disciplina, vi que tínhamos muitas mulheres, mães e crianças moradoras do bairro e também frequentadoras do samba. Era preciso um olhar mais cuidadoso, fazer com que as famílias pudessem vir para o samba e ficar tranquilas. Eu, como mãe, sempre tive problemas para frequentar algum show, alguma festa, lugares onde a entrada de crianças não é permitida. Ou que não acolhem e incluem as crianças no contexto. Então, passamos a oferecer brinquedos infláveis na rua, monitores para controlar entrada e saída, dando assim segurança para que essas mães pudessem ter lazer, muitas vezes o único dentro do mês. Também contamos com um espaço de recreação para os menores, uma sala usada para roda de leitura e desenho.”

A iniciativa de vocês em torno do samba acabou se desdobrando em novo projeto, o “Núcleo Uneafro Pagode na Disciplina”, cursinho popular para preparar jovens negros e negras da periferia para ingresso na universidade. Como foi esse processo?

“No Pagode na Disciplina começamos a pensar em ter um cursinho para os filhos dos frequentadores do samba. Então passamos a articular a criação de um cursinho pré-vestibular ao lado do bar sede do Disciplina. Todos os sábados, cerca de 20 jovens da região assistem a aulas preparatórias para os vestibulares nacionais. O nome do cursinho faz homenagem à história do Disciplina, em parceria com a Uneafro: “Núcleo Uneafro Pagode na Disciplina”. E também construímos a primeira biblioteca comunitária com temáticas raciais, com acervo de cerca de dois mil livros, que atua de forma circulante, incentivando a leitura e fortalecendo o ensino na periferia.”

Numa sociedade em que o racismo se manifesta de maneira perversa, como o seu compromisso com as causas antirracistas impactam no samba e, particularmente, no Samba no Disciplina?

“A construção do Disciplina permitiu analisar o modo de vida da juventude negra, sobretudo periférica, dos frequentadores do samba, da forma como esses músicos vêm sendo tratados na sua perspectiva musical e como sambistas. O objetivo é constituir forças de existência e resistência de uma manifestação cultural da população negra que sobrevive até os dias de hoje e fazer os jovens entenderem qual a importância da valorização do samba, patrimônio imaterial da comunidade negra. É também preciso mostrar que as iniciativas que promovem o reconhecimento de grandes trabalhos no samba são as mesmas que colocam no esquecimento grandes sambistas, em especial os sambistas negros. A meu ver, eles dão visibilidade a artistas com perfis elitizados, vendendo a ideia de que o negro do samba é malandro periférico. Fazer e cantar samba é questionar a nossa realidade, uma forma de contar nossa história amenizando nossas dores, festejar nossas alegrias e manter vivas a valorização e a tradição de um povo.”

E, com a necessidade de isolamento social proposto pela pandemia da Covid-19, como o Pagode na Disciplina está fazendo? E você, pessoalmente?

“Nossos instrumentos foram silenciados e nosso samba virou cesta básica. Mas o Pagode Na Disciplina não deixou de ter relevância ao ser transformado em depósito de cestas básicas. Da nossa sede saem recursos para a sobrevivência de centenas de moradores da região. Também pudemos ajudar campanhas de outras comunidades de samba que não têm condições financeiras. Assim que começou a pandemia, começamos a produzir refeições para as crianças moradoras aqui das ruas próximas. Elas estão na rua, não vão mais à escola. Logo, muitas não tinham onde se alimentar. Algumas contavam apenas com as refeições servidas na escola. A cada dia, eu via o número aumentando, até que o inevitável aconteceu: o número aumentou desenfreadamente. Chegamos a entregar 250 marmitas por dia, famílias sem auxílio, sem emprego e sem recurso nenhum para se manter minimamente durante a pandemia. Há um ano estamos produzindo marmitas diárias. Ainda existem muitos moradores em situação de rua e aqui (na região) não tem Bom Prato. Com as restrições, o comércio local também passa por situações complicadas. Com apoio da Uneafro, em parceria com algumas instituições, já entregamos cerca de 4.200 cestas básicas, produtos de higiene, fraldas, leite e cerca de 15 mil marmitas. Pessoalmente, ainda divido meu tempo com meu curso de Direito, com meu trabalho de coordenadora no escritório central da Uneafro e com as tarefas diárias em casa. Tenho três filhos no ensino fundamental fazendo aulas à distância.”

E as apresentações? Estarmos juntas e juntos não faz parte da natureza do samba?

Optamos por não realizar apresentações, por seguir as medidas de isolamento porque, além de fazer samba e nos reunirmos, também queremos preservar a vida dos nossos que, historicamente, são alvos de política pública de genocídio, de um sistema que segrega e mata. Precisamos manter-nos vivos para dar continuidade à resistência do samba. Pagode Na Disciplina, em toda a pandemia, reuniu-se uma única vez numa live restrita em comemoração aos cinco anos de projeto. Ela foi transmitida ao vivo no canal do youtube para toda comunidade. Ainda estamos com todas as atividades suspensas até que todos estejam vacinados e em segurança.”

Referências?

“Sim, tenho muitas, mulheres negras fortes e de luta. Minha mãe Irene, minha avó Madalena, Tia Ciata foram e são essenciais em minha vida para a resistência e luta. Bianca Santana e Vanessa Nascimento, ambas me ajudam a compreender e fortalecer saberes e sabores para (re)existir. Douglas Belchior, meu amigo e irmão de luta, com quem divido esperança de dias melhores para jovens negros e oriundos de periferia. E muitos outros nos quais me inspiro no aprendizado e no crescimento.”

Sonhos?

“Sim, em especial que existam políticas públicas de bem estar para a comunidade negra, que a periferia possa ser olhada com afeto e responsabilidade, que jovens negros deixem de ser alvo de uma política de morte, que suas vidas não sejam ceifadas, que possamos ter condições de cuidarmos uns aos outros e tenhamos vida longa e próspera, com educação de qualidade, saúde e cultura. É o que desejo, para os meus filhos e para os filhos dos meus.”

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Escrito por Expresso Periférico

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