Uma das primeiras mulheres negras em Olimpíadas

Novembro, um dos meses em que mais se reflete sobre a consciência e lutas da população negra, o Expresso Periférico tem a honra em trazer nas suas páginas um pouco da história de uma mulher da nossa gente, moradora do JABAQUARA, que brilhou no atletismo, conquistando medalhas em uma série de competições nacionais, internacionais e olímpicas.

Com uma acolhida generosa, um bom papo e um café com saboroso bolo de fubá, a atleta, que é professora de educação física e graduada em astronomia, nos relata um pouco de sua vida. Aos 88 anos e com uma oralidade e energia de juventude, vai nos falar sobre a familia, suas lutas, habilidades, persistência, conquistas e atuação social.

Uma das primeiras mulheres negras nas olimpíadas.

Estudo, agilidade, preparo físico, esporte, conquistas, racismo e compromisso social.

Com vocês, a nossa Campeã Olímpica!


“Me chamo Deise Jurdelina de Castro Freire, nasci em 18 de setembro de 1933, em São Paulo. Sou filha de Josenilda de Sousa Castro e Francisco de Castro. Tenho 2 irmãos, Rubens de Castro e Darci de Castro. Um Filho, Fabio de Castro, uma filha e os netos. Tinha avós e avôs maternos como paternos, enfim , uma vasta família. Meu pai era filho de descendentes imigrantes negros vindos dos Estados Unidos. Chegando aqui, casou-se com uma indígena. Comecei a estudar com 5 anos de idade no colégio de freiras, na Vila Matilde, onde tinha um bom atendimento. Isto porque meus pais eram muito presentes na escola e acompanhava tudo que acontecia. Eram poucas crianças negras, pois a escola era paga. No meu caso, isso foi possível porque minha mãe era professora e meu pai trabalhava em um banco da família Ermírio de Moraes. Fiquei nessa escola até os 10 anos, quando já peguei o diploma.

Minha mãe, além de professora, dominava outras culturas, como fazer bordados. Ela me instruiu este saber, o qual eu ensinava as irmãs italianas que dirigiam o colégio. Ao sair do colégio, fiz outros cursos para entrar na Escola Técnica Federal, Carlos Campos, que atualmente é a escola técnica Getúlio Vargas. Naquele tempo, uma menina tinha obrigação de saber de tudo que uma mulher precisa fazer, desde tecer bordados e até cuidar de bebês. Sei que fiz muitos cursos. Aos 14 anos me formei, fiquei nessa escola por 6 anos e saí de lá como profissional.

Passarinha batendo asas
De salto em varas pelo ar
Ganhou medalhas de ouro
Nos esportes a brilhar
Uma estrela brasileira
Que soube nos representar.

Como era uma aluna dedicada e na educação física ia muito bem, fui orientada pela professora, dona Laís, a praticar esportes. Com autorização dos meus pais, ela me apresentou ao Clube Floresta, que ficava na Ponte Grande, que depois mudou o nome para clube Esperia. Nesse período, ainda aos 14 anos, dentro de seis meses, comecei a bater vários recordes de salto em altura e corridas de 50 metros. Depois, no Clube Paulista, na rua Augusta, fui campeã de 50 e 100 metros. Posteriormente, no campeonato do Troféu Brasil, no Rio de Janeiro, bati recorde nos 200 metros, num campeonato que era para adultos.

Com essa conquista, fomos classificados para um campeonato no Peru. Como o técnico que nos treinava venceu o seu contrato, ele foi para o Palmeiras e eu o acompanhei, mas  sempre acompanhada por minha mãe e meu pai, mesmo porque havia uma preocupação, pois no Palmeiras havia muito racismo por parte dos italianos. Foi muito discutido na época, se eu deveria ir ou não. A decisão foi que sim, mas em momento algum, deveria tocar no assunto sobre discriminação e preconceito. E foi isso que aconteceu.

Fui bem tratada no clube e recebi todo apoio que precisava junto com outros atletas.

Correndo com  presteza
Emocionou muita gente
Medalhas de ouro no Brasil
E em outros continentes
Nem percebia o racismo
Embora estivesse presente.

A partir daí, bati os melhores recordes em várias corridas e saltos em altura, além de ter sido campeã e vice-campeã sul-americana pela seleção brasileira. Nesse campeonato, fui agraciada pela Eva Perón, na Argentina, a qual me levou ao público e me aplaudiram muito. Como eram muitas as vitórias e conquistas de campeonatos, tudo isso não deixava espaços para perceber comportamentos ou atos racistas.

Particularmente, tive muita sorte, tanto aqui como lá fora, fui muito bem tratada. Foi dentro deste ambiente esportista que conheci o Edgard Freire, que também era atleta, começamos a namorar, depois nos casamos e vivemos 66 anos juntos, até que ele veio a falecer agora em 2020. Durante todo esse tempo, nunca deixei de estudar e manter os laços familiares que sempre foram muito estreitos. Quando mudei para o Jabaquara, começou uma nova vida.

Na ida para as Olimpíadas, naqueles tempos, o espírito esportivo prevalecia. Na Seleção Brasileira havia muita união entre as equipes e todos só pensando em defender o Brasil. Era muita emoção, aquele clima esportivo nos fazia superar diferenças e dificuldades, com muita dedicação e garra. Embora a grande maioria dos atletas fossem homens e apenas três meninas, meninas negras, havia muito respeito e um cuidado com as moças. Diante deste quadro animador e estimulante, não percebia qualquer sinal de discriminação ou preconceito.

Nas Olimpíadas de 1952, houve uma tentativa de mudança de pessoas negras para os andares mais altos do prédio e os brancos para os mais baixos. Diante disso, liguei para a Gazeta Esportiva, dirigentes da seleção, relatando este fato e dizendo que queríamos vir embora se isso acontecesse. Com aquela pressão toda, houve reuniões entre os dirigentes e desistiram de fazer a mudança. Mas só depois que já estava afastada dos esportes que fiquei sabendo que briguei contra a discriminação racial. Nos meios esportivos, não se comentava nada. Depois fiquei sabendo que o deslocamento era devido a uma pressão dos Estados Unidos para colocar sua delegação nos andares de melhor acesso.

Comprometeu com o social
Das crianças à terceira idade
Buscou apoios públicos
E envolveu a comunidade
Festas de rua e juninas
E outras necessidades.

Quando cheguei no Jabaquara, uma das preocupações era de poder passar para as crianças e jovens os benefícios que o esporte nos traz. Tive  reumatismo aos nove anos e, com a prática esportiva, resolvi este problema enquanto estava praticando esportes, o qual voltou recentemente, tornando-se uma reumatoide que dificulta a locomoção.

Retomei os estudos, pois precisava me preparar para ter uma estrutura financeira para sustentação familiar. Ao mesmo tempo, fomos organizando atividades esportivas, mesmo porque as pessoas pediam para trabalhar o esporte no bairro. Havia várias pessoas técnicas nesta região, inclusive o Edgard, que já era campeão da São Silvestre. Fizemos uma primeira pré – São Silvestre de bairro.

Houve um chamamento para que eu tivesse uma vida social e estava em discussão a formação do Conselho do Idoso. Fui eleita e me dediquei à formação deste conselho e, como era a mais nova, fui eleita a presidenta. Mesmo estando com este compromisso, continuei me dedicando também ao esporte com as crianças e juventude. Além disso, criei uma sociedade espiritual, não para questões religiosas, mas sim  dedicada à área social, onde fazíamos grandes festas juninas, ruas de lazer para as crianças, comemoração do dia das mães e entrega de brinquedos e de cestas básicas e junto a isso fazia orações pedindo proteção para as crianças. Cada ano eram entregues 2 mil cestas para as pessoas que precisavam. Tudo isso com apoio da Prefeitura, Corpo de Bombeiros e em parceria com outras entidades da vizinhança… Era tudo bem organizado e registrado, temos documentação de tudo isso.

Uma das consequências das práticas dos esportivas, foi nas Olimpíadas no Rio de Janeiro de 2016. Corri com a tocha olímpica, representando São Paulo, e fomos da Rua Sena Madureira até a Escola  Paulista e quem a recebeu foi o esportista Edgard que, juntamente com uma professora, a levou até o Hospital São Paulo e lá foi recebido por outros professores. Sei que foi uma grande festa na Vila Clementino e Jabaquara. Fico muito agradecida, pois tenho  o reconhecimento das pessoas.

Será que o racismo é silenciado?
Pra não haver rebelião
Às vezes não se percebe
Mesmo havendo discriminação
O estudo é uma das formas
Para evitar a exclusão.

Nessa questão do racismo, acho que tinha um conflito comigo mesma, mas minha educação familiar me ajudava a me proteger. Mas quando estava no colégio, era estranho, porque tinha filas de crianças negras separadas das brancas. Acho que devido à presença constante de meu pai e mãe na escola, criava um certo respeito, me dava uma proteção e pessoalmente não me sentia atacada. Meus avós e pais sempre disseram que todos deveriam estudar, que não adiantava se prender ao racismo, a maneira que tínhamos de vencer era com o estudo. Assim, todo os meus  familiares estudaram e se formaram. Tenho muita honra de ter nascido no Brasil. Aprendemos a respeitar todas as raças e assim vamos levando, embora a gente veja o racismo presente a todo momento, mas, com a formação de berço, a gente supera e vai em frente sem se escravizar.

No esporte até que o racismo não aparece tanto, porque os negros ganhavam muitos campeonatos para os clubes. Depois de muito tempo que fui perceber que isso era tolerado devido aos seus interesses.

Hoje eu luto para que a nossa raça continue estudando, praticando esportes, respeito de uns com os outros, a família e os amigos. Negros com seu trabalho e honestidade precisam se impor e não ter medo de nada e nem de ninguém. No que for para ajudar a comunidade, estou à disposição, principalmente na questão esportiva. 

Outras informações sobre a atleta, consulte o trabalho de pós-graduação de Claudia Maria Farias. Revista Canoa-Universidade do Amazonas.

Imagem: Bruno O.

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