Crise estrutural do capital e crise ideológica: Movimento Escola Sem Partido, naturalização e eternização do capital. Por Wilson Hilário Borges Filho

Pretendo, com esse artigo, encontrar as origens ideológicas do Movimento Escola Sem Partido no Brasil, surgido em Brasília, 2004. Serão analisados os teóricos citados no site do movimento e suas relações com o arcabouço da proposta. Também pretendo entender seu crescimento vertiginoso a partir do aprofundamento da crise estrutural do Capital pós 2008, culminando com a aprovação do primeiro Projeto de Lei impulsionado pelo movimento, conhecido como Lei Escola Livre (7.800.2016).

Elaborada pelo ex-senador Magno Malta (ex-senador eleito pelo PL – Partido Liberal) e membro da Frente Parlamentar Evangélica) e aprovada em Alagoas, 2016, a proposta prevê a fixação de cartazes em todas as salas de aula do país com “seis deveres” do professor, com objetivo de impedir a ocorrência da “doutrinação ideológica” nas salas de aula. No cartaz determinado pela Lei Escola Livre, encontramos:

Os deveres do professor:
1. O professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias.
2. O professor não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas.
3. O professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.
4. Ao tratar de questões políticas, socioculturais ou econômicas, o professor apresentará aos alunos de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade – as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito.
5. O professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
6. O professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula.

De acordo com o movimento, a doutrinação ideológica se manifesta quando os professores se aproveitam de sua condição de autoridade para incutir, mesmo que pela força, as suas posições ideológicas junto aos estudantes, em um entendimento da educação enquanto transmissão de conhecimentos.

Pretendo evidenciar o suporte teórico e ideológico do movimento, relacionar estes pilares com as concepções de seus apologistas e entender seu crescimento a partir da intensificação da crise estrutural do capital.

Crise do capital

Segundo o filósofo húngaro István Mészáros, Capital e Capitalismo são conceitos distintos. O Capital, enquanto categoria, já existia antes do Capitalismo se consolidar. Assim, o capitalismo se apresentou como forma de organização do Capital enquanto exploração do trabalho. Para Mészáros (p. 76):

“Capital é uma categoria histórica dinâmica e a força social a ela correspondente aparece – na forma de capital ‘monetário’, ‘mercantil’ etc. – vários séculos antes de a formação social do capitalismo enquanto tal emergir e se consolidar.”

Portanto, na análise de Mészáros, Marx tratou o Capital como parte de um processo e, por isso, transitório. Considerava sua viabilidade confinada a uma fase histórica específica que devia ser superada pela transição socialista, que ocorreria com o estabelecimento do controle social da produção e não apenas através de uma revolução política que retire a burguesia da condição de agente personificado do Capital. Reconheceu o papel do Capital na superação da ordem feudal, mas apontou que agora, em sua fase descendente, o Capital se tornou nocivo para a própria existência da vida humana na Terra. Assim, afirma:

“Sob as condições de crise estrutural do capital, seus constituintes destrutivos avançam com força extrema, ativando o espectro da incontrabilidade total numa forma que faz prever a autodestruição, tanto para este sistema reprodutivo social excepcional, em si, como para a humanidade em geral.” (MÉSZÁROS, p.100)

Mészáros afirma que com o término do processo de expansão do Capital pelo globo, após a crise do petróleo na década de 1970, ativaram-se os mecanismos de crise estrutural do Capital. Com isso, cresceu a necessidade de internalizar a expansão do Capital pelo aprofundamento da retirada de direitos sociais e aumento da exploração do trabalho. E com a queda dos regimes pós-capitalistas (Mészáros define os países que passaram por processos decorrentes da Revolução Russa como pós-capitalistas por terem rompido com o Capitalismo mas não com o Capital – 1994), o Capital perdeu a possibilidade de focar suas armas em um inimigo externo, como ocorria até então. Para Mészáros:

“Pela primeira vez na história, o capitalismo confronta-se globalmente com seus próprios problemas, que não podem ser ‘adiados’ por muito mais tempo nem, tampouco, transferidos para o plano militar a fim de serem ‘exportados’ como guerra generalizada.” (MÉSZÁROS, p. 66)

Considerando que as experiências promovidas na Rússia e na China, por exemplo, nunca romperam com o Capital, mas apenas com o capitalismo, afirmou que a grande tarefa socialista colocada nesse contexto de crise estrutural do Capital seria desenvolver mecanismos de controle social da produção e neste sentido, afirma que:

“A principal lição da implosão socialista soviética é que só podemos esperar uma reabilitação capitalista se a definição de socialismo, em termos de queda do estado capitalista, for substituída pela tarefa muito mais fundamental, e difícil, de erradicar o capital de toda nossa ordem social.”  (MÉSZÁROS, p. 97)

Partirei da concepção de ‘Crise estrutural do Capital’ de Meszáros para analisar a perspectiva ideológica da proposta Escola Sem Partido, impulsionada pela necessidade do Capital de garantir uma formação escolar que naturalize e eternize o Capital. Em um contexto de retirada de direitos sociais e intensificação da exploração do trabalho, qualquer crítica ao Capital coloca em risco a estabilidade política e neste sentido que devemos entender o crescimento do movimento.

Ideologia e crise ideológica

Neste processo de crise estrutural do Capital, o Movimento Escola Sem Partido defende o fim da presença do que entende por “doutrinação ideológica”, realizada pelo magistério na educação como um todo, da rede pública à privada. Propõe a defesa de uma educação voltada para o atendimento das demandas do Capital através do ensino profissionalizante em uma perspectiva que entende sua organização social e econômica como reflexo da natureza humana. Desta forma, apenas ideias críticas ao Capital são definidas como ideológicas, partindo da concepção de ideologia enquanto ‘falsa consciência’ e que, portanto, deve ser combatida.

O MESP (Movimento Escola Sem Partido) buscou nos economistas da escola austríaca um pilar de sustentação para defender um conservadorismo moralista e ao mesmo tempo reivindicar o liberalismo econômico em torno de um projeto de Estado de eternização do Capital, partindo de uma simplificação do conceito de ideologia marxista. O economista austríaco Ludwig Von Mises (Mises é citado 5 vezes no site do MESP, sempre como contraponto aos discursos ideológicos marxistas), constantemente citado pelos apologistas do MESP em seu site (o site http://www.escolasempartido.org/ pertence ao advogado e fundador do MESP, Miguel Nagib), entende ideologia como “falsa consciência”, pois não acreditava em consciência social, atribuindo a cada indivíduo uma forma única de lidar com os desconfortos que pretende superar através da ação (Mises desenvolveu a Praxeologia, uma ciência econômica que analisa a ação humana individual como forma específica de lidar com os desconfortos a serem superados, negando assim a existência de ideologia enquanto forma de consciência social – 1949). Assim, afirmava:

“Ao nos referirmos à ideologia, temos em mente apenas a ação humana e a cooperação social. Problemas decorrentes da metafísica, de dogmas religiosos ou das ciências naturais, assim como das tecnologias que deles derivam, não são considerados. Ideologia é o conjunto de todas as nossas doutrinas relativas à conduta individual e às relações sociais.” (MISES, p. 222)

Para Mises, portanto, Marx buscava estabelecer uma consciência artificial, negando que a conduta individual de cada pessoa é única e buscando atribuir interesses coletivos que não existem. Assim, Marx teria inventado a ideologia apenas para justificar e possibilitar uma transformação socialista na humanidade. Desta forma, defendia que:

“Os interesses aos quais o marxismo se refere não são aqueles escolhidos pelos homens com base em julgamentos de valor. São os fins que as forças materiais produtivas têm como meta. Estas forças têm como meta o estabelecimento do socialismo, e utilizam-se dos proletários como meios para a realização desse fim. As forças materiais produtivas sobre-humanas perseguem seus próprios interesses, independentemente da vontade dos homens mortais; a classe proletária é apenas uma ferramenta em suas mãos. As ações da classe não são as suas próprias ações, mas aquelas que as forças materiais produtivas que querem ser libertadas dos ‘grilhões que impedem o seu desenvolvimento”. (MISES, p. 110)

A definição de ideologia enquanto falsa consciência foi apresentada pela primeira vez por Engels. Em uma carta destinada a Franz Mehring (Franz Mehring, socialista alemão, 1848-1919. Escreveu uma biografia de Marx e foi aliado de Rosa Luxemburgo), buscava explicar que a burguesia se estabelece no poder não apenas pela força, mas também através de um conjunto de ideias cujos objetivos seriam dar sustento ao Capital, afirmando que:

“A ideologia é um processo que, com efeito, é completado com consciência pelo chamado pensador, mas como uma consciência falsa. As forças impulsionadoras propriamente ditas que o movem permanecem-lhe desconhecidas; se não, não seria, precisamente, processo ideológico nenhum.” (MARX e ENGELS, p. 556)

A filósofa Marilena Chauí separou a ciência da ideologia enquanto falsa consciência. Defendeu que se de um lado a ideologia refletia uma falsa realidade, as ciências, por outro lado, buscariam encontrar uma verdade absoluta e inquestionável. Assim. Afirmou:

“É nuclear, na ideologia, que ela possa representar o real e a prática social através de uma lógica coerente. A coerência é obtida graças a dois mecanismos: a lacuna e a “eternidade”. Isto é, por um lado, a lógica ideológica é lacunar, ou seja, nela os encadeamentos se realizam não a despeito das lacunas ou dos silêncios, mas graças a eles; por outro lado, sua coerência depende de sua capacidade de ocultar sua própria gênese, ou seja, deve aparecer como verdade já feita e já dada desde todo o sempre, como um “fato natural” ou como algo “eterno”. Esses dois mecanismos permitem que cheguemos a duas conclusões de grande envergadura no que concerne à crítica das ideologias. Como a lógica da lacuna e do silêncio, a ideologia não se opõe a um discurso pleno que viria “preencher os brancos” e tornar explícito tudo quanto ficara implícito. Em geral, é pela oposição entre o lacunar e o pleno que se costuma distinguir ideologia e ciência.” (CHAUÍ, p. 247)

O filósofo húngaro György Lukacs apresentou outra perspectiva sobre este debate. Entendendo que a “matematização” e o uso da lógica tiveram grande importância para o desenvolvimento do conhecimento, mas que a análise dos resultados passa pelo crivo de um filtro ideológico e que, portanto, também se encontra no campo da ideologia. Desta forma, Lukacs apontava que a burguesia faz uso das ciências para alcançar sua ordem social, mas sem abrir mão da necessidade de dar suporte ideológico às contradições provocadas pelo Capital, limitando assim a “neutralidade” científica. Assim, afirmou:

“A dupla necessidade no desenvolvimento da burguesia, a saber, valorizar e utilizar ilimitadamente todas as descobertas da ciência na economia, na vida social, etc., por um lado, e, por outro, manter historicamente ativa nas massas uma necessidade religiosa, por mais esmaecida que seja, cria o campo de força humano-social do qual se desenvolve aquela missão social por nós descrita e que deveremos investigar com mais profundidade.” (LUKACS, p. 53)

Mészáros apresenta para nós a melhor conceituação de ideologia, definindo-a como uma forma de consciência social enraizada nas condições materiais de produção, reprodução e apropriação. Portanto:

“Na verdade, a ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal-orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada. Como tal, não pode ser superada nas sociedades de classe. Sua persistência se deve ao fato de ela ser constituída objetivamente (e constantemente reconstituída) como consciência prática inevitável das sociedades de classe, relacionada com a articulação de conjuntos de valores e estratégias rivais que tentam controlar o metabolismo social em todos os seus principais aspectos. Os interesses sociais que se desenvolvem ao longo da história e se entrelaçam conflituosamente manifestam-se, no plano da consciência social, na grande diversidade de discursos ideológicos relativamente autônomos (mas, é claro, de modo alguns independentes), que exercem forte influência sobre os processos materiais mais tangíveis do metabolismo social.” (MÉSZÁROS, p. 65)

Neste sentido, ideologia não pode ser entendida como falsa consciência, mas sim como uma forma de consciência social que se estabelece a partir das relações de produção. Dessa forma, a crise ideológica se aprofunda com o avançar da crise estrutural do Capital. Com isso, as disputas ideológicas passam a ocorrer em uma perspectiva de luta por hegemonia. Segundo Gramsci,

“A consciência de fazer parte de uma determinada força hegemônica (isto é, a consciência política) é a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria e prática finalmente se unificam.” (GRAMSCI, p. 103)

Assim, a articulação do conceito de ideologia de Mészáros com a perspectiva de Gramsci sobre hegemonia, podemos entender a consolidação do MESP com o avanço da crise estrutural do Capital.

Liberalismo, crise e democracia

Segundo o filósofo italiano Domenico Losurdo, Liberalismo e conservadorismo nasceram ligados. Busca na história de seus primeiros teóricos não só a presença da escravidão, mas sua defesa, apontando que muitos dos teóricos do Liberalismo eram donos de escravos ou defensores do direito à escravidão. Afirma que a escravidão foi fundamental para o desenvolvimento do Liberalismo e assim, conclui:

“A escravidão não é algo que permaneça não obstante o sucesso das três revoluções liberais; ao contrário, ela conhece seu máximo desenvolvimento em virtude desse sucesso.” (LOSURDO, p. 47)

Mas para além das relações entre os primeiros liberais com a escravidão, os apologistas do Capital, como Mises, aceitavam a possibilidade de usar o fascismo como solução emergencial contra as ameaças ao sistema de “Cooperação Social” (em “Ação Humana”, Mises usa a concepção de ´cooperação social´ para se contrapor ao conceito marxista de ´luta de classes´):

“Não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando ao estabelecimento de ditaduras, estejam cheios das melhores intenções e que sua intervenção, até o momento, salvou a civilização europeia. O mérito que, por isso, o fascismo obteve para si estará inscrito na história. Porém, embora sua política tenha propiciando salvação momentânea, não é do tipo que possa prometer sucesso continuado. O fascismo constitui um expediente de emergência. Encara-lo como algo mais seria um erro fatal.” (MISES, p. 77)

Portanto, em um período de aprofundamento da crise do capital, a burguesia pode abrir mão de seu perfil democrático e criminalizar aqueles que coloquem em risco sua idealizada cooperação social.

O Brasil na crise estrutural e ideológica do capital

Para entendermos o surgimento e o desenvolvimento do MESP dentro destas bases teóricas, podemos retomar o contexto do país na época de sua fundação. Em 2004, o Brasil vivia o auge do Lulismo, que encabeçava um governo de coalizão, buscando atender demandas sociais ao mesmo tempo que encaminhava políticas para atender aos interesses do grande Capital.

Formado por um bloco envolvendo partidos de esquerda, de centro e de direita, como PT(Partido dos Trabalhadores), PCdoB(Partido Comunista do Brasil), PCB(Partido Comunista Brasileiro), PL(Partido Liberal) e PMN(Partido da Mobilização Nacional), a coalizão em torno de Lula chegou ao poder com a maior votação já registrada, ultrapassando 60 milhões de votos.

A vitória de Lula em 2002 significou um marco para a extrema-direita nacional, encolhida desde o processo de redemocratização da década de 1980. O surgimento do Movimento Escola Sem partido representou um polo de atração para sua reorganização, mas ainda não conseguia dialogar com seus setores mais moderados, que defendiam uma educação tecnicista, mas sem incorporar pautas conservadoras.

Comprometida com as diretrizes estabelecidas pela ONU de promoção do respeito à diversidade cultural, aos Direitos Humanos, à proteção dos povos indígenas e quilombolas, de luta contra as opressões de gênero, sexualidade e raça a direita liberal brasileira não se associava ao MESP, que permaneceu marginalizado até ser articulado pela Frente Parlamentar Evangélica no contexto de aprofundamento da crise estrutural do Capital.

Gênese do movimento

O surgimento do MESP ocorreu quando o advogado Miguel Nagib se opôs ao professor de História da escola de sua filha, em uma oitava série, do colégio Sigma, em Brasília, que realizou analogias entre São Francisco de Assis e Che Guevara. Inconformado, escreveu uma carta aberta para alertar outros pais e após reunião fracassada com a direção da escola, que defendeu seu professor, iniciou a proposta na internet em 2004, juntando poucas pessoas e praticamente sem contar com apoio significativo na sociedade.

Com o aprofundamento da crise do Capital, a polarização política se intensificou e dicotomia cada vez mais agressiva entre os campos ideológicos passou a balizar as disputas políticas em todo o planeta, atingindo com maior intensidade as periferias do Capital.

Neste contexto, o MESP passou a ganhar corpo e cada vez mais, novos interlocutores partiram em sua defesa. Novos apologistas da proposta surgiram e passaram a delinear a defesa teórica do Movimento. Atacando pautas como luta contra o racismo, machismo, homofobia, Direitos Humanos e avançar ideologicamente contra a defesa dos povos indígenas e quilombolas, o MESP incidiu ao mesmo tempo sobre as concepções religiosas da Frente Parlamentar Evangélica e sobre os interesses e necessidades do Capital para avançar a exploração de reservas protegidas por lei e garantir um modelo de educação pautado pelo moralismo conservador e voltado ao reconhecimento do Capital enquanto reflexo da natureza humana.

Portanto, a proposta apresentada pelo MESP passou a reunificar bandeiras conservadoras e liberais, que nasceram amarradas e que se encontravam distanciadas pelo perfil democrático em que o Capital se apoiava até a explosão e aprofundamento de sua crise estrutural.

Doutrinação ideológica”

O MESP parte de uma visão da educação enquanto transmissão de conhecimentos do professor para o estudante, justificando assim a proibição de debates que possam contradizer qualquer um dos diversos valores ideológicos presentes no amplo universo de uma sala de aula, buscando restringi-lo ao espaço da família, na esfera do campo privado.  No cartaz que deverá ser fixado nas salas de aula caso a proposta do MESP seja aprovada em âmbito nacional com os deveres do professor, apresentados no começo desta pesquisa, encontramos:

“1. O professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferencias ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias.
2. O professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.”

Assim, o MESP demonstra conceber educação como a transmissão de conhecimentos e ideologias do professor detentor do saber para o estudante, desprovido de saberes e suscetível à doutrinação ideológica, justificando assim a defesa de uma educação moral e ideológica como prerrogativa exclusiva da família.

MESP e Estado mínimo

O MESP vai contramão de todas as tendências, estudos e pesquisas acerca da localização das causas e construção de soluções para reverter o quadro de fracasso da educação pública. Por sua concepção de ideologia enquanto falsa consciência em oposição a um capitalismo naturalizado e eternizado em sintonia com a natureza humana, passou a defender que a culpa do fracasso da educação brasileira estaria em sua base ideológica, orientada pela esquerda no sentido da apologia da luta de classes.

Como o processo de sucateamento das escolas, com constantes cortes de verbas, salários defasados e políticas educacionais voltadas para a busca do atendimento de índices foram impostos pelo próprio Capital (como o FMI e o Banco Mundial), o MESP aponta para o uso político-ideológico realizado pelos professores nas salas de aula como responsável pelos problemas que a educação enfrenta.

A pedagoga Áurea Costa afirma que a visão tecnicista da educação, aplicada com as políticas de estado mínimo, promoveu uma perda de autonomia aos professores, que passam a ter que trabalhar cada vez mais para a manutenção da ordem capitalista apontando que:

“Assim, o processo de alienação do trabalho do professor, em que se constrói uma relação estranhada entre ele e os conhecimentos, só pode se efetivar pela formação esvaziada e pela destituição da prerrogativa do professor de seleção e organização dos conteúdos e da avaliação do rendimento escolar dos alunos, retirando o controle sobre seu trabalho, ao lhe retirarem a autonomia.” (COSTA, p. 72)

Portanto, por mais que o MESP contabilize a crise da educação ao debate ideológico em sala de aula, o atendimento as políticas liberais na educação provocaram a gradativa perda de autonomia do professor, cada vez mais obrigado a atender determinações impostas pelo mercado em busca de índices e metas, processo em contradição com o suposto avanço de uma “doutrinação ideológica”.

Ensino técnico e ideologia

Até mesmo os debates atuais de pesquisa em pedagogia que debatem as relações entre ensino técnico e política, tornam evidentes que mesmo uma educação com caráter técnico continua ideológico  e que deveria ser balizado pela ética. Segundo a filósofa Terezinha Azerêdo Rios:

“Não poderíamos superar a dicotomia técnica x política se apenas articulássemos a ética à política e mantivéssemos a técnica como um campo autônomo, que de fora recebe as benesses, os benefícios de uma política fertilizada pela ética. É preciso garantir a ideia de que a dimensão técnica também carrega ética. O que temos é competência técnico-ético-política.” (RIOS, p. 74)

Desta forma, mesmo uma concepção de educação voltada ao trabalho continua no campo político e portanto, ideológico, tornando-se impossível alcançar uma educação a-ideológica.

 MESP versus Paulo Freire

A pedagogia de Paulo Freire, por se apresentar sensível às injustiças sociais, políticas, econômicas e culturais, se posiciona de como apologista da ideológica marxista, na perspectiva do MESP. Acusando Freire de realizar uma apologia à luta de classes com o objetivo de destruir o capitalismo e implantar o Socialismo Marxista através das estratégias e das teorias do filósofo italiano Antônio Gramsci, o MESP iniciou uma campanha intensa contra sua pedagogia. Segundo Olavo de Carvalho, apologista do MESP e destacado como filósofo (Apesar de o MESP acusar Paulo Freire de rejeitar a ciência para focar na ideologia visando o socialismo, como aqui, Olavo de Carvalho é apresentado como filósofo sem que este possua o título acadêmico em Filosofia) no site do movimento (O MESP trava uma batalha judicial contra o Sistema COC por conta de uma denúncia de doutrinação ideológica nos livros didáticos da instituição. Olavo de Caravalho comenta o caso no Youtube, com link no site do MESP):

“A partir dos anos 1980, a elite esquerdista tomou posse da educação pública, aí introduzindo o sistema de alfabetização ‘socioconstrutivista’, concebido por pedagogos esquerdistas como Emília Ferrero, Lev Vigostky e Paulo Freire para implantar na mente infantil as estruturas cognitivas aptas a preparar o desenvolvimento mais ou menos espontâneo de uma cosmovisão socialista, praticamente sem necessidade de ‘doutrinação’ explícita’” (CARVALHO, p. 363)

Frente Parlamentar Evangélica e Escola Sem Partido

A FPA (Para facilitar a leitura da pesquisa, a partir de agora, usaremos a sigla FPA para nos referir a Frente Parlamentar Evangélica) surgiu durante o processo de redemocratização do Brasil, em meados dos anos 1980. Josué Sylvestre, jornalista e assessor parlamentar, escreveu em 1986, à pedidos da Convenção Nacional da Assembleias de Deus, o livro “Irmão vota em Irmão”, buscando articular os evangélicos em torno de um projeto político. Nesta obra, escreveu:

“Não fiquem, apenas na oração. Os anjos não virão votar nos candidatos evangélicos. Deus está pronto para abençoar o país, mas é preciso colocar no poder homens que leiam e obedeçam a Palavra e estejam dispostos a escutar e seguir Sua voz.”, (SYLVESTRE, p. 86)

Ao pretender organizar os evangélicos em torno de um projeto político, Sylvestre desenvolveu um conjunto de pautas que relacionavam a defesa de uma economia liberal com um moralismo conservador.

Posteriormente, Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus (a Igreja Universal do Reino de Deus possuía 17 dos 75 deputados federais ligados à FPA em 2016) defendeu a existência de um plano divino de Estado, idealizado por Deus e a ser aplicado por seus devotos. Segundo Macedo:

“O projeto de nação pretendido por Deus depende do que estamos enfatizando em nossa argumentação: que os cristãos precisam despertar para a realidade do projeto, envolver-se, engajar-se para a realização desse sonho divinal.” (MACEDO, p. 116)

A FPA está distribuída entre partidos de direita como o DEM(Democratas), que surgiu após o fim do PFL(Partido da Frente Liberal), desenvolvido a partir do ARENA(partido da situação durante o regime militar), PRB(Partido Republicano Brasileiro), depois registrado como PMR(Partido Municipalista Renovador), criado Pela Igreja Universal do Reino de Deus, liderada pelo Bispo Edir Macedo. A FPA encampou a luta pelos anteprojetos alavancados pelo MESP e é responsável pela protocolização de todos os mais de 60 PL`s que se encontram em tramitação pelas câmaras do país.

A FPA defende o programa do MESP por entender que a proibição de debates relacionados a questões como gênero, desigualdades sociais e econômicas, diversidade religiosa, Direitos Humanos e outras pautas em sala de aula, vão de encontro com as perspectivas ideológicas das igrejas evangélicas envolvidas, que buscam atribuir a educação moral à esfera privada.

Jacqueline Moraes Teixeira, ao analisar a posição de Edir Macedo sobre o aborto, defende que mais do que poder e dinheiro, a FPA busca a construção de um mundo de acordo com sua interpretação da bíblia e assim estabelece uma série de rituais para alcançar um tipo ideal de comportamento e conduta ideológica em busca da prosperidade:

“Assim, a visão de Edir Macedo se relaciona diretamente a um conjunto de disposições necessárias para se alcançar a vida em abundância. Tais disposições fomentam a produção de dispositivos que incutem no cotidiano formas de gerenciamento da vida. O aborto seria, portanto, um instrumento a ser usado (caso seja necessário) no gerenciamento da prosperidade da família.” (TEIXEIRA, p. 93)

Portanto, a FPA defende as linhas gerais do MESP por entender que a educação moral e ideológica deveria ser exclusiva do espaço privado, reservando para a escola apenas uma educação  para o mercado.

O Crescimento do MESP e da FPA na crise estrutural do Capital

Com o aprofundamento da crise estrutural do Capital no Brasil pós 2010, a necessidade de internalizar a expansão do Capital através do aumento da exploração do trabalho provocou uma ampliação da polarização política e ideológica. Nessa conjuntura, o MESP saltou da condição de um pequeno movimento virtual para ganhar corpo e adesão popular, tornando-se realidade com a aprovação de inúmeros projetos de lei pelo país após a decisão favorável obtida em Alagoas em 2016.

Portanto, a defesa de um modelo de educação que seja voltado exclusivamente para preparar os indivíduos a assimilar as determinações do mercado e pautada pelo moralismo conservador, é comum tanto aos teóricos do liberalismo quantos aos membros da FPA.

Outro teórico constantemente citado pelos apologistas do Capital, o alemão Friedrich Hayek (da mesma forma que Mises, Hayek é citado 6 vezes no site do MESP, sempre em contraponto aos discursos ideológicos marxistas), discípulo de Mises e também apologista da naturalização e eternização do Capitalismo, entende a propriedade privada dos meios de produção como fator racionalizador da humanidade. Defendia que as ideologias antiliberais eram resultado de uma mentalidade primitiva, uma espécie de irracionalismo, um retorno à pré-história. Neste sentido, deveriam ser combatidas com o uso da razão para que seja possível preservar a natureza humana e a civilização. Segundo Hayek:

“Talvez a principal força oculta sob a persistente aversão às transações comerciais não passe, pois, de simples ignorância e dificuldade conceitual. Isto se une, porém, ao preexistente medo do desconhecido: um medo da bruxaria e do antinatural, e também do próprio conhecimento, que remonta às nossas origens e está registrado, de forma indelével, nos primeiros capítulos do livro do Gênesis, na história da expulsão do homem do Jardim do Éden. Todas as superstições, inclusive o socialismo, se alimentam desse medo.” (HAYEK, p. 130)

Mises e Hayek são citados pelos interlocutores do MESP por viabilizar a aplicação de um projeto de educação que encampe uma proposta economicamente liberal e moralmente conservadora, entendida como fruto da natureza humana e única alternativa para a sobrevivência da espécie.

Assim, compreender a relação do aprofundamento da crise do Capital com o crescimento dessa proposta acaba por nos permitir compreender quais são os valores ideológicos por trás de sua alegada neutralidade, assim como encontrar o ‘Partido’ que impulsiona o MESP nas câmaras do país.

Doutrinação de direita

Miguel Nagib afirma que a doutrinação nas escolas acontece apenas pela esquerda, organizada entre teóricos, sindicatos, militantes e governos, formando uma máquina cujo objetivo é a construção de um mundo socialista. Acredita que não existe nenhum tipo de doutrinação de direita, a não ser em casos isolados:

Existem professores de direita que usam a sala de aula para fazer a cabeça dos alunos. Mas são franco-atiradores, trabalham por conta própria. No Brasil, quem promove a doutrinação político-ideológica em sala de aula, de forma sistemática e organizada, com apoio teórico (Gramsci, Althusser, Freire, Saviani, etc.), político (governos e partidos de esquerda, PT à frente), burocrático (MEC e secretarias de educação), editorial (indústria do livro didático) e sindical é a esquerda.”

De qualquer forma, Nagib não aponta como seria uma doutrinação de direita, quais seriam suas narrativas doutrinadoras, não explica como deveríamos combater tais “franco-atiradores” e não abre espaços para denúncia deste tipo de doutrinação ideológica.

Inclusive, com a perspectiva de naturalização e eternização do Capital, educadores que venham a propagar que o livre-mercado é parte da natureza humana, que a meritocracia é a base da justiça social e propulsora do progresso, não seriam acusados de doutrinação, afinal não seriam ideológicos, frutos de uma falsa consciência, mas sim reflexo da própria natureza da espécie humana.

O MESP e a direita

Desta forma, Nagib afirma que o MESP não possui ‘Partido’ mas acabar por defender uma educação também ideológica, moralmente conservadora e economicamente liberal em suas concepções (em seu site o MESP se posiciona como defensor do moralismo conservador). Com citações de Max Weber pelo site, o MESP acredita não ser ideológico, pois se insere em uma perspectiva de naturalização e eternização do Capital. 

Podemos concluir que o MESP não está livre de amarras ideológicas, buscando apenas se justificar como defensor de uma natureza humana que não consegue ir além de uma visão ideológica excludente. Desta forma encerro estas reflexões respondendo ao desafio proposto por Nagib :

Por fim, eu desafio qualquer um a provar que o PL Escola sem Partido faça acepção de correntes políticas ou ideológicas e que não seja, portanto, 100% sem partido.”

Ao mirar o MESP contra a esquerda, Nagib automaticamente coloca-se junto com o MESP campo da direita, pois para criticar a esquerda, é preciso estar à sua direita. Não é possível atacar uma posição sem estar em seu lado oposto. Se o MESP entende que os males da educação são frutos das ideias ideológicas da esquerda, imediatamente se inscreve no campo da direita.

Fontes

Sites

http://www.escolasempartido.org/

https://www.programaescolasempartido.org/

https://nacoesunidas.org/agencia/unesco/

Obras

CARVALHO, Olavo de. O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. Rio de Janeiro. Record, 2013.

HAYEK, Friedrich. Os erros fatais do Socialismo. Barueri. Faro Editorial, 2017.

MACEDO, Edir. Plano de poder. Rio de Janeiro. Thomas Nelson Brasil, 2008.

MISES, Ludwig Von. Ação Humana. São Paulo. Instituto Mises, 2010.

————————-. Liberalismo. São Paulo. Instituto Mises, 2010.

————————-. Teoria e História. São Paulo. Instituto Mises, 2014.

SYLVESTRE, Josué. Irmão vota em irmão. Brasília. Pergaminho, 1986.

Bibliografia

CHAUí, Marilena. Ideologia e educação. São Paulo. Educ.pesqui, 2016.

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Escrito por Expresso Periférico

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