Modesta pretensão e precauções. Por Eurico Pereira de Souza

Modesta pretensão e precauções

Há uma pretensão neste texto que se inscreve somente em modesta tentativa de apresentar uma memória da comunidade do Jardim Miriam.  Como tentativa, suponho que a narrativa tem base nos fatos que aconteceram sendo que sua apresentação proveniente de um olhar pessoal, não pretende elencar verdades objetivas, algo que seria mais facilitado com uma elaboração coletiva, entretanto, certamente, mais demorada. Certos fatos a memória pessoal está bem segura do relato. Outros, certamente, traz algo aproximado pois o transcorrer do tempo bagunça  a percepção e as lembranças em si mesmas. Mas há aqui o esforço de compromisso de trazer uma mensagem relevante sobre a história da comunidade e de seus agentes. O motivo de apresentar um texto  na linha de rememoração da comunidade do Jardim Miriam, como um espaço territorial, onde milhares de pessoas habitam e constroem  suas histórias familiares e sociais,  é que tal comunidade está fazendo aniversário e, diante disto, a partir de exigências de companheiras e companheiros da região, foi solicitada trazer à baila uma memória do território.

Antes de iniciar tal monta, algumas precauções são necessárias. Ao retomar a história do Jardim Miriam aqui, a pretensão é de busca da memória de como esta comunidade, por meio da luta social a partir do anos 70, se constituiu e  possibilitou a construção de um espaço público com serviços de atendimento à população, serviços obtidos por meio da luta social e política, através dos múltiplos movimentos sociais que, em confronto com a  administração pública, fez direitos dos cidadãos da comunidade se realizarem na vida concreta.

Outra precaução. Falar da história do Jardim Miriam no contexto acima já delimitado,  pressupõe falar da história de pessoas que, como militantes da região assumiram o papel de lideranças inspiradoras para que os direitos sociais na comunidade fossem alcançados. Da mesma maneira  que quando conhecemos qualquer organização, seja ela privada ou pública, a organização em si é um vazio se não considerarmos  as pessoas e suas ações, a  história do Jardim Miriam é a historia de lutas de pessoas, isto é, militantes dos movimentos populares,  militantes sindicalistas    (que aqui habitavam e habitam) que se confundem com a própria história de desenvolvimento do território. Devido ao espaço de elaboração dessa memória, evitaremos citar todos os militantes que nestes quase 50 anos de lutas foram atuantes neste processo. Deduz-se que tal tarefa seria impossível, ou seja, listar todos. Porém, a precaução maior é de evitar o esquecimento deste ou daquele. O caminho talvez mais adequado, ao referir a certos militantes, é considerar prioritariamente aqueles que “ já foram para o andar de cima” e alguns ainda presentes entre nós quando uma informação precisa em que ele esteve envolvido seja relevante para compreender a história dessa comunidade.

Uma última precaução. Falar de elementos, fatos, e ações que constituíram a história do Jardim Miriam, exige uma percepção alargada da ideia de território. “Jardim Miriam“ aqui não se trata de um espaço localizado e delimitado por ruas, avenidas e, por exemplo, pela  sua popular feira de domingo. Não!  Desde os anos 70 e até mais recentemente, “Jardim Miriam” era  identificado pela memória de centenas de militantes que em suas comunidades – propriamente no Jardim Miriam, Cidade Júlia,  Jardim Luso, Vila Clara, Santo Afonso, Cidade Ademar, Vila Campestre, Parque do Nabuco, Vila Mira e até às raias da Vila Santa Catarina,  – atuavam identificando-se como militantes da Zona Sul, do Jardim Miriam. Esta identificação, muito usada no passado para informar qualquer liderança da esquerda que não fosse dessa região, aparecia como verbalização contextualizante de pertencimento a uma grande comunidade, e na pretensão desse texto, tal identificação facilitará a memória das muitas lutas, vitórias e derrotas que aconteceram nesta grande região. Esta observação se faz necessária para descartar qualquer interpretação bairrista de suposta ideia de que nesta região alargada a comunidade  X foi mais importante do que a Y. O território alargado  em questão faz parte de um mesmo todo onde trabalhadores da periferia vivem e sofrem as condições injustas de um país que viveu a experiência da escravidão e foi moldado numa forma de capitalismo tardio cujos produtos é a profunda desigualdade social legitimada por instituições de justiça que, nesta função,  conformam continuamente novas manifestações de injustiças sociais onde direitos até básicos ( já adquiridos em outros centros capitalistas)  aqui são negados. O grande ganho das últimas duas décadas nesta região talvez seja  a  dimensão mais rica de identificação das várias comunidades que lutam por direitos e resistem às demandas neoliberais explicitando uma pluralidades de espaços, locais de reuniões, grandes articulações como Comitê de Luta da Região Cidade Ademar, Jardim Miriam, Pedreira, Vila Missionária, sinalizando assim que aquela história de resistência iniciada na segunda metade dos anos 70 ainda continua, porém, mais rica em diversidade de ideais, de demandas de cidadania e de pluralidade nas formas de participação. Explicitadas as devidas precauções, vamos à memória.

Uma instituição cultural-política  de jovens

Nos fins do anos 70, a Paróquia Nossa Senhora Aparecida, próximo a Praça do Jardim Miriam, se constituía um polo de confluência de pessoas com diferentes interesses cuja ideia comum era o incômodo com a situação social da região, em particular, o modo de vida precário dos diferentes estratos da população, além da insatisfação com as perspectivas do país submetido ao regime ditatorial de plantão.

A juventude, neste exato período, reafirmo o fim dos ano 70,  participante da paróquia, já demonstrava anseios de uma atuação social mais contundente na área política e cultural que inclusive pudesse transcender os muros da referida paróquia. É neste sentido que um grupo de jovens (de dentro da paróquia e outros fora dela) fundam um espaço como pessoa jurídica para uma atuação mais autônoma. Esses queridos jovens, que hoje muitos estão com suas seis ou sete décadas de idade, criam algo  chamado Associação Cultural Fé Cega Faca Amolada com pretensão de desenvolver o trabalho social, político e cultural de resistência. Se hoje ouvimos falar de ONGs, certamente na região esta séria aventura dos jovens foi um sinalizador de desejos de mudanças.

Movimento de Mães em Luta por Creches

Paralelo a tal fato, há que se lembrar uma angústia (entre tantas outras)  que acompanhava o Frei  José Resende, titular da paróquia em questão. Com um profundo conhecimento da situação de miséria em volta da comunidade, este frade, –  inspirado pelos ventos de mudança da Igreja Católica da América Latina que, ao longo do anos 60, por meio das Conferências de Medelin e Puebla,  redefinia seus compromissos com os mais pobres através da interpretação do Evangelho pelo espírito do que veio a ser chamado de Teologia da Libertação – observava o conjunto de favelas que rodeava a paróquia.  Na época,  com barracos erguidos com restos de madeira, telhados das mais diferentes formas, inclusive com folhas de zinco, ausência de água, luz, e córregos não canalizados, a situação de moradia não era precária, era precaríssima.  Sinalizava-se, portanto, as condições materiais precárias da comunidade que, diante da conjuntura política autoritária, se apresentava como potencial de articulação, resistência e luta por direitos. Há que se lembrar como sendo o eixo geográfico a paróquia, tais favelas  se localizavam: na parte de trás,  a Favela Sebastião Afonso; à frente da paróquia, mais para o lado esquerdo, a Favela Ângelo Cristianini; e à frente, mas mais à direita, a Favela Braz de Abreu.

Configurado este ambiente, podemos situar que oriundo dele e, obviamente com atuação de muitos outros agentes, dois movimentos populares de luta emergem naquele período. Primeiramente, do Clube de Mães  que vai se organizar na referida paróquia, emergem as condições para o Movimento de Mães de Lutas por Creche na região; e paralelamente, o que veio a constituir posteriormente o MDF, Movimento de Defesa dos Favelados.

Entre o fim dos anos 70 e início dos 80, Clube de Mães foi um tipo de organização presente em várias cidades do país que,  estimulados pelo padres e, geralmente, situados em espaços das comunidade católicas,  criavam uma rede de solidariedade entre as mães da periferia. Há que se lembrar que, neste mesmo período, economicamente o Brasil vive uma profunda recessão (neste espírito, anos 80 foi chamado de a década perdida). A fome,  nos grandes centros urbanos, sem esquecer ao que já ocorria no resto do país,  era verbalizada publicamente pelo, por exemplo, Movimento contra o Custo de Vida.  Nos Clubes de Mães, as mães das comunidades faveladas e mães do restante do bairro se ajudavam, trocavam conhecimentos para obtenção de habilidades que pudessem gerar alguma renda (tricô, costura, etc). Criavam um ambiente de formação solidária, inclusive com palestras de médicos com orientações básicas para a saúde da mulher. É  esse ambiente de trocas sobre as dificuldades das famílias das periferias que as mães percebiam seus problemas comuns, em particular, a ausência de espaços de atendimento dos filhos para elas poderem trabalhar. No Jardim Miriam, tal conjuntura foi o estopim para o Movimento de Mães de Luta por Creches. Não surpreende que Dona Palmira, Dona Anita, Dona Cecilia e também nessa condição, Dona Luzia (que já partiram para o andar de cima) mais próxima de Americanópolis, e muitas outras mães que se tornaram lideranças, moravam próximo às favelas ou nas favelas e atuavam no Clube de Mães. Assim, o resultado será muita articulação, abaixo-assinados, reuniões na Prefeitura  e creches irão sendo paulatinamente inauguradas no território  entre os anos 80/90.

Movimento de Defesa dos Favelados

Os Movimentos dos Favelados – expressão que usávamos na época – será articulado de maneira semelhante. Reunindo na paróquia do Jardim Miriam, moradores das favelas discutiam seus problemas. Inicialmente, nos princípios de 1980, em claro apoio do Frei Resende que articulou um grupo pequeno de jovens militantes para ajudar estas comunidades a fazerem abaixo- assinados, localizar as instituições públicas para apresentar as demandas; ajudar a organizar manifestações na sede da Prefeitura, na época, no Largo do Ibirapuera. Assim, o Movimento dos Favelados foi dando seus primeiros passos. 

Estas experiências que irão constituindo a identidade de luta no território, propiciarão os encontros de pessoas e pelos valores inerentes à luta política e à conjuntura da época,   tais como solidariedade, luta contra as desigualdades, contra as injustiças,  denúncias de abusos por parte do poder público. Nesses encontros, as pessoas aprendem umas com as outras e, assim, a  comunidade foi ao longo do tempo constituindo uma rede de militantes na luta por  direitos. Um exemplo desse processo resulta dos dois movimentos acima assinalados. Eles propiciaram que começassem a deslocar para a região assistentes sociais da Prefeitura para ouvir e tentar encaminhar as demandas da população. O resultado, ao longo do anos, é que parte desses profissionais (claramente de classe média) em contato com os movimentos populares da região, foram também se constituindo como militantes de esquerda. Aqui verifica-se o exemplo claro de como a luta política, a participação política e as condições materiais da vida social criam a base de formação da consciência política. Há que se rememorar que este grupo de assistentes sociais atuantes na região, provenientes da Administração Regional da Vila Mariana (o que seria a Subprefeitura na época), era acompanhado por uma assistente social chamada Luiza Erundina. 

Esse movimento de favelas já em 1981 e 1982 irá crescer e, aos poucos, as demandas por direitos básicos, como acesso à água e à luz, irão sendo atendidas. Paralelo a isso, neste período foi fundado o MDF – Movimento de Defesa dos Favelados – que reunirá todos os sábados à tarde, no salão da paróquia do Jardim Miriam,  centenas de lideranças de toda região alargada, representantes inclusive de comunidades da Vila Santa Catarina, Vila Campestre, Jardim Luso e  Favela Buraco Quente,  próximo ao Aeroporto de Congonhas. Em muitas dessas reuniões, Luiza Erundina, assistentes sociais e militantes da região terão uma participação fecunda. Toda a lembrança dessa efervescência política  e disposição para a luta faz recorrer a um belo trecho de um texto do escritor russo, Máximo Gorki:

“Quando se falava do povo, eu me sentia surpreendido e desconfiado de mim próprio,  que não podia pensar a esse respeito como toda aquela gente. Para eles, o povo era a encarnação da sabedoria, da beleza espiritual, da bondade do coração, um ser quase divino e único, depositário de tudo que era belo, justo e grande. Ignorava esse povo. Via carpinteiros, estivadores, pedreiros, conhecia Jacob, José, Gregório, porém eles falavam do povo como de uma entidade, colocavam-se como que abaixo dele, na dependência de sua vontade. (…) Porquanto era  justamente esse amor da humanidade que eu não encontrava nos homúnculos entre os quais vivera até então, ao passo que esse amor, aqui, vibrava em cada palavra, ardia em cada olhar. (…)  Senti que só amando os homens com toda a nossa alma, com toda a nossa paixão, poderíamos haurir nesse amor a força necessária para descobrir e compreender o sentido da vida.” (GORKI, Máximo. As Minhas Universidades. Tradução Paulo Rodrigues. São Paulo: Ediouro, S/d, p. 35).

Um momento particular da luta de moradores de favela por obtenção de direitos ocorrerá em 1981. Chegou uma notícia na paróquia do Jardim Miriam que moradores da favela na Avenida Fúlfaro (região de divisa entre Jardim Miriam, Vila Clara e Americanópolís) estavam prestes a serem despejados. O Frei Rezende e alguns militantes foram imediatamente para o local. Encontramos uma comunidade  desagregada, mas, devido aos contatos de um morador, havia um advogado que fazia gestão em defesa da mesma. Conhecemos o advogado, uma pessoa bem intencionada, distante dos movimentos populares e movimentos de esquerda. Conversamos com ele  e Rezende sugeriu um apoio de outro advogado, o José Mentor. A paróquia do Jardim Miriam começou neste caso a servir de local no qual os moradores dessa favela, em  reuniões, afinavam os seus discursos, suas convergências, resolviam suas divergências, ou seja,  construíam sua unidade política. Houve um momento dessa luta que a decisão de despejo seria analisada por um juiz do Tribunal de Alçada, localizado no Pátio do Colégio, centro de São Paulo. Os moradores, neste momento mais organizados, juntos com militantes e o Rezende, rumaram no dia dessa sentença com mães, crianças, pais para ficar na porta do tribunal durante todo o tempo até a sentença ser expedida. A agitação comoveu muitos transeuntes do lugar e funcionários do referido tribunal. Ao fim do dia, o juiz em questão adiou a decisão. Este processo durou uns três anos. Descobriu-se posteriormente que o proprietário que entrou com pedido de reintegração de posse era detentor somente de metade do terreno da favela. Com articulação junto à Prefeitura, os moradores conseguiram uma outra área na zona leste de São Paulo e, com apoio de transporte, metade das famílias pode se transferir em condições mais dignas. A outra metade continua até hoje na Av. Fúlfaro. 

Lideranças da oposição sindical na região

Nesta mesma época, também  outro aspecto da realidade econômica e política da região conformará as condições para que outras organizações possam emergir no território. Rodeada pelas cidades vizinhas de Diadema, São Bernardo do Campo e Santo André, com os seus parques indústrias e, pelo outro lado,  as indústrias da região de Santo Amaro, na Marginal Pinheiros e no prosseguimento da Avenida das Nações Unidas, associadas à conjuntura do confronto da luta dos trabalhadores e de renovação do movimento sindical, no território muitos militantes são também trabalhadores dessas indústrias. Isso criava na região uma realidade estimulante: operários que moravam no Jardim Miriam e região e que participavam da luta sindical também estavam envolvidos com os movimentos populares e isso possibilitava que a militância dos bairros acompanhasse as questões relativas das pautas sindicais. Na região havia metalúrgicos, bancários, trabalhadores das indústrias de artefatos plásticos e químicos e, mais tarde, metroviários.  Do ponto de vista das organizações, havia militantes vinculados à Oposição Metalúrgica de São Paulo, militantes dos  Sindicatos dos Plásticos e militantes vinculados à Pastoral Operária.  

A Pastoral Operária era um programa de ação da Igreja Católica, no âmbito dos valores cristãos preconizados pela  Teologia da Libertação, valores de compromisso com os mais pobres,  que buscava incentivar os fiéis a se organizarem por meio das ações sindicais na luta por conquistas de direitos no mundo do trabalho.  E assim, na região,  os militantes sindicais participavam desses grupos. Um momento da luta e profunda indignação neste período, de intensa repercussão  no movimento sindical em diferentes cidades do país foi em 1979 a greve de trabalhadores em diferentes empresas da região de Santo Amaro. Em confronto com forças policiais, trabalhadores da fábrica Silvania experimentaram a dor do martírio: o líder sindical, militante da Pastoral Operária  Santo Dias da Silva é assassinado. É 30 de outubro de 1979. Na  região, muitas ações de diferentes movimentos populares e missas na comunidades partilham este momento difícil da luta dos trabalhadores.

Greve Geral de 1983

Como toda a década de 80  será um desastre econômico para a classe trabalhadora,  outros confrontos estariam por vir. No âmbito das lutas dos trabalhadores, um momento em que a região teve uma profunda participação e estava conectada ao que acontecia no país  foi a Greve Geral de 1983, a primeira após o Golpe de 1964. Somente para ter uma ideia, em 1983 o estado de São Paulo concentrou o maior número de greves do país com 60,7% do total de paralisações ( Fonte: LEITE, Marcia de Paula. Três anos de greves em São Paulo. Revista São Paulo em Perspectiva, 1  ( 2), p 50-64, Jul/Set, 1987, p. 50)   ). 

A situação econômica estava terrível, a inflação chegava a 100% ao ano. O governo militar do General João Batista Figueredo havia promulgado o Decreto 2025 no fim de maio e semanas depois o Decreto 2036 que tiravam benefícios e direitos dos empregados das estatais e do funcionalismo público, como abono de férias, promoções, auxílios alimentação e transporte, salário adicional anual e a participação nos lucros.  Mais adiante, estavam previstos o Decreto 2045, de 14 de julho de 1983, que arrochou ainda mais os salários e atingiu os aluguéis e o Sistema Financeiro da Habitação (SFH). A reivindicação dos trabalhadores visava revogação do pacote das estatais – Decreto-lei 2036; fim do roubo no INPC – contra os Decretos do arrocho 2012, 2014 e 2045;  revogação do Pacote do BNH;  congelamento dos preços dos itens de primeira necessidade. Havia outras exigências dos trabalhadores como o fim da intervenção nos sindicatos  de São Bernardo, Campinas e Bahia. Na região do Jardim Miriam, Santo Afonso, Cidade Ademar, Vila Santa Catarina  houve muitas reuniões para a comunidade articular apoio aos trabalhadores. Ideias como paralisar os ônibus nas grandes avenidas da região era uma tática. A greve ocorreu em 21 de julho e paralisou  mais de 3 milhões de trabalhadores. 

No dia da greve, logo cedo, às  4 ou 5 horas da manhã, já havia militantes nos grandes corredores da região divulgando a paralisação. Por volta das 11h, na Avenida Cupecê,  na altura da Rua Santo Afonso, na pista em direção ao Jardim Miriam, aproximadamente 60 militantes  da idade de 17 anos até os companheiros de 30/40 anos faziam uma caminhada paralisando este importante corredor da região.  Pouco tempo depois, várias viaturas da polícia rodeiam os militantes e os isolam em um canto da calçada. Em seguida, todos são levados para o 43º Distrito, no bairro do Jardim Prudência. Na delegacia, pegaram dados dos militantes mais velhos e retiveram todos até as 16h com a finalidade de prejudicar a mobilização na região. Dessa experiência, houve aprendizados e sentimentos díspares: desde a crença de que continuávamos na luta, sendo fortalecidos,   até desânimos, manifesto na opinião de que nesta greve, o confronto com as forças de segurança poderia ser mais eficaz. 

Em todas as regiões do território, a experiência da oposição sindical naqueles anos propiciará também momentos pessoais difíceis para muitas lideranças. Entre estes, muitos em suas empresas identificados com a luta política em defesa dos direitos da classe trabalhadora serão marcados pelos  capitalistas, donos da empresas,  e colocados na famosa “Lista Negra”. A consequência é que uma liderança, ao ser demitida da empresa, não conseguia mais ser contratado em outras empresas. Os verdugos detentores do capital montavam tal lista com todas as lideranças influentes e partilhavam os dados entre seu pares. Na época, vimos com muito sofrimento colegas meses e meses sem encontrar emprego, sem poder levar o pão para seus filhos. Muitos tiveram que alterar suas perspectivas profissionais. Em muitos, talvez na maioria dessas lideranças, a nobreza do caráter de compromisso com a luta dos trabalhadores não foi abalada. Muitos desses queridos militantes estão no território, continuam na luta com cinco ou seis dezenas de anos de idade. É devido a isto que em toda a nossa região, desde  o Jardim Miriam, Cidade Júlia,  Jardim Luso, Vila Clara, Santo Afonso, Cidade Ademar, Vila Campestre, Parque do Nabuco, Vila Mira, Vila Santa Catarina,   ao encontrar esses companheiros de luta, debater com eles, divergir ou concordar com suas posições sobre a conjuntura ou sobre os caminho da luta, deve tal conversa vir embebida  de um respeito profundo por suas histórias. Diante desses companheiros, estamos à frente de cabelos brancos que têm história de entrega pessoal, convicção, ânimo e,  acima de tudo,  compromisso com a classe trabalhadora e com os estratos pobres da nossa população. Eles ajudam na formação das gerações de militantes que chegam e, desse modo, a resistência política se faz e se mantém em um todo contínuo intergeracional e, assim, há formação, há educação política para compreensão das contradições da sociedade capitalista. É este espírito professado por Paulo Freire:

“A formação da classe trabalhadora, na perspectiva progressistamente pós-moderna, democrática, em que me ponho, lhe reconhece o direito de saber como funciona sua sociedade, de conhecer seus direitos, seus deveres; de conhecer a história da classe operária; o papel dos movimentos populares na refeitura mais democrática da sociedade. A história de seu país. A geografia, a linguagem ou, melhor dito, a compreensão crítica da linguagem, em suas relações dialéticas com o pensamento e mundo; linguagem, ideologia, classes sociais e educação.” (FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1997, p.133).

Semanas da Juventude

Ao longo dos anos 80, entre a juventude da região  também houve muita efervescência política, disposição em participar e aprender. Nas comunidades acima assinalas, em particular nos espaços das paróquias, houve Semanas da Juventude. Estas eram semanas de debates, manifestações culturais com teatro, música, organizados prioritariamente pela juventude local. No âmbito dos debates eram chamados intelectuais da academia ou aqueles oriundos do vínculo orgânico dos mais diversos movimentos de luta social. Temas relacionados a reforma agrária e à injusta distribuição de terra no Brasil; história da ditadura militar; ação cristã e teologia da libertação; formação da cultura brasileira; organização partidária; organização do movimento sindical e outros, constituíam grandes momentos de formação. As comunidades da Vila Mira, Vila Santa Catarina, Paróquia São Francisco de Assis, na Rua Rio Grande do Sul,  e o Jardim Miriam desenvolveram estes eventos formativos da Semana da Juventude.

Ainda recapitulando a memória de formação política da juventude,  um outro fato interessantíssimo iniciou em 1981. Profissionais da educação (direção e professores) da Escola Municipal Sampaio Dória, próxima à comunidade da antiga favela Braz de Abreu, atentos às mudanças conjunturais e políticas da época que ocorria no país e conhecedores dos movimentos que cresciam na região, fizeram contato com Frei Resende e com Frei Giorgio Callegari para pensar juntos alguma ação com os jovens da comunidade escolar. Os frades organizaram alguns jovens da paróquia que já tinham militância no movimento de luta dos favelados e outros que organizavam semanas da juventude e pensaram junto uma ação partilhada com os alunos da escola em questão. O resultado dessa experiência foi um conjunto de encontros na escola em alguns sábados com centenas de jovens em que  houve uma partilha de experiências, inquietações,  com palestras, apresentações teatrais, roda de música. Ocorria ali uma experiência de formação política para todos os jovens, tanto para  os já militantes como os alunos da Escola Sampaio Dória. E, novamente, encontros entre pessoas ocorre e a formação política se manifesta nesse processo, pois professores e coordenadores dessa escola se aproximaram mais dos movimentos sociais da região e constituíram outra força de luta.

Movimento Nacional de Luta pela Saúde 

Um outro movimento social que se constituirá na região e que estará vinculado a toda uma articulação de movimentos no Estado de São Paulo e no Brasil será o Movimento Nacional de Luta pela Saúde. Na comunidade da Santo Afonso, alguns militantes participavam dessa frente. Um deles, com profunda participação, era o grande Armando ( conhecido como Profeta), irmão também do outro Profeta, o Juraci, ambos companheiros já no andar de cima. O movimento de luta pela saúde terá reuniões  e conferências em níveis local, municipal, estadual e nacional. Armando se deslocava para contatos com companheiros da Zona Leste e trazia informes para a região, também articulava contatos com militantes da Vila Missionária.  Na liderança nacional desse movimento, havia o médico Eduardo Jorge e o Adriano Diogo, este último, mais tarde, se tornará um destacado vereador da bancada do PT em São Paulo. 

A história desse movimento é importantíssima para um resultado político efetivo posterior: essas várias conferências dos movimentos de saúde com lideranças das periferias junto com médicos dos movimentos de esquerda, irão constituir um volume de saber e de propostas que,  ao logo de todo os anos 80,  criará as condições para que o SUS seja edificado como política pública a partir da Constituição de 1988. A representatividade desse movimento foi um fator de pressão na referida constituinte, a qual não pode deixar de lado a demanda da criação de um sistema nacional e público de  atendimento no âmbito da saúde. Como todos os movimentos citados anteriormente que irão formar a identidade dessa região, o Movimento de Luta pela Saúde expressou concretamente a natureza do militante vinculado à luta social e política,: aquele cujas preocupações e ações visam o bem público, isto é, visa os benefícios sociais e busca de direitos para todos e não somente para alguns, e que guarda um valor e interesse mais profundo, que é a transformação social em direção a uma sociedade mais justa e igualitária.

Partido dos Trabalhadores.

Como já é conhecido, a fundação do PT ocorreu em fevereiro de 1980. Um partido com um lastro de representatividade em diferentes setores da classe trabalhadora, com forte presença  de setores sindicais e alguns estratos da classe média de esquerda, além de militantes históricos oriundos das antigas organizações de esquerda clandestinas ou não que  lutaram contra a ditadura nos anos 60/70.  Neste início, o PT se organizava em diretórios e também, distinto de qualquer partido político legal até então, por meio de núcleos.  Estes eram a expressão do desejo forte de participação que incorria  sobre o  PT a partir da diversidades de movimentos populares. Em São Paulo, os núcleos do PT eram pequenos grupos de pessoas espalhados por bairros e comunidades que começam a vivenciar a experiência da militância partidária numa perspectiva de luta e também eleitoral.  Desse processo, um resultado  na região  foi a efervescência política que transformou a paisagem do território nas sucessivas eleições nas quais vários militantes se localizavam próximos às escolas buscando ter contato com a população e propagandeando  ideias e valores dos  partidos e seus candidatos. Há que se rememorar que nas datas próximas aos eventos eleitorais, dezenas ou centenas de reuniões aconteciam nos mais distintos espaços, com militantes pensando e discutindo estratégias de ação.  

É importante destacar que uma consequência do relato acima,  em particular na eleição de 1982, alguns militantes da região foram requisitados para participar da assessoria de mandatos parlamentares. Foi o caso da eleição do vereador João Carlos Alves (esse recentemente partiu para o andar de cima) e do deputado estadual Anísio Batista. De certa maneira, aqui na região, em São Paulo e no Brasil,  começava uma nova experiência da luta política: militantes de base popular, vinculados à luta do trabalhadores, nas suas mais distintas áreas começavam a por os pés no parlamento e ser ponte concreta entre as demandas dos movimentos sociais, o partido político, e a administração pública. Mais tarde, nos anos noventa com a eleição de Ivan Valente para Deputado Federal, outros militantes da região irão cumprir a mesma função de apoio às lutas sociais. 

Ao fim dos anos 80 na Cidade de São Paulo, a grande mobilização em torno da  militância popular e partidária foi a campanha de 1988, cuja eleição definiu Luiza Erundina como Prefeita de São Paulo.  Era perfeitamente normal neste  processo político eleitoral que avançasse sobre o PT as mais diferentes propostas dos movimentos populares de como pensar a administração da Cidade de São Paulo. Um fato político que  no confronto  dos movimentos sociais de esquerda e o PT  de um lado,  e a elite paulistana de outro – ocorreu, se deu sobre o tema que até hoje sinaliza a grande divergência de projetos para a cidade: Como construir uma cidade mais democrática na participação de sua gestão e no acesso aos benefícios do serviço público?  Da elite paulistana sabemos qual é o seu projeto repetido e renovado ao longo dessas décadas: os benefícios da cidade devem ser sempre para alguns e os mesmos de sempre.  Da parte dos movimentos,  a luta social sinaliza: os bens públicos devem ser públicos, ou seja, estendidos para todos e não somente para alguns.

 O tema relacionado à campanha eleitoral que apareceu impulsionado pelos  movimentos sociais e militantes do PT  se referia à forma de gestão da Cidade: os Conselhos Populares. Estes seriam órgãos  de representação dos mais distintos estratos da população que contribuiriam para a edificação e aplicação das políticas públicas junto ao executivo e ao parlamento. A rejeição por parte dos arautos da elite paulistana foi terrível: a Rede Globo dizia que o projeto de Conselhos Populares do PT era manifestação do seu  “viés totalitário”. Na  mesma linha discursiva,  os exímios grandes representantes do passado e, ainda do presente, dessa elite burguesa quatrocentona, no caso o PMDB do Quércia, e o recente PSDB  (fundado em junho daquele mesmo ano) com Franco Montoro, Mário Covas e Fernando Henrique Cardoso, além do PFL (partido fraco na Cidade na época), endossavam o anacronismo manifesto pelos  valores da família Marinho: a proposta do PT é autoritária, vai criar na cidade a verdadeira baderna.  

A rigor, estes defensores da elite paulistana, como  sempre, resistiram a formas e práticas mais abertas e mais  plurais de democratização do uso dos bens públicos da Cidade. É uma elite atrasada com os seus verdugos partidários também atrasados,  já denunciados pelo pensador florentino Nicolau Maquiavel em seu texto escrito entre 1513 e 1519,  no qual  dizia que o setores da aristocracia sempre condenavam a participação do povo no processo político dizendo que esse não tinha conhecimento e experiência para tratar da “coisa pública “ .  Lembre-se, aqui, o discurso dessa elite paulistana era que os Conselhos Populares seriam expressão de baderna.  Voltando a Maquiavel, esse em sua crítica à elite da sua época, registra  que na antiga Roma republicana, as grandes políticas públicas surgiam dos grandes debates, dos conflitos entre os grupos sociais e não eram produtos de algumas mentes que sob a ideia de que eram iluminadas, na verdade, estavam comprometidas com os valores mais atrasados de sociedades autoritárias. Diz o pensador de Florença: 

“Direi que quem condena os tumultos entre os nobres e a plebe parece censurar as coisas que foram a causa primeira da liberdade de Roma e considerar mais as assuadas [levantes e rumores]  e a grita que surgiam  de tais tumultos do que os bons efeitos que eles geravam; e não consideram que em toda república  há dois humores diferentes, o do povo, e o dos grandes [aristocracia, elite], e que todas as leis que se fazem a favor da liberdade nascem dessa desunião deles, como facilmente se pode ver em Roma…” (MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000, p. 21-22)

Maquiavel claramente diz: o povo é um ser essencial da luta política porque as boas leis, diríamos hoje, as excelentes políticas públicas, somente podem resultar dos conflitos de ideias e projetos cuja  possibilidade só pode ocorrer nas práticas democráticas substantivas.  E Maquiavel já alertava para um valor ainda desconhecido na época, no caso as divergências entre as classes sociais: o que move a luta política são os diferentes humores, os diferentes interesses entre o povo e as elites. Então, proibir o povo de ser agente da participação política, agente de mudança é criar as bases para uma sociedade autoritária. Não surpreende que, nesta mesma toada, o pensador de Florença já registrava, ao longo da história, os desejos divergentes dos grupos sociais como algo inerente à luta política e, assim, sendo inerente, eles não podem ser suprimidos. Disse em O Príncipe:

“Porque em toda cidade se encontram estes dois humores diversos: e nasce disto que o povo deseja não ser nem comandado nem oprimido pelos grandes e os grandes desejam comandar e oprimir o povo; e desses dois apetites diversos nasce na cidade um desses três efeitos: ou o principado, ou a liberdade, ou a licença.” ( MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução José Antônio Martins. São Paulo: editora Hedra, 2001, Cap. IX, p. 103).

Imaginamos que rindo para FHC, Montoro, Covas, Quércia e os Marinhos, Maquiavel diria hoje: “lamento…este mundo “supostamente ordenado na desigualdade que vocês defendem” é uma falácia…o povo, os pobres, os trabalhadores na história sempre manifestaram um grande desejo: não ser dominado, não ser oprimido.” 

E sabemos que esta mesma toada será verbalizada no século XIX pelos velhos e grandes Karl Marx e Friedrich Engels:

 “A história de toda sociedade até os nossos dias é a história da luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, mestre e oficial, em suma, opressores e oprimidos sempre estiveram em constante oposição; empenhados numa luta sem trégua, ora velada, ora aberta, luta que a cada etapa conduziu a uma transformação revolucionária de toda a sociedade ou ao aniquilamento das duas classes em confronto.” ( MARX Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto  do Partido Comunista. Tradução Suely Tomazzini Barros Cassal. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 22-23)

Considerada as questões acima, aos militantes da Santo Afonso, Jardim Miriam, Cidade Júlia,  Jardim Luso, Vila Clara, Americanópolis, Cidade Ademar, Vila Campestre, Parque do Nabuco, Vila Mira e  Vila Santa Catarina, certamente Maquiavel, Marx e Engels diriam:  “levando em conta a história de luta dos povos da humanidade, vocês estão no lado certo da História!!!!

Ensino Médio da Escola Leonor Quadros

Nos anos 80 as condições de acesso ao Ensino Médio eram profundamente difíceis.  Se considerar o volume de jovens residentes nas mais diferentes comunidades em torno do corredor que é a Avenida Cupecê, deduz-se qual era a demanda por escolas de Ensino Médio. Neste período, as escolas mais próximas eram, no Jabaquara, o Salvador  Moya e o Villalva Jr., entre as estações Conceição e São Judas. Denota-se dessa condição outra dificuldade da época, pois, em plena década recessiva que foi os anos 80,  esse jovem pretendente ao Ensino Médio teria que pagar condução, justamente em um período que nem havia passe de ônibus  para estudantes.  Isto constatado, em 1983 começou um burburinho no Jardim Miriam de que a escola Leonor Quadros  poderia passar por mudanças, mas que a Secretaria de Educação não sabia exatamente o que fazer. Rapidamente, tal notícia chegando na paróquia do Jardim Miriam fez mobilizar alguns jovens (do grupo de jovens) e militantes com discussões no sentido de pleitear o Ensino Médio na referida escola. Ao longo das reuniões, outros militantes se aproximam, inclusive algumas mães do Movimento de Luta por Creches e mães da comunidade paroquial.  Esta mobilização chegou a reunir permanentemente entre  30 a 40 pessoas. 

 Em reuniões com a Secretaria da Educação, foi ficando claro porque o poder público estava pensando em mudanças no Leonor Quadros.  Para a época, esta escola já apresenta um dado objetivo de difícil administração: seu tamanho, com quase trinta salas de aula, era um absurdo para a gestão. Logo, estavam dadas as condições materiais e sociais para a obtenção de uma grande vitória política: de um lado, centenas de jovens precisando do Ensino Médio próximo a sua comunidade; de outro, a administração com um equipamento que podia cumprir tal monta, mas perdida no que fazer. Somente com movimentos organizados e a percepção de militantes sobre a busca de serviços públicos que atendam a região é que esta ponte poderia ser efetivada. E foi o que aconteceu!  Assim, após sucessivas reuniões na Secretaria de Educação, ficou decidido que o Leonor Quadros seria dividido e uma parte desse equipamento  se tornaria totalmente uma escola de Ensino Médio.  Em 1986 se formou a primeira turma de Ensino Médio nesta nova escola. Na missa de formatura, na Paróquia do Jardim Miriam, os estudantes pediram que, ao fim da celebração, militantes da região participantes dessa aventura política partilhassem depoimentos da história da nova escola. Foi um momento de congraçamento coletivo e fortalecimento dos valores da luta política no território.

Os padres e as freiras

Entre os anos 70 e 80, muitos religiosos, desenvolvendo suas atividades cristãs,  contribuíram para a edificação do espírito de luta contra a ditadura e de busca de direitos no território. No inicio dos 70, o Padre Vidal na Paróquia da Vila Santa Catarina, junto com alguns militantes, entre os quais, Cloves de Castro e Fátima (estes já no andar de cima)  irão desenvolver  atividades de alfabetização de adultos. Há que se considerar o contexto dessa ação: atividades de alfabetização era uma entre as poucas atividades sociais que se podia realizar sem ser perseguidos pelos verdugos da ditadura. Lembre-se, estávamos há poucos anos do Decreto do AI-5. Outro padre espanhol, Lucínio, lotado na Comunidade da Vila Mira e residente na casa da Paróquia Nossa Senhora Refúgio dos Pecadores, na Cidade Ademar,  também contribuía com a região. Anos mais tarde, foi para a Nicarágua com a finalidade  de contribuir para a consolidação da revolução naquele país. Na Vila Campestre, houve as ações do padre Natal no mesmo espírito de entrega modelada pelos valores da Teologia da Libertação. No Jardim Miriam, os frades dominicanos:  Freis José Resende e Giorgio Calllegari. Resende, já muito citado aqui, foi uma liderança importante que contribuiu para  a arregimentação de muitos outros militantes e Callegari, ex-preso político no final dos anos 60, atuando posteriormente na Bolívia, Peru, volta ao Brasil para continuar a luta.  As freiras também tiveram participação relevante no território: Ernestina e Chantal, na comunidade da Vila Santa Catarina, visitavam as comunidades das favelas, se reuniam com os moradores e ajudavam na organização do movimento popular. As freiras dominicanas Renê e Regiane, situadas na Vila Mira, irão desenvolver, junto com Resende e militantes das pastorais, um excelente material catequético baseado na Teologia da Libertação.

Militantes e Projetos

Decorrente da cultura de resistência política manifesta por diferentes movimentos sociais do território através de  ações politicas concretas materializadas  por vários militantes, também houve aqueles que buscaram edificar espaços próprios de formação política, ou de atendimento à população em que pudesse conjugar ação política, serviço à população mais pobre e ambiente formativo e…com a coragem de buscar iniciar estas atividades com recursos do próprio bolso.

É neste espírito que Cloves de Castro, no inicio dos anos 80,   aluga uma casa na esquina da Rua Cidade de Bagdá e Av. Santa Catarina para transformá-la num centro cultural. Enquanto durou, diferentes eventos organizados por parte da juventude da Vila Santa Catarina ali se realizaram. A ideia era desenvolver um espaço de experiências comunitárias e atividades coletivas, além de ser mais um apoio à região para reunião dos movimentos.

Na Avenida Cupecê, próximo à Igreja Católica Brasileira, o casal  de militantes Júlio e Fátima (esta já citada acima) alugam uma casa como residência. Era a primeira metade nos anos 80. Estrategicamente escolhida, não somente para servir de espaço de moradia mas com salas ao nível abaixo da rua  para desenvolver um trabalho social, este casal nesse local edifica um serviço de educação infantil dirigida para as crianças das famílias mais pobres da região. As famílias pagavam o que podiam e quem não tivesse recursos não precisava pagar. O espírito do trabalho era desenvolver uma experiência comunitária que pudesse servir de formação e organização da população para o avanço das conquistas populares. Posteriormente, já entre o fim dos anos 80 e início dos 90, o casal muda para uma habitação atrás do Parque do Nabuco e ali, além da moradia, com salas amplas e articulados  com um grupo de outros militantes,  começam um trabalho de alfabetização, no período noturno, atingindo quase seis turmas. Identificado como Centro Cultural Paulo Freire, havia também atividades  com as mulheres. 

Com os ventos de mudança na própria história da Igreja Católica, as pressões do Papa João Paulo II e de seu secretário para doutrina da fé, o Cardeal Joseph Raztinger, muitos religiosos da  Igreja na América Latina são constrangidos a se distanciar de um compromisso com a Teologia da Libertação e de um trabalho pastoral com os mais pobres.  Por volta de 1986, o  Frei José Resende, vivendo esta experiência, é forçado a deixar a Paróquia Nossa Senhora Aparecida. É de se imaginar o sofrimento de vários clérigos espalhados pelo país  que vivenciaram tal situação. Para um padre, não ter uma paróquia é uma dor moralmente terrível como o desempregado que não pode levar o pão para os filhos. Resende, junto com Giorgio Callegari (este já se encontrava titular da Paróquia da Cidade Ademar) irão organizar na Praça da Sé o Centro de Publicações e Estudos Frei Tito de Alencar Lima para divulgar a publicação de catequese “O Caminho que Liberta” que já existia no Jardim Miriam. Além disso, a publicação da revista política Revés do Avesso será um meio de debate e reflexão sobre a conjuntura do país, revista esta dirigida aos movimentos sociais de todo o Brasil. Resende continua  a  morar na região e para sobreviver torna-se, por alguns anos, professor na rede pública. Aos poucos com alguns colegas militantes alugam algumas salas na Cidade Ademar para desenvolver atividades de alfabetização de adultos. Paralelo a tais ações, Resende, junto com dona Luzia, Ana Maria e outras militantes, fundam, o que se localiza hoje na Rua Jacinto Paes, o Centro Popular de Defesa dos Direitos Humanos Frei Tito de Alencar Lima. Era o mês de novembro de 1987. Com o tempo, essa instituição buscou atender, por meio de projetos específicos, famílias em situação de vulnerabilidade; atendimento de crianças e adolescentes incialmente pelo programas do antigo OSEM; e, atualmente, em convênio com a Secretaria Municipal de Assistência Social,  desenvolve um atendimento na área assistencial-educacional com crianças e adolescentes de 6 a 14 anos, tanto na sua sede, como no Centro da Criança e Adolescentes da Cidade Júlia. Também continua as parcerias com o MOVA, com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra na articulação de venda da alimentação orgânica, com a Escola de Cidadania  e tem ações a partir de seus militantes na divulgação dos eventos da região através do projeto  Rádio Poste.

O compromisso

Aproximando o fim desse relato sobre a história do território, cujo significado somente é compreendido por meio de milhares de ações de corajosos militantes para os  quais a preocupação com a vida privada é insuficiente para o próprio sentido da vida, uma vez que se pensa que a vida com dignidade deve ser um bem estendido a todos e, devido a isso, o sentimento de lutar em defesa do bem comum, ou seja, lutar para que os bens devam ser estendidos a todos e não somente para alguns,  nos perguntamos: como os familiares, parentes e amigos não militantes observam o militante, seu familiar? Devem se perguntar: como é possível nestes 20, 30 ou 40 anos ele ou ela continuar nas reuniões, participar de manifestações, acreditar que um mundo mais justo é possível?  De onde eles tiram energia para continuar acreditando? 

Talvez a resposta esteja em uma aprendizagem que ocorre somente com anos de militância. Primeiro, o sentimento de atenção para a vida em comum, a preocupação com a vida pública, a luta por condições melhores não só para os filhos, para a esposa ou para a mãe, (recipientes da vida privada tão sugeridas pelo neoliberalismo), mas também para os amigos, para o trabalhador, para o sem teto, para o sem terra, para os que sofrem e nem são conhecidos, enfim, a preocupação com o povo brasileiro que sofre. A segunda aprendizagem que talvez ocorre é que o militante nos momentos das vitórias fica contente, partilha com os amigos, mas experimentado pelo ferro quente da luta, não fica deslumbrado. Sabe  que as conquistas estão aqui e agora e a conquista mais profunda, que é transformação radical da sociedade na direção da igualdade e justiça, está no horizonte. Por outro lado, este mesmo militante, sendo ele ou ela, ao viver as derrotas, fica entristecido, por vezes desnorteado no café junto a um cigarro em casa, mas sabe que a derrota de agora não é a sentença definitiva da história. No dia seguinte, ele se levanta, e diz  “a luta continua”. 

É profundamente inspirador que a reflexão acima foi também observada por Maquiavel. Justificando na Itália do período do Renascimento, em pleno século XVI,  porque é papel do cidadão lutar em defesa do bem público, sendo esta luta permeada pela participação política, dirá [quase falando para nós hoje o que é aprendizagem do militante] “…fazendo-o conhecer melhor o mundo, fá-lo-a alegrar-se menos com o bem e entristecer menos com o mal …”(MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000, p. 416).

Maquiavel está a dizer que a luta pelo bem público, a luta pela transformação social na direção do bem comum, na busca da sociedade mais justa tem o poder formativo da educação, pois molda o militante, forma-o para ser o que é. Esta educação restringe no militante os seus excessos, freia as suas paixões infantis e irracionais porque converte este militante no melhor conhecedor das contradições do mundo e, por isso, ele não se deslumbra com as vitórias pontuais e não perde a esperança, portanto não se desespera, diante das derrotas. A luta continua!!!  Neste espírito, meses atrás, um militante do Centro Frei Tito, militante tarimbado, já sexagenário,  dizia algo mais ou menos assim “ …não tem jeito, nós dormimos, acordamos, passamos ao longo do dia lutando por um mundo mais justo. Enquanto houver injustiça social e desigualdade, vamos estar lutando.”

Aos que foram

Não há como encerrar  “esta história do território” sem lembrar das nossas queridas e queridos militantes que já partiram para o andar de cima. Talvez este texto deve a eles ser dedicado. Walter Benjamim, filósofo da Escola de Frankfurt, intelectual que em sua obra esparsa  ajuntava reflexões provenientes do romantismo, da mística judaica e do marxismo, se perguntava: como é que seria contar as narrativas históricas a partir das observações dos vencidos?  Criticando que os relatos históricos burgueses somente contam a história a partir dos vencedores, Benjamin alerta: certamente, a narrativa a partir dos derrotados poderá capacitar e inspirar os vivos que continuam na luta. Na sua obra intitulada  Sobre o conceito de História, na qual ele expõe 18 teses sobre o papel, o sentido e o ensino de história, Benjamin alertava a esquerda alemã dos anos 20/30,- esquerda que fracassou em detectar a ascensão do fascismo e do nazismo,- sobre a importância de fazer na luta do presente a inclusão da memória dos mártires do passado. Michael Löwy explicando o que Benjamin queria dizer na tese XII escreve:

“A última classe que luta contra a opressão e que é encarregada, segundo Marx, da obra de libertação – o proletariado – não pode realizar esse papel, segundo Benjamin, se esquecer seus ancestrais martirizados: não há luta pelo futuro sem a memória do passado. Trata-se do tema da redenção das vítimas da história… “( LÖWY, Michael.  Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “ Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 109)

Benjamin entendia que para os trabalhadores de qualquer época, para todos os mais distintos estratos das classes oprimidas, os derrotados do sistema capitalista, a história cumpria o papel não somente de narrar os feitos, as vitórias, e as derrotas, mas de lembrar que o vivo no presente e o massacrado das lutas do passado, fazem parte de um mesmo contínuo de luta. Os mortos do passado não devem ser somente objetos de veneração, não! A ideia de memória com substância exige mais do que isto: os nossos mártires caminham  no dia- a -dia conosco. Ainda sobre a posição de Benjamin, explica Löwy:

“É evidente que a rememoração das vítimas não é, para ele, uma lamuria melancólica ou meditação mística. Ela só tem sentido quando se torna uma fonte de energia moral e espiritual para aqueles que lutam hoje. Trata-se da dialética  entre o passado e o presente já sugerida pela tese IV. Vale principalmente para o combate contra o fascismo, que busca sua força na tradição dos oprimidos. …” ( LÖWY, Michael.  2005, p. 111)

Essas reflexões do filósofo marxista Walter Benjamin fazem nós percebermos e  lembrarmos que em nosso território e no Brasil, a luta não começou ontem. Muitos dos nossos militantes do passado já tombaram, devido a  idade, enfermidades, acidentes, prisão e torturas, e não chegaram a conhecer o Brasil justo e igual como pretendiam. É por isso que devemos carregá-los conosco. Eles e nós fazemos parte de um grande todo da luta por um Brasil justo, igualitário, antirracista, anti-homofóbico e antifascista.

Benjamin viveu, como muitos intelectuais marxistas, por exemplo, Ernst Bloch e György Lukács, a angústia da ascensão  do nazismo na Alemanha e eles perceberam e, por mais que tenham alertado a esquerda alemã, não foram suficientemente ouvidos sobre a tragédia que se avizinhava. O próprio Benjamim foi vítima dessa tragédia: já na França ocupada pelos nazistas em 1940, Benjamin tenta fugir pela fronteira espanhola, a região de Port-Bou. Qualquer refugiado alemão-judeu ou marxista era entregue às autoridades da Gestapo. Na referida divisa, Benjamin é interceptado pela polícia de Franco. Sem saída, Benjamin optou pelo suicídio. (LÖWY, Michael, 2005, p. 33).

Benjamin era amigo pessoal do poeta também alemão Bertold Brecht. Houve um poema de Brecht, chamado “Aos que vierem depois de nós” que impactou muito Benjamin. Em linhas gerais, lembrando a atmosfera dos anos 20 e 30 de ascensão do nazismo na Alemanha, Brecht, neste poema …pede às gerações seguintes que se lembrem dos sofrimentos da sua (LÖWY, Michael, 2005, p. 115).  Benjamin, lendo este poema acrescenta ao fim dele: 

“Pedimos àqueles que vierem depois de nós não a gratidão por nossas vitórias, mas a rememoração de nossas derrotas. Isso é um consolo: o único dado àqueles que não tem mais esperança de serem consolados.” (LÖWY, Michael, 2005, p. 115).

Benjamin chamava a atenção da esquerda alemã…na luta lembrem-se dos mortos que resistiram no passado. Por sermos de esquerda, o mesmo recado serve para nós. Benjamin é muito claro: os nossos mortos não estão mais aqui e eles clamam que continuemos a lutar e a lembrá-los por vários motivos e, entre eles, o principal:  eles muito lutaram, eles se foram e não viram durante a vida a Justiça se realizar, a igualdade ser vivida e a fome ser suprimida. A luta continua!!! 

Como o grande João Guimarães Rosa, certamente numa chave de valor também defendido por Marx, dirá: “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para gente é no meio da travessia.”  ( ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Editora Nova Aguilar, 1994, p. 85)

Voltando a Guimarães Rosa “Verdade maior!”

Imagem: Prefeitura da Cidade de São Paulo

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Escrito por Expresso Periférico

4 thoughts on “História do Jardim Miriam, história de luta”
  1. Caro camarada Eurico,
    Me emocionei lendo o seu relato histórico do nosso território.
    Penso que devemos, assim que possível, juntar outros relatos. de outros militantes que vivenciaram esta história, para registrá-la de forma mais completa, pois cada um de nós, podemos lembrar de detalhes, que muitas vezes outros não lembram e assim juntando todos os retalhos, poderemos costurar esta história desses últimos 50 anos e deixar para os que virão depois de nós.
    Um grande abraço e vida longa ao Expresso Periférico!

  2. Relato importantíssimo da história do bairro. É importante lutarmos pela criação de um Centro de Memória para coletarmos depoimentos, documentos, imagens e objetos que retratem a nossa formação como comunidade. Estes dias me deparei com uma casa bem antiga que ainda tinha uma caixa de luz, aquelas de ferro que datava o ano de 1932. Quase toquei a campainha da residência para conhecer estes moradores que estavam aqui nos anos 30. São detalhes simples e outros mais complexos que somados formam a nossa identidade. Parabéns pelo relato.

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