Até quando vamos insistir em datas que mais agridem do que alegram? Esse texto contém ironia e um tanto de raiva.

A palavra gatilho, nos últimos tempos, segue cada vez mais presente em nossos vocabulários e redes sociais. Gatilho, em especial a expressão gatilho emocional, faz referência a tudo aquilo que pode iniciar o contato com emoções e traumas passados. Se visitarmos aquele antigo livro chamado dicionário, gatilho é uma peça de arma de fogo que, quando acionada, faz disparar o tiro. 

Eu não chamo o dia das mães de gatilho. Para essa data prefiro a expressão “armamento bélico”. E já que aproximei dia das mães e guerra, faço um parênteses para destacar uma associação: pessoas que concordam com o armamento da população são em grande parte aquelas que defendem a tal da tradicional família brasileira e essas comemorações que já podem ser vistas como anacrônicas. 

Mas “que tiro foi esse?” Que o dia das mães vêm disparando ano após ano? O dia das mães dispara a ausência. O dia das mães dispara a inadequação de modelos familiares múltiplos em nossa sociedade. O dia das mães dispara a nossa pouca habilidade em falar da morte. O dia das mães dispara a positividade tóxica. 

Desde a infância me incomodo com datas comemorativas e, em especial, com o dia das mães. Vale dizer que o dia das mães é o segundo momento do ano que mais movimenta o comércio. Perde apenas para o Natal (vejam que simbólico: a data de maior lucro é a do aniversário de um homem e as mães e mulheres que permaneçam no lugar delas, ou melhor, atrás dos homens).

Eu me incomodava com o dia das mães porque pensava em todos os filhos e filhas que não tinham uma mãe presente. E, apesar de ser privilegiada por ter uma relação de confiança com a minha mãe, imaginava que um dia ela não estaria mais ao meu lado.

Na minha cabeça de criança, a morte da mãe era o único motivo que poderia causar dor em uma pessoa no dia das mães. Com o passar dos anos, fui entendendo que era muito maior o número de pessoas agredidas nos segundos domingos de maio: filhos que não se relacionam com suas mães de forma saudável, famílias em que a figura materna inexiste, pessoas que não estão fisicamente com suas mães por motivos diversos, entre outros. 

Hoje, depois que perdi meu filho, esse desconforto com a data se ampliou. Se antes me incomodava pensar naqueles e naquelas que não convivem com a imagem de uma mãe socialmente idealizada, passei a imaginar – e também a ser – as mães que não estão com seus filhos e filhas da forma que desejariam estar.

A ausência de um filho é escancarada no dia das mães. E, assim como a reflexão que fiz anteriormente, essa ausência pode se dar pela morte, como é o meu caso, como por diversos outros motivos. 

Penso hoje nas mães que têm filhos encarcerados, desaparecidos, hospitalizados. Penso nas mães que se desentenderam ou se perderam nas relações com seus descendentes. Qual o tamanho da dor dessas mulheres? 

Como é para uma pessoa que luta contra questões de infertilidade pegar o catálogo de maio da NATURA que traz na capa um barrigão de vários meses de gestação? Como é para a mãe de um filho neuroatípico assistir comerciais de famílias doriana que comemoram o dia das mães? Como o mês de maio impacta na ansiedade de uma mulher que está aguardando o processo de adoção? 

E ainda: como é para todas essas mulheres serem convidadas (ou convocadas) para o tradicional almoço familiar de dia das mães? É espaço de dor ver os grupos de WhatsApp com mensagens de parabéns para todas as mamães e nenhuma dessas mensagens ser direcionada a nós porque mãe de filho morto não é vista como mãe.

Não vou entrar na questão do papel social da mulher no ato de cuidar nem no quanto isso implica na santificação das mães. O que quero dizer com esse texto é que acredito existir muito mais gente triste do que feliz com o dia das mães. Se fosse possível mensurar, diagnosticaríamos uma imensidão de pessoas machucadas com os apelos da data..

Voto pelo fim do dia das mães (e do dia dos pais e do dia dos namorados e de todos os outros dias criados para ampliar as vendas). Mas como sei que isso não é possível (ainda) – o comércio piraria – trago aqui algumas sugestões de como sobreviver ao dia das mães e de como apoiar aqueles e aquelas que provavelmente se sintam agredidos com as comemorações do segundo domingo de maio.

Para quem está sentindo dor, te incentivo a ser absolutamente sincero com você (alguns dirão que você está sendo egoísta). Não cumpra convenções sociais se não fizer sentido, percorra esse dia da forma que você se sentir menos agredido. 

Para quem sabe que tem alguém por perto sentindo dor, pergunte como essa pessoa gostaria de ser abraçada nessa data delicada. Não pense que tocando no assunto você vai fazer a pessoa lembrar da dor que o dia das mães pode vir a causar. A mídia já dá conta de nos lembrar disso minuto a minuto. Talvez, ter com quem falar sobre a falta que se sente de uma mãe ou de um filho, vai ser luz nesse caminho nebuloso.

E, é claro, sendo educador e educadora, é nosso papel combater qualquer alusão ao dia das mães dentro das escolas. 

É sobre isso (já que comecei com gatilho, uma expressão viralizada na internet, termino com outro clichê das redes sociais): o dia das mães é uma data que, entre muitas coisas, evidencia a falta e a inadequação. E é sobre também o quanto é necessário pensar e fazer mudanças porque são muitas as famílias que não seguem o modelo engessado do que é ser família – algumas porque não querem outras porque não podem.

Dedico esse texto às pessoas que souberam me abraçar em 2022, meu primeiro dia das mães sendo mãe e já sem a presença física do meu bebê Luiz. Essas pessoas, além de me acolherem, não inviabilizaram minha maternidade. Um forte abraços para Waldirene André, Rosana Mercante, Débora Querido, Dimmy Alves, todas as mães e amigas do Instituto do Luto Parental, meu companheiro Gabriel e, é claro, minha mãe amada Anna Miceli. 

Saiba Mais

Cadê a Mãe Dessa Criança? | Betho Fers e Erick Silva (TEDxCarioca)

Nesse vídeo Betho Fers (doula de adoção) e Erick Silva (psicólogo) nos relatam sobre os desafios da parentalidade homoafetiva. Esse vídeo me mostrou mais e mais motivos grandes e legítimos para liquidarmos com o dia das mães nas escolas, nas famílias e na vida social como um todo. 

É um vídeo para nos tirar do lugar e nos arrancar boas lágrimas.

Perdi meu bebê / Damina Angrimani (Livro)

Esse livro, como o próprio subtítulo diz, é uma companhia para atravessar o luto gestacional, perinatal e neonatal. O dia das mãe machuca quem tem o colo vazio não apenas pela ausência do bebê mas também pela invisibilidade das nossas maternidades. Quem não tem um filho ou filha viva dificilmente é vista como mãe e esse apagamento de identidade é brutal. O livro organizado pela psicóloga Damiana Angrimani conta com depoimentos e reflexões de mãe que se despediram de seus filhos em diferentes contextos e traz também a fala do pai do meu filho sobre o luto do homem.

Mais informações sobre o livro no Instagram do Instituto do Luto Parental.

Imagem: Renata Gibelli

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Escrito por Renata Gibelli

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