Para elas, os sistemas de educação, mercado de trabalho, economia do cuidado, pobreza e desigualdade de renda, vitimização e acesso à justiça sempre estiveram colapsados. Pela Coletiva de Mulheres e Dina Alves

25 de julho é Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. No Brasil homenageamos Tereza de Benguela, símbolo da resistência e luta do povo negro.

Desde 1992, quando foi instituída a data, nós, mulheres negras, concentramos e ocupamos as ruas para manifestar nossa luta contra o racismo, todos os preconceitos, o machismo, denunciando o feminicídio e o genocídio da população negra.

Uma data para lembrarmos nossa ancestralidade e a história das mulheres negras que deixaram um legado importante para continuarmos nossa caminhada e sermos Dandaras, Carolinas, Firminas, Marielles e tantas outras que colocaram seus corpos no combate ao extermínio do povo preto.

Nossa convidada é Dina Alves, Advogada, feminista, negra, abolicionista, atriz e cofundadora do coletivo Adelinas, para partilhar com a Coletiva de Mulheres do Expresso Periférico, este espaço de escuta.

É mulher, mas é negra!

Dina Alves (Advogada, Doutora em Ciências Sociais na área de Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Autora da pesquisa “Rés Negras, Juízes Brancos. Atriz, feminista negra e cofundadora do Coletivo Autônomo de Mulheres Pretas – Adelinas.)

Este título carrega muito mais que um vocábulo gramatical da conjunção adversativa. Ele está permeado de simbolismo histórico, cultural, político e ancestral. Esta oposição gramatical deve ser lida aqui sob a perspectiva de raça, gênero e classe social, sobre a construção do corpo feminino negro/indígena como punível e matável, sob dois aspectos: 1) A invisibilidade desse grupo social no acesso aos direitos fundamentais e os tipos de violência simbólica embasados em estereótipos como preguiçosas, dependentes de ajuda governamental, vítimas incapazes de pensamento crítico, mães de crianças potencialmente delinquentes, mulheres sexualmente  promíscuas e politicamente analfabetas;  2) A  hipervisibilidade dos seus corpos como locus da punição Estatal, uma vez que esse grupo social está proporcionalmente sobrerrepresentado,  nas estatísticas oficiais de Prisão e Feminicídio. 

A invisibilidade das mulheres negras aqui está centrada nos recentes estudos do Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil, de 2019, por exemplo, que reconhecem as especificidades e as desvantagens acumulativas em diversos campos de acesso à cidadania. Para elas, os sistemas de educação, mercado de trabalho, economia do cuidado, pobreza e desigualdade de renda, vitimização e acesso à justiça, sempre estiveram colapsados e isso não é uma novidade com o estado pandêmico em que estamos vivendo atualmente. É possível enxergarmos a precariedade e negligenciamento das suas experiências ao olharmos a composição das periferias, favelas, comunidades, aldeias, quilombos, moradias precárias e insalubres Na ausência de saneamento básico, nas experiências diárias das pessoas desempregadas ou subempregadas, ou com vínculos empregatícios frágeis e vítimas da terceirização e precarização do trabalho (como as milhares de crianças negras/indígenas que sobrevivem vendendo balas em sinais de trânsito, mulheres com bacias de frutas nas calçadas das praças dos grandes centro urbanos), dentre tantas outras formas de subjugação e desumanização sistemática dos povos condenados da terra e que revela a abolição inacabada. 

Da mesma forma, as mulheres negras/indígenas sofrem a experiência da hipervisibilidade de seus corpos pelas agências de controle que as capturam diuturnamente, através de prisões e mortes. Historicamente seus corpos foram produzidos politicamente como “desviantes”, “criminosos”, “promíscuo”, “traficantes”. E a produção de estereótipos marca seus corpos como “mães de bandidos”, “mães de traficantes”, “ex-presidiárias”, “presidiárias”, “mulher de preso”, “úteros de fabricar marginais”. E estes estereótipos revelam as múltiplas opressões que atravessam suas experiências por serem negras e indígenas – pobres, lésbicas, transexuais, mães, avós, imigrantes, palestinas, latinas, caribenhas – confinadas nas cadeias e penitenciárias, ou engrossando as fileiras desses espaços, do lado de fora, “puxando cadeia junto”. Estas marcas são reveladoras da existência de um corpo-abjeto, que não merece o direito à vida, ao prazer, ao erótico, à reprodução maternal, ao afeto, à constituição de família, pois são corpos destituído ontologicamente da sua condição de pessoa, cidadã e, no limite, humano. 

Elas são confinadas em trajetórias de punição nos atuais  36.929 mulheres encarceradas e violadas de direitos elementares (Fórum, 2020). Na mesma face do genocídio, elas compõem 66,6% das vítimas negras de feminicídio. O Atlas da Violência 2020 já havia mostrado que, em 2018, a taxa de homicídio de mulheres negras foi quase o dobro  de mulheres não negras. A pesquisa também apontou tendências distintas na evolução dos homicídios de mulheres negras e não negras entre 2008 e 2018. 

Então estas experiências de invisibilidade e hipervisibilidade conformam uma simbiose mortal, explosiva, que demarca que a pós-abolição aperfeiçoou e reinaugurou o processo de desumanização das mulheres negras e indígenas nas múltiplas faces do genocídio, que atua de forma difusa e acumulativa na sociedade brasileira. No matar e no deixar morrer. Ou seja, a política da morte nos atingem de todas as formas. É nesse sentido que o título é um convite às mulheres a entender o corpo como um lugar, um território, um mapa marcado por memórias do terror racial ao longo da nossa história, através das formas de capturas das tecnologias de punição e mortes. Mas também é uma provocação às nossas formas de empoderamento, resistência e agenciamento na luta contra a vitimização imposta, ao machismo, ao sexismo, à subordinação racial e ao terrorismo do Estado. Neste dia da Mulher Negra e Caribenha na Sociedade Latina e do Caribe, é preciso olhar estes lugares como uma possibilidade para diagnosticar nossas especificidades neste sistema-mundo. 

Não há prescrições para essa luta, mas há um programa revolucionário já em gestação nas periferias urbanas e no universo rural. E algumas respostas vêm sendo formuladas concretamente pelo conjunto de mulheres que ensaiam práticas significativas em vários lugares e em diversas situações. Práticas que incluem: a) a redefinição do feminismo afrodiaspórico para que não caiamos na tentação arrogante de definir a “ação política” e o “ser mulher negra” a partir de uma visão hegemônica e neoliberal-capitalista (há várias maneiras de viver o feminismo negro), portanto não há um sujeito histórico único. Muitas são as mulheres dessas mudanças e elas se orientam por um novo sentido de viver e atuar; por uma nova percepção da realidade e experiência do Ser; elas emergem de um caminho coletivo que se faz caminhando e colocando abaixo concepções racializadas da lei e da ordem, de justiça e de liberdade; b) a esquerda punitivista precisa estancar de vez a gramática punitivista. Não é possível ser revolucionário de esquerda e adotar práticas neoliberais-burguesas que nos oprimem no sistema capitalista todos os dias. Não é possível ser feminista negra e participar do banquete neoliberal das agências de cosméticos que esfolam o couro das mulheres trabalhadoras  que sobrevivem com parcos recursos das vendas de produtos de “beleza”. Não é possível humanizar a barbárie da justiça criminal com suas prisões lotadas e a existência da corporação policial que existe para nos exterminar. O momento presente pede radicalidade nas nossas vozes e ações. Não aceitamos o reestabelecimento e a manutenção da paz social, ou a facilitação dos processos de reconciliação à preservação do Estado democrático de direito. Isso não. Não! 

O lugar de fala reivindicado por nós é o lugar das vozes plurais, da rebelião negra forjada de baixo para cima, no subterrâneo das nossas experiências de dores e de luto. Não queremos o “lugar de fala” associado à reconfiguração do conceito de um certo modismo digital da atualidade, com seu gritante esvaziamento de sentido político, que habitualmente sequestra outras vozes, ameaça e persegue outras mulheres negras através da máquina genocida do Estado com envio de notificação extrajudicial, constrangimento e desmoralização pública. Não aceitamos negociações com nossas dores e nem com nossa negritude plural, numa limitada discussão antirracista, que finda ao incluir pessoas discriminadas na sociedade capitalista-punitivista.  A arrogância em definir o “ser mulher negra” a partir de uma visão hegemônica capitalista, de modo algum desafia os discursos neoliberais. Na verdade, esse modismo se apresenta como receituário das políticas neoliberais predatórias que apenas repõem as necessidades do mercado de consumo e mercantilizam as pautas históricas da luta do feminismo negro Afro-Latino-Caribenho. Aqui é imprescindível resgatarmos as palavras de Audre Lorde, segundo a qual, “as ferramentas do senhor não podem destruir a casa grande”.  Por fim, a urgência em fortalecer a política da ética do cuidado coletivo em que o feminismo afrodiaspórico apareça tanto como gesto profético e quanto práxis para construir um novo modelo de sociabilidade e interação humana. 

Avante, Mulheres! Vamos em marcha!

Imagem: Dina Alves (Acervo pessoal)

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Escrito por Coletiva de Mulheres

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