“A vida que não é examinada
não vale a pena ser vivida”
Sócrates – filósofo grego
(470 aC – 399 aC)

INTRODUÇÃO

Os humanos são os únicos seres vivos que comemoram um ciclo de órbita da Terra em torno de sua estrela, o que ocorre poucos dias após a comemoração do nascimento da entidade religiosa adorada por pouco mais de 2 bilhões de pessoas (quase um terço de toda a humanidade). As comemorações religiosas ou cívicas buscam movimentar o comércio, com presentes que levam a endividamentos e grandes movimentações de pessoas promovendo o turismo. Estas atividades geram empregos e permitem o acúmulo de capital por uma ínfima parcela da população. Ganha o modo de produção capitalista. A Terra inicia um novo ciclo em torno do Sol e as desigualdades sociais se perpetuam. O número de miseráveis cresce e, com as ruas dos grandes centros tomadas por pedintes, aqueles que fazem donativos para aliviar suas angústias, aproveita o 13º salário e aumenta as esmolas. Nas festas de confraternização, o “precisamos nos ver mais”, “este ano vai ser diferente” etc. se repete entre colegas de trabalho, velhos amigos e até parentes.
Na canção Ano novo, o cantor e compositor Chico Buarque ironiza o regime militar. Os primeiros versos apontam que,

O rei chegou e já
mandou tocar os sinos
Na cidade inteira
É pra cantar os hinos,
hastear bandeiras
Eu que sou menino,
muito obediente

A submissão ao modelo consumista não remonta do discurso ufanista imposto pela Ditadura Militar, momento nebuloso da história do Brasil, mas adentrou na terra de Pindorama com o processo de colonização e destruição da cultura indígena. Mas o regime militar assumiu o Papai Noel vestido de vermelho – o verde do bom velhinho ganhou as cores da multinacional The Coca-Cola Company, e o vermelho – até então ainda não completamente associado ao modo de produção socialista – tomou conta dos anúncios de final de ano. Continuando:

Estava indiferente
Logo me comovo
Pra ficar contente
Porque é Ano Novo
Há muito tempo
Que essa minha gente
Vai vivendo a muque
É o mesmo batente
(…)
Dance alguma valsa
Quero ser seu par
E ao meu amigo
Que não vê mais graça
(…)
E tão leal seu povo
O rei fica contente
Porque é Ano Novo

Porque é ano novo, esperamos uma verdadeira reestruturação de nossas vidas. Mas nada acontecerá se não nos movermos. A luta nos chama. E ela acontece cotidianamente na rua. Delegar a outros na esperança que nos proporcionem direitos e garantias sociais é mais que acreditar em Papai Noel… É não acreditar em si mesmo. Para o filósofo Nietzsche,1

“Para o Ano Novo – Ainda vivo, ainda penso: ainda preciso viver, pois ainda preciso pensar. Sum, ergo cogito: cogito, ergo sum. Hoje, qualquer um se permite expressar seu desejo e seus mais diletos pensamentos: então, também quero dizer o que desejo de mim mesmo e qual o pensamento que, este ano, me veio primeiramente ao meu coração – qual o pensamento que deve ser, para mim, razão, garantia e doçura de toda a vida que me resta! Quero aprender, cada vez mais, ver o necessário das coisas como sendo o belo – então, serei um daqueles que tornam as coisas belas. Amor fati: daqui em diante esse será o meu amor! Não quero travar uma guerra contra o feio. Não quero reclamar, não quero nem mesmo reclamar dos que reclamam. Desviar o olhar deles, será minha única negação! E, abrangendo tudo, em algum momento ainda quero ser apenas alguém que sempre diz sim!”

Este aforismo, presente na obra A Gaia Ciência, foi escrito para o dia 1º de janeiro de 1882, e remete à máxima de René Descartes: (cogito, ergo sum; penso, logo existo) segundo o pensamento nietzschiano. Será que estamos ainda muito obedientes – como quer o suposto Rei da Canção de Chico Buarque ou precisamos pensar mais para tornar nossa existência algo mais consistente neste mundo tão desumano, como o aforismo proposto por Nietzsche?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enquanto brindamos o ano vindouro, recuperamos nossas baterias com as merecidas férias e sonhamos que os versos de Rita Lee se realizem: “Se Deus quiser/Um dia eu quero ser índio/Viver pelado/pintado de verde/Num eterno domingo/Ser um bicho preguiça/Espantar turista/E tomar banho de sol/Banho de sol, banho de sol, sol” (Baila Comigo – Rita Lee, in Rita Lee Lança Perfume, Som Livre: 1908). Hoje precisamos estar na rua para lutar. Lutar por salários decentes, moradia digna, atendimento médico condizente com nossas necessidades, educação pública, laica, gratuita e de qualidade, além de espaços de lazer (a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte, já alardeava o grupo Titãs). Menos horas de trabalho e mais tempo ocioso para contemplarmos a natureza e vivermos. Tratamento digno para o povo em situação de rua. Um sistema carcerário que recupere e reconduza aqueles que cometeram erros, de volta ao convívio com a sociedade. Punição aos corruptos e pelo fim do modo de produção capitalista, cruel e desumano. Que venha 2024.

  1.  Friedrich Wilhelm Nietzsche (Röcken, 15/10/1844 – Weimar 25/08/1900): filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor. Abusando da metáfora e ironia, criticou a religião, a moral, a cultura contemporânea, filosofia e a ciência. ↩︎

Imagem: Bruno O./JAMAC

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