Entrevista com  as lideranças do Ilê Axé Oxum Opará e Caboclo Ubirajara Peito de Aço. Por Professor Betinho, Mauro Castro e Aurélio Prates

Esse mês o Expresso Periférico esteve no Ilê Axé Oxum Opará e Caboclo Ubirajara Peito de Aço, terreiro de candomblé localizado na Av. Durval Pinto Ferreira, 823, praticamente em frente ao local da futura Casa de Cultura da Cidade Ademar, para uma conversa com as lideranças do lugar. Foi uma conversa franca e prazerosa sobre a trajetória da casa, religiosidade e cultura. Alguns momentos foram tomados por forte emoção. O terreiro é simples, sem grandes ornamentos, com um altar à direita de quem entra no espaço, três atabaques à esquerda. Ainda à esquerda, uma pequena sala onde a líder religiosa da casa, Mãe Sambaleci, recebe seus filhos e seguidores para conversar e dar a orientação espiritual. Na parede, uma imagem em madeira da representação artística do rosto de Jesus Cristo e um quadro do pai nosso em formato de caracol chamam a atenção.

Somos recebidos por três pessoas: Vanilda – Iyá (mãe) Sambaleci; Gustavo – Babalaxé (pai) Oriojuilê; e Lucas – (ogan) Obanipá. É Sambaleci quem faz as apresentações.

Expresso Periférico: Se vocês puderem falar rapidamente os nomes, a identificação de vocês?

Sambaleci: Meu nome é Iyá Sambaleci, que é o meu nome de batismo dentro da minha nação angola kassanje. Este (apontado para a sua direita) é Oriojuilê, é o cargo da casa (Babalaxé). Este (apontado para sua esquerda) é Obanipá. Além de ogan da casa, responsável por tudo que vai acontecer durante o dia do toque, do encontro de todo mundo. É meu filho carnal e responsável por toda essa parte, o que vai acontecer na noite, quem vamos louvar, o que vamos fazer, em que momento vamos descansar. Eles estão aqui hoje, poderíamos estar com todo mundo, porque temos os demais meninos e meninas. Mas eles que falam pra mim “Mãe, precisamos fazer tal coisa, ou vamos fazer desta forma.”

Ele (Obanipá) é responsável por trazer coisas novas, juntar os meninos que tocam. Ele faz parte de um grupo, como chama o grupo?

Obanipá:  Família Jipanji e Madeira de Lei. A gente tem um grupo de tocadores de atabaque, de percussão, onde a gente visa não deixar (perder) a cultura nossa, que não é escrita, é falada. Então, quando a gente perde um mais velho, a gente perde um pouco dessa cultura e as casas, realmente, se fecharam e cada um fica com sua cultura, fica com o que aprende dentro de si. Criando esse grupo, a gente trouxe a informação de mais lugares, de mais cultura, mais aprendizado de vários lugares. A gente criou esse grupo, só existem ogans dentro desse grupo. Não é um grupo aberto a pai-de-santo, a mãe-de-santo, a ekedi, somente ogans. Neste grupo buscamos registrar canto, toque, ritmos, tudo que englobe nossa raiz. Esse grupo hoje também é filiado dentro do nosso Axé. Então, nosso Axé sempre está recebendo esse pessoal. 

Sambaleci: Na realidade, é para agregar.

(Em continuidade das apresentações)

Sambaleci: Além do Obanipá, tem o Oriojuilê, que é o nome de batismo dele dentro do nosso Axé. Foi escolhido pelos meus Santos para me ajudar a dirigir no que diz respeito a tudo, no que é fora do Ilê e o que é dentro do Ilê. Obrigações, como proceder, como fazer com aquela pessoa que precisa ser feita de santo, o que a gente vai ter que buscar fora da nossa raiz, o que a gente vai precisar agregar. É o que me ajuda, junto com as ekedis, a definir o que a pessoa que vai se recolher ou vai tomar uma obrigação pode ter, o que ela precisa e que ela pode, o que a casa pode ajudar. Nós aqui não temos nenhum tipo de restrição e é sempre o Ori que me ajuda. Quando algum filho não pode algumas coisas, não tem condições, então a gente vai buscar nos nossos parentes de santo uma paramenta, uma vestimenta emprestada, porque, para nós, para mim, para o Ori e para o Obanipá, só justifica estarmos aqui para cultuar exatamente o sagrado e amparar cada um dos filhos naquilo que a gente consegue um pouquinho de cada coisa. Eles são meus braços e minhas pernas.

 A minha história começa lá atrás, quando eu era bem menina, num terreiro de Umbanda. Fiquei muitos anos nessa casa, tenho orgulho de ser dessa casa. Ela é viva ainda, chama Neusa Aureliano, fica ali no Jardim Miriam há mais de 50 anos. Numa determinada fase da minha vida ela disse “Filha, você precisa ser feita de Santo.” Eu não entendi aquilo. Ela disse: “Você precisa dar seguimento. Aqui você é minha filha, um dia você vai precisar ser mãe.” E eu fui em busca disso. Corri alguns terreiros, Deus me abençoou que eu conheci uma pessoa que me levou num lugar e fui entendendo mais ou menos o que era o Candomblé, porque eu não conhecia tudo isso daqui. Fui feita (iniciada) numa casa, tenho muito respeito pela pessoa sim, não tenho mais contato hoje, fui feita por uma pessoa de Oxumaré. Nós nunca mais nos vimos, por questões pessoais, nada que desabone nem ele nem a casa dele. Eu decidi ser de outra família e aí eu fui me encaixando aos poucos, dia após dia, no Axé Joãozinho da Goméia.  A minha bisavó de Santo é a Kelezu de Xangô, lyá da Zona Leste, falecida hoje. A minha avó é Danuássingue Da Oxum, também falecida, da praia. Meu finado pai é Ydageomim de Iemanjá. Neste Axé tomei as obrigações de 1, 3, 5 e 7 anos (adeká) e nesta família permaneço até hoje. Eu já tinha alguns filhos raspados, outros borizados, e por conta de uma perda pessoal minha, o ogan da minha avó, que era meu esposo. Eu fiquei em luto e só ficaram mesmo comigo aqueles que acreditavam que o sagrado está dentro da gente. Me guardei por quase 9 anos. Quando eu vi a necessidade de meu filho carnal ser feito (iniciado) e eu não poderia fazê-lo porque vai contra os meus princípios, embora algumas casas façam, isso vai contra aquilo que eu acredito, dentro do sagrado. E quando eu entendi que a pessoa que estava junto comigo, o Oriojuilê, há anos, e precisava tomar a obrigação dele, o encerramento do primeiro ciclo, que é os 7 anos, na nossa nação angola kassanje chamado de adeká, eu recorri a um tio de santo meu. Meu filho foi feito (iniciado) e eu pude entregar os direitos para o Ori. E aí, de novo, eu me fechei em conchas. 

Eu queria cultuar, isso é o que eu escolhi pra minha vida, mas a gente precisava de um espaço. Então eles se juntaram para me convencer. “Vamos abrir um espaço? ” Foi muito difícil para eu estar aqui, eu aceitar abrir o espaço (Ilê de Oxum). Juntamos opiniões e eles me convenceram e, graças a Deus, a gente conseguiu achar esse local. Aqui é um lugar abençoado. Somos nós e nós…a vizinha da direita é minha filha, do lado esquerdo, uma senhora maravilhosa, o pessoal do prédio que vem assistir os nossos trabalhos quando não temos restrições por conta da pandemia. 

A família é grande, eu tenho filhos fora de São Paulo, tem pessoas que eu cuido fora do Brasil. Tudo em prol do sagrado. Hoje, a gente está aqui, porque eu, Sambaleci, o Ori, o Obá, todos nós acreditamos que a religião pode transformar, pode ajudar, pode salvar, por conta de tudo isso que a gente vê no mundo: por conta do preconceito, por conta da fome, por conta do desespero atrás de uma moradia, por conta de uma doença, para que sempre tenhamos saúde, o que eu prezo muito. 

Nós cultuamos aqui o orixá relacionado à saúde todos os dias da semana. Somos todos muito gratos a ele.

Eu, particularmente, não me preocupo muito com o salão (barracão), se vai estar enfeitado ou não em dia de festa. Eu me preocupo com o que é fundamento dentro da minha religião. Eles são favoráveis a isso e, quando passa disso, que não é o fundamento exatamente, aí o Oriojuilê e o Obanipá se juntam com a casa para transformar o salão pra uma festa, para receber pessoas, pra acomodar todas as pessoas. A gente pensa que vai vir uma mãe com uma criança, a gente se preocupa em ter alguma coisa para a criança comer quando sente fome. Eu faço giras, giras mesmo, não são toques, de Preto Velho, de Baiano, de Boiadeiro, de Marinheiro, de Caboclo, que é o dono dessa casa, para atender pessoas que vêm aqui, que passam, que batem no meu portão, precisam de um passe, precisam só de uma palavra. Então, eu me disponibilizo esse tempo, ou a Sambaleci conversa com essa pessoa, o meu caboclo vem, para trazer essa palavra de conforto, para trazer esse passe. Essa é a minha verdadeira função dentro da Casa. Eles é que cuidam de tudo que vocês puderem imaginar. Vamos ter uma festa de Ogum. O que vamos fazer? Eu, Sambaleci, me preocupo em cultuar o sagrado. Eu vou louvar Ogum, eu vou fazer os rituais de Ogum. Eles estão sempre juntos, porque eu não faço nada sozinha. E o que passou daquilo, que é o fundamento, aí a Casa se junta para realizar todo e qualquer movimento, onde tem o toque, onde ele chama os irmãos para tocar os atabaques, faz as cantigas, o que vai acontecer, como estão os filhos da casa, como é que eles estão se preparando. Falo por mim, a Casa hoje está aberta porque meu objetivo não é só aqui dentro do candomblé, eu quero ir um pouco além de tudo isso. Tentar prestar serviços, do lado de fora do meu portão, para todas as pessoas que precisarem de alguma forma. Tem uma integrante aqui da casa, ela tem um trabalho solitário, que para mim é de extrema importância, que é doações, junta pessoas, movimenta, tudo que vocês puderem imaginar. Desde uma fralda a um remédio de alto custo. Uma pessoa sempre disposta a isso. Então, eu abracei, hoje a família inteira (dela) é da Casa: ela, o esposo e os filhos. E eu prezo, acima de tudo, família. Cada um que entra vai agregar à minha família, que é bem pequena, só tenho ele (Obanipá) de filho carnal. Basicamente, o que eu consigo dizer é isso. 

O meu Ilê, ele está aqui não só para tocar candomblé angola kassanje. Ele está aqui porque a minha luta de todos os dias, o meu desejo, o meu sonho é transformar o Ilê, agregar à ONG que eu pretendo ter um dia para prestar serviço para o próximo, senão não valeria a pena estar aqui.

Aurélio Prates: A senhora estava falando desse trabalho, esse sonho de criar um CNPJ, uma ONG para trabalhar, mas o Ilê já faz esse trabalho social, mesmo sem ter um CNPJ, de pensar a família. Às vezes eu chamo os terreiros, as casas de Axé, de museu do século 30. Porque, além do sagrado, você tem o corpo, a alimentação, o líquido que alimenta, as folhas que alimentam. Eu sinto que os terreiros têm um papel social muito grande. Eu queria que a senhora falasse sobre isso, como você vê os terreiros dentro da sociedade, dentro da cidade, dentro do estado, dentro do Brasil, da relação do trabalho do terreiro com o entorno.

Sambaleci: Eu vejo que cada terreiro aberto, seja de umbanda, candomblé, independente da nação, deveríamos (sic) de fato, nos preocupar um pouco mais em manter as famílias, manter os filhos próximos, manter os netos próximos. Eu não consigo receber na minha casa de morada uma família inteira, por exemplo. 

Se naquela família tem uma criança e a criança quer pular, a criança quer sujar a parede, a criança quer derrubar as coisas no chão, mas ela faz parte daquela família. Tenho como princípio: “Onde não cabem os meus, não me cabe.”

Todos os terreiros, todas as religiões, deveriam pensar nisso. 

Quando (alguém)  entra naquele portão, ela não entra porque ela veio ver que aqui ver um palacete para ela visitar. Ela veio porque precisa de ajuda. Se não veio pela ajuda espiritual, porque, às vezes, ela já é do santo e não sabe, veio em busca de um passe, ou porque está doente e não custa estourar uma pipoca e rezar para Obaluaê e pedir por aquela pessoa que talvez eu nunca mais veja, mas, se  você está aqui hoje, eu vou te oferecer uma água, um café e tentar te deixar à vontade para falar. 

Por vezes, a pessoa bate no meu portão somente para perguntar: “Hoje tem gira? A senhora pode conversar?” As pessoas deixaram de se preocupar com a família, com a dor do outro, se preocupam muito com a vaidade. Por exemplo: eu não tenho hábito de ir muito a terreiros de candomblé, porque eu sou muito reservada. Os meninos gostam e, quando eu estou disposta, eu vou junto com eles. Pra mim, não é necessário uma roupa bonita nem um fio bonito, mas você tem que ter o dom de ouvir, todos nós deveríamos ter o dom de ouvir, e nos preocuparmos que, quando a pessoa entra do portão pra dentro, ela não entra só. Até porque eu acredito que existe o sagrado, eu cultuo isso todos os dias. Então, se ela entra aqui, quem pode me garantir que não foi só porque ela achou meu jardim lindo, mas porque o santo dela me trouxe aqui para eu ajudá-la e reconhecer que ela tem um santo, que ele precisa ser cuidado de alguma forma, e eu sempre, sempre, procuro fazer o melhor para aquele ser humano. Mesmo que ele não volte mais aqui, não tem problema, mas eu não sei para que eu estou aqui, qual a minha missão. O que falta para nós é isso, receber as pessoas como um todo e tudo que ela traz junto dela. 

É um caso que aconteceu aqui: Eu tenho uma filha, recém feita (iniciada) de santo, ela tem uma avó de 89 anos, que já tinha levado essa senhora em outros terreiros ,não sei onde, mas aqui esta moça que hoje é minha filha, falou assim: “A senhora poderia pelo menos ouvir o que a minha mãe tem a dizer da história que o médico disse da minha avó?” E ela me trouxe essa senhora aqui e eu pensei assim: “Meu Deus, 89 anos? Será que ela tem expectativa dentro do santo?” E me deu vontade. Coloquei ela na mesa de jogo e perguntei: “A senhora quer jogar búzios?” E ela respondeu: “Quero! Vim aqui pra isso.” 

Joguei pra ela, identifiquei o santo dela aos 89 anos de idade. Falei pra filha e pra neta: “Não será longo o tempo que Deus dará para ela aqui na Terra. Mas o que eu puder fazer por ela, eu vou fazer.” Então, identifiquei que poderia fazer alguma coisa dentro do sagrado pra ela, fiz, ela está aí, bonitinha, pretende viver mais uns dez anos e eu me sinto feliz por ter dado atenção para ela. Se eu bato numa porta é porque eu preciso de algo, senão eu fico na minha casa. Então, quem bate, precisa de algo. Se Deus me colocou aqui, meu orixá me colocou aqui, eu tenho que atender igualmente todas as pessoas e entender que, por exemplo, talvez o que eu tenha feito por essa senhora de 89 anos tenha trazido paz para a família dela, que normalmente (pensaria): “Ah, ela tem 89 anos, ela já cumpriu a missão dela”. Não sei, de repente, eu posso estar aqui, fazer a passagem amanhã e ela ficar mais dez anos na Terra. Então, tenho por questões minhas, atender todas as pessoas que chegam, não importa qual é o problema delas. E se ela vier com a família inteira, a família vai chegar, vai tomar água, vai tomar café. Se for dia de gira, eu procuro fazer um lanche, um café com leite. Talvez o problema seja familiar. Alimentação aquece o coração, aquece a alma, traz amizades, vínculos duradouros e o candomblé precisa se preocupar com isso.

Obanipá: Relembrando a pergunta do Aurélio, falando da parte da percussão, o que a gente busca: hoje, não existe um CNPJ para se considerar uma ONG, mas o trabalho sim existe. Talvez a gente não consiga trazer todos para dentro da casa, mas a criminalidade está aí, prostituição está aí, as drogas estão aí. Eu, como toco o atabaque, às vezes, num toque, de ver o menino que entrou aqui com a mãe e ele se encantou por aquele toque e no próximo ele vai estar, a gente garantiu um sábado que ele não viu gente usando droga na rua, um sábado que ele vai jantar, porque a gente não sabe a realidade na casa de todo mundo. Porque, nos finais de toque, tem janta aqui. A gente vai garantir que, se despertou a curiosidade nele, que ele vai estar no próximo final de semana aqui para ver o atabaque tocar de novo, e de novo, e de novo. Pode ser que a gente perca ele, uma hora, para a criminalidade, mas pode ser que a gente recupere ele. Pode ser que a gente tenha ele dentro da casa de santo. Pode ser que ele se torne uma pessoa melhor dentro do orixá, dentro do sagrado. Não é todo mundo, mas se cada casa de axé, cada candomblé se preocupar em recuperar um, em trazer um, acho que vai fazer a grande diferença. Não é uma ONG porque não temos o CNPJ, não temos o burocrático. Só que a partir do momento que a Iyá cuida de uma família, se preocupa se a família tem uma alimentação, se a família tem um remédio para dar para a criança na hora que precisa, quantas e quantas pessoas ela abrigou dentro da casa de santo que ela tem uma cultura de zelo, onde mora o seu orixá, vai morar vocês também, tem esse espaço, então, não é uma ONG ainda constituída, mas o trabalho existe, de formiguinha em formiguinha, de pouquinho em pouquinho. O Oriojuilê é filho de santo da minha mãe e hoje eu sou filho de santo dele. A gente viu a nossa família nascer e crescer. Acho que essa é a grande vontade de todos. Recuperar todo mundo é impossível, mas a gente tenta chegar nos lugares onde não está sendo visto, de grãozinho em grãozinho, de pessoa a pessoa. Gente que tem vontade de ter alguma coisa, gente que já não tem mais expectativa nenhuma de vida, não tem vaidade nenhuma chega e o orixá se agrada daquela pessoa e dá um abraço naquela pessoa. 

O ogan desce do couro e dá o couro para aquela pessoa que está olhando, com vontade de fazer parte daquilo, isso recupera, isso faz bem, isso gera um calor humano, um e aquece o coração. E acho que é isso que a gente tem na nossa família, de receber as pessoas.

Oriojuilê: Além de tudo, temos a questão hierárquica como aliada. Dá para perceber que são pontos de visão bem diferentes entre nós três. É por isso que a gente se completa aqui dentro, né? A questão hierárquica dentro de uma casa de axé é muito forte. Manter o respeito, cada coisa em seu lugar, mas todo mundo se amar, como uma família. Porque nós aqui praticamos a sociedade familiar efetivamente, nós não somos somente uma casa de santo. A gente se gosta, a gente se ama, a gente se desentende, mas, quando alguém precisa, todo mundo se junta para correr um pelo outro. Crianças que às vezes têm problema de comportamento com a família, vêm pra cá e conseguem entender o que é respeito dentro de uma família e passam então a respeitar os pais, de uma forma diferente, ver os pais com respeito porque passam a entender o sacrifício que os pais fizeram e fazem até hoje. Ou irmãos de santo nossos que tiveram no passado percalços da vida, se envolvendo com drogas e até criminalidade, saíam parecendo bicho do mato e quando vieram para dentro do orixá se resgataram. Não sabiam falar e hoje são pessoas que estão na sociedade novamente. É muito importante saber que é um trabalho que não é um foco, mas é o dia a dia. A gente vive o candomblé, a gente vive a comunidade família dentro do orixá. E isso o orixá que traz pra gente, esse conforto no coração e saber que todo mundo que entrar aqui vai estar abraçado.

Expresso Periférico: Vocês tocaram, nas falas anteriores, na questão do sagrado, do religioso. Mas, para além do religioso, existe também a questão da cultura, da ancestralidade desse fazer. E nós vamos ter aqui, em frente ao espaço de vocês, a futura Casa de Cultura de Cidade Ademar. Queremos entender como vocês veem essa questão cultural aliada à questão religiosa.

Oriojuilê: Para a gente é bem importante saber que vai ter a Casa de Cultura, ainda mais por saber da história que vocês contaram (da luta histórica pela construção dessa Casa desde a década de 90). São 30 anos de resistência, assim como nós fomos dentro da nossa vivência dentro da nossa família. Quando minha mãe (Iyá Sambaleci) perdeu o esposo dela, nós ficamos quase 9 anos com todos os nossos assentamentos e ibás guardados dentro da casa de morada dela porque nós não tínhamos um Axé. Então, conseguir depois de 9 anos colocar de pé o Ilê Axé Oxum Opará e Caboclo Ubirajara Peito de Aço nos torna irmãos de causa. Essa causa de poder ajudar e, de repente, ter a parceria com a casa de santo, que é totalmente cultural. A nossa religião é inteiramente cultural, desde as vestimentas até o ajoelhar, acender uma vela, isso tudo faz parte da nossa cultura como povo brasileiro. E ter algo que vai disseminar cultura do nosso lado é incrível, porque a gente pode juntar isso. De repente, em algum momento, vamos ter aula de percussão, temos aqui um ogan que é ritmista de atabaque e consegue passar esse conhecimento para outras pessoas. Não especificamente falando de religião, porque existe a multiplicidade do mundo. A gente não precisa introduzir a religião na Casa de Cultura, mas a gente tem a parte cultural dentro da religião que as pessoas podem entender que é rico, faz parte do país, da nossa sociedade, da cultura negra, que é muito forte. São o exemplo de resistência, nossos ancestrais. E o candomblé faz isso. Além da parte toda bonita, a gente tem a parte social de ajudar e trazer as crianças para a gente resgatar e tirar da rua.

Obanipá: Acho que a parte da questão cultural, o que uma casa de candomblé agrega à cultura do seu bairro: são cantigas, toques de atabaque, a gente tem uma culinária totalmente diferente do que está acostumado, vestimentas. Agrega à cultura porque de um toque de atabaque a gente tira um músico. De uma vestimenta diferente, a gente tira uma costureira, de uma cozinha diferente… a gente segue receitas que vêm de mais de 3 mil anos, 4 mil anos. A gente faz essa receita até hoje e isso é servido e alimenta as outras pessoas. Não é só um enfeite, não é só uma dança, não só essa purpurina, existe um porquê. Isso que é a nossa cultura do candomblé,

É isso que o nosso candomblé quer passar, para mostrar para o mundo, que é a vestimenta, o canto, o toque, a culinária e que aqui todos podem comungar juntos ao sentar no chão para fazer o ajeum. São esses cinco pontos que dentro de uma casa de candomblé culturalmente falando. Além, claro, de termos MUITA FÉ!!!

Imagens: Prof. Betinho

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Escrito por Expresso Periférico

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