A terceira década do século XXI se iniciou com a pandemia ceifando milhões de vidas mundo afora.

INTRODUÇÃO

A terceira década do século XXI se iniciou com a pandemia ceifando milhões de vidas mundo afora, especialmente onde a ciência é colocada em segundo plano e prevalece o negacionismo. O capitalismo comprova não ter respostas para eliminar as profundas desigualdades sociais – particularmente em momentos caóticos como o que ora vivemos – e a crise humanitária, seja pelos miseráveis que perambulam nas ruas de São Paulo e de outras grandes cidades, seja pelas mortes por falta de oxigênio em Manaus, seja pelos caixões de vítimas da COVID-19 empilhados pelas ruas de Quito. Neste mesmo período temos as instituições democráticas burguesas sendo afrontadas, em uma tácita disputa pelo poder. Quanto a este ponto, destacamos duas situações: logo nos primeiros dias de 2021, o congresso estadunidense foi ocupado por pessoas que questionavam o resultado das complexas eleições pela qual passou o país, uma república presidencialista; no Brasil, uma parcela da pequena burguesia vai às ruas pedindo intervenção militar, fechamento do STF (Supremo Tribunal Federal) e reedição do Ato Institucional nº5.1 O pedido que chega aos manifestantes é o de respeito à democracia, pedido que repetem.

As origens da democracia remontam ao período clássico na Grécia Antiga, onde o conceito de cidadania não abarcava todas as pessoas. Cidadãos eram apenas homens, adultos e atenienses – também filhos de pais atenienses, isto é, moradores da cidade-estado há, no mínimo, duas gerações. Oriunda da palavra demokratía que é composta por demos – povo kratos – poder ou forma de governo, o termo Democracia resguarda aos cidadãos o direito à participação política – direta (todos os cidadãos podem participar, apresentando projetos de leis e votando nos projetos apresentados por seus iguais), representativa (permite um exercício indireto por meio da eleição de representantes geralmente para os poderes Legislativo e Executivo) ou participativa (intermediária ou semidireta – a participação dár-se-a por meio de plebiscitos e assembleias populares locais que, computando a participação popular e os seus resultados, quando somados ao todo, interferem nas ações políticas). Assim, a democracia é uma série de princípios que orientam a atuação dos detentores do poder, garantindo o respeito às liberdades e atendendo a vontade geral da população. Com as revoluções burguesas, em particular a Revolução Francesa,2 houve uma ampliação do conceito de cidadania, e, consequentemente uma alteração da concepção de democracia. Os líderes revolucionários propunham uma participação popular massiva  para destruir o Antigo Regime e, com isso, promover um grande avanço nos campos, social, político, moral e científico, ideais sintetizados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, publicada em 26 de agosto de 1789 e estabelecia quais os direitos são universais, assim como quais direitos individuais e coletivos seres humanos seriam protegidos. Apesar da ampliação do arco de cidadania, os revolucionários não estenderam a participação para todos, negando-a às mulheres, por exemplo. Esta e outras injustiças somente foram superadas nos séculos seguintes, quando houve uma ampliação de direitos (fundamentais, coletivos, difusos e individuais), que levaram o direito de voto às mulheres, proibição da pena capital em vários países, etc. Assim, o modelo burguês de democracia passa por alterações que atendem às necessidades de dado momento, mas sempre com a intenção de abafar eventuais questionamentos por parte das massas e nunca para diminuir o poder da burguesia (seguindo a máxima de “vão-se os dedos, mas ficam os anéis”). 

Nesta publicação vamos analisar dois textos do início do século XX: A Ditadura Democrática, de György Lukács e Democracia, de Anton Panneköek. Lukács defende que a ditadura democrática como mecanismo de se chegar a uma ditadura do proletariado. Aproveitar a estrutura burguesa seria parte do processo de ascensão da massa trabalhadora ao poder, uma espécie de democracia representativa. Já a democracia dos conselhos, defendida por Panneköek, aparece como mecanismo de participação de todos os indivíduos interessados adaptada a realidade dos grandes centros demográficos sendo, portanto, um exemplo de democracia direta. 

A DITADURA DEMOCRÁTICA 

O homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do homem, é a existência humana, enquanto que nas outras formas de Estado o homem é a existência legal. 
(Karl Marx – Crítica da Filosofia do direito de Hegel) 

György Lukács3 elabora Teses de Blum,4 para o II Congresso – ilegal – do KPU.5 Estas teses provocaram uma reação violenta e a tese é acusada de nada ter a ver com o bolchevismo, ser liquidacionista e direitista. Ele aponta que o VI Congresso Mundial incluiu a Hungria entre os Estados que enfrentavam “o problema da ditadura democrática [que] desempenha um papel decisivo diante da passagem à revolução do proletariado. Lukács ressalta que o partido deve explicar aos seus militantes e a massa de trabalhadores esse problema. Para tanto, se acredita que os aspectos no que se refere a concepção marxista da democracia burguesa e como ela pode ser um mecanismo útil ao proletariado, assim como destacar a concepção de que a ditadura democrática seria uma forma transitória entre o modo de produção capitalista e o comunismo. Assim, que o governo de Bethlen,6 organizado para aniquilar a luta do proletariado húngaro, uma vez destituído, deveria ser seguido por uma ditadura democrática, isto é, uma completa realização da democracia burguesa. O pensador considerava o uso do aparato burguês como um importante instrumento para dialogar com a massa operária, sublevá-las e dirigi-las à ação revolucionária espontânea. A estrutura criada pela burguesia ajudaria a afrouxar as formas organizativas e ideológicas empregadas pela própria burguesia para desoganizar as massas. Com a ditadura democrática seria possível criar formas de organização com as quais a massa do operariado faz valer seus próprios interesses contra a burguesia. Para Lukács, usar a estrutura jurídica-parlamentar, montada pela burguesia, facilitaria o convencimento de uma parte hesitante da população. Assim,

A ditadura democrática é essencialmente incompatível, no atual nível de desenvolvimento, com o poder econômico e social da burguesia, embora o explícito conteúdo de classe de seu objetivo concreto e de suas reivindicações imediatas não vá além do âmbito da sociedade burguesa, mas represente, ao contrário, a completa realização da democracia burguesa.

A ditadura democrática, portanto, embora em seu conteúdo concreto imediato não vá além da sociedade burguesa, é uma forma dialética de transição para a revolução do proletariado. O atraso da ditadura democrática, poderia ser transformado em um período de desenvolvimento estável, constitucionalmente aceito seria a via concreta através da qual a democracia burguesa abrindo o caminho para a ditadura do proletariado. Contudo,

as funções antitéticas da democracia burguesa devem ser explicadas aos membros do partido com a máxima exatidão. Deve-se distinguir claramente se nesta democracia a burguesia é a classe politicamente dominante, ou se – com a perpetuação da exploração econômica – ela concede o poder, pelo menos em parte, às amplas massas dos operários. No primeiro caso, a função da democracia é a de dispersar, desviar, desorganizar as massas operárias; no segundo, de minar e desorganizar o poder político e econômico da burguesia, e de organizar as massas operárias para a ação autônoma. Por isso, os comunistas, perante a validade ou não da democracia, devem colocar a questão nos seguintes termos: qual classe será desorganizada em seu poder pela democracia? A democracia tem, do ponto de vista da burguesia, uma função de consolidação ou de destruição? (..) Todas as palavras de ordem da ditadura democrática devem ser avaliadas deste ponto de vista: do ponto de vista da mobilização das massas e da desorganização da burguesia. (…)  O desmascaramento da sabotagem burguesa – ou eventualmente apenas a sua neutralização – só tem um certo valor como luta pelo poder, como instrumento de mobilização das massas.

A submissão a uma ditadura democrática não seria uma anormalidade, já que as classes oprimidas e exploradas combateram juntamente com a burguesia para a derrocada do absolutismo feudal e, consequentemente, pela conquista de uma democracia burguesa e levaria a consolidação do poder da classe capitalista, contudo traria garantias institucionais. O húngaro reconhecia a desorganização das massas operárias e a falta de preparo para influenciar o Estado era um elemento dificultador, contudo, não propõe mecanismos para superar esta debilidade. Ademais, aponta que, Um Estado capitalista e imperialista (…) é levado em igual medida a privar as massas de qualquer influência política e a contê-las e organizá-las mente, ou seja, é sempre arriscado se submeter às regras estabelecidas (e controladas) pela classe burguesa. A luta pela ditadura democrática deve ser desenvolvida para evocar o significado prático que todos os direitos civis democráticos – direito de reunião, de assembleia, de greve, de imprensa, etc. – têm para a luta dos operários. Lukács parece não atinar para o fato de que o modelo burguês permite uma organização controlada dos trabalhadores, mas está distante de eliminar a exploração destes. 

A DEMOCRACIA DOS CONSELHOS 

A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores.
(Karl Marx, Manifesto do Partido Comunista)

Anton Panneköek,7 o teórico dos conselhos, lembra, em sua obra Os Conselhos Operários,8 que a democracia foi a forma natural de organização das comunidades humanas primitivas, onde todos os membros do agrupamento decidiam com absoluta igualdade sobre todas as atividades comuns, assim como sucedeu nos primeiros desenvolvimentos da burguesia. A organização em pequenos agrupamentos permitia que todos fossem ouvidos, reservando aos mais velhos – portanto com mais conhecimentos – a decisão final. O conselhista afirma que,

A democracia aqui era não a expressão de uma concepção teórica sobre a igualdade dos direitos de toda a humanidade, mas uma necessidade prática do sistema econômico. De tal forma, o viajante participava tão pouco delas quanto os escravos na Antiguidade, e propriedades maiores geralmente significavam uma influência maior nas assembleias. A democracia era a forma de colaboração e autogoverno dos produtores livres e iguais, cada um mestre de seus próprios meios de produção, de seu solo, ou local de trabalho, ou ferramentas. (2018, pág. 221)

Segundo o pensador, em Atenas, os assuntos públicos eram decididos em assembleias regulares dos cidadãos, enquanto que as funções administrativas eram atribuídas a grupos distintos por tempo limitado, e, como citado acima, a participação era reduzida a um grupo específico: homem, adulto, ateniense, com posses. Com o advento das cidades medievais, a organização dos trabalhadores artesões ocorriam em grêmios e o governo da cidade, quando não estava nas mãos de aristocratas, era exercido pelos chefes dos grêmios. No despontar da Idade Média, quando os mercenários dos príncipes controlam os cidadãos armados, tanto a liberdade quanto a democracia que imperava nas cidades desaparece. Ao adentramos a era da democracia burguesa são promulgadas constituições com um caráter marcadamente democrático, porque a luta contra o feudalismo necessitava de forças combinadas de todos os cidadãos, a burguesia então a classe revolucionária e o trabalhador, a massa que viabilizou a transformação. Porém, 

as constituições de fato eram bem diferentes; os capitalistas industriais ainda não muito numerosos e poderosos, temiam que as classes mais baixas pudessem, cansadas da competição e exploração, controlar a legislação. (2018, pág. 221)

Por isso, os despossuídos, isto é, a classe operária, que nada tem além de sua força de trabalho para vender, foi, inicialmente, privada do direito de voto. A massa de trabalhadores, por ser numerosa, poderia controlar o parlamento e, consequentemente o poder. É por isso que, durante todo o século XIX, a democracia política se converteu no objetivo de sua ação política: participar do jogo. Esta classe estava apegada à ideia – e sempre está – de que a disputa no campo da democracia burguesa, mediante o sufrágio universal, legaria o poder governamental e, desse modo, seria capaz de abolir o capitalismo por dentro da sua estrutura, ou seja, a simples tomada do poder significaria a sua emancipação. Assim, a burguesia sinalizava um poder ao povo que, na prática, não se efetivava. Ao contrário, a ilusão de participação arrefecia a luta. O direito de voto se estendeu paulatinamente, chegando ao direito de voto igual para todos, homens e mulheres, e nada mudou. A democracia parlamentar, longe de ser um perigo ou uma fonte de debilidade para o capitalismo, é uma de suas forças, pois

Na sociedade capitalista, há uma luta perpétua de interesse entre as classes e os grupos. (…). Com o sufrágio universal, sem limitações artificiais, todos encontram seu porta-voz; qualquer novo interesse, de acordo com seu significado e força, pode exercer seu peso na legislação. Assim, a democracia parlamentar é a forma política adequada para a ascensão e desenvolvimento do capitalismo. (2018, pág. 222)

Porém, permanece o temor de ver a classe trabalhadora sublevar e é necessário dar garantias a democracia falaz e manter nas massas exploradas a convicção de que são donas de seu destino mediante suas cédulas de voto, de tal forma que, se não estão contentes com sua sorte, deverão aguardar as próximas eleições, uma vez que,

Em apenas um dia a cada quatro ou cinco anos o povo tem poder sobre os delegados; e no dia de eleição uma propaganda e anúncios barulhentos, velhos slogans e novas promessas são tão grandes que há pouca possibilidade de juízo crítico. Os eleitores não têm de designar porta-vozes em que confiam. Os candidatos são apresentados e sugeridos pelos grandes partidos políticos, selecionados em convenções e sabem que qualquer voto de alguém de fora é praticamente jogado fora. (2018, pág. 222-223)

O modelo que se mantém é o de o governo por meio do povo não seja o governo pelo povo. A máxima de: governo do povo, pelo povo, para o povo não se realiza. A democracia parlamentar não é mais que uma democracia parcial, ilusória. Pior:

Os trabalhadores se adaptaram ao sistema formando seu próprio partido – o Partido Social-Democrata na Alemanha, o Partido Trabalhista na Inglaterra – desempenham um papel importante no Parlamento por vezes provendo ministros de gabinete. Então, contudo, seus parlamentares têm de jogar o jogo. Além de suas preocupações especiais, as leis sociais para os trabalhadores, a maioria das questões sujeitas às decisões estão relacionadas aos interesses capitalistas, os problemas e dificuldades da sociedade capitalista. Acostumam-se a cuidarem e tomarem conta desses interesses no escopo da sociedade existente. Tornam-se políticos hábeis, que assim como os políticos de outros partidos constituem um poder quase independente, acima do povo… (2018, pág. 223)

A massa explorada escolhe entre os seus pares, em muitos casos, estimulados por suas lideranças sindicais, aquele que o representará no parlamento. O deputado que, dentro do status quo, lhe garantirá as migalhas que despencam da farta mesa do burguês. O pomposo salário e as benesses do cargo, fazem com que busquem se perpetuar no poder. O argumento de que a característica essencial da democracia é o próprio povo eleger os seus dirigentes não se realiza na democracia parlamentar, pois o objetivo da democracia é assegurar o domínio burguês, mantendo as massas a ilusão de que podem decidir a sua própria sorte. O jogo é jogado com cartas marcadas.

O capitalismo se baseia na suposta igualdade dos cidadãos onde, os proprietários privados – os capitalistas – são livres para vender suas mercadorias e os trabalhadores – os proletários – vendem sua força de trabalho.  Porém, com a liberdade e a igualdade o resultado é a exploração e o conflito de classe estando de um lado o capitalista, que é o dono e explorador e do outro o trabalhador, o escravo e explorado. Nesta estrutura, a igualdade jurídica é respeitada, e a democracia, herdada das lutas burguesas do século XVIII, faz com que as massas trabalhadoras acreditem que não necessitem da luta e seguem enroladas nas redes, se debatendo em vão para se libertar, mas sendo cada vez mais exploradas. Panneköek cita o exemplo da Alemanha quando, em 1918, o governo militar foi derrubado e o poder foi para as mãos dos trabalhadores, e, sem sofrer um poder estatal, estavam livres para edificar sua própria organização social. Foram instituídos por toda parte Conselhos (operários, de soldados, etc.) e estes eram produto de uma instituição nascida das necessidades e, também, do exemplo dos sovietes. Porém, esta ação espontânea não correspondia ao que pensavam em teoria os trabalhadores, impregnados por completo da teoria democrática durante anos e anos de propaganda social-democrata. Também, de acordo com toda a burguesia, lançaram como bandeira a “convocatória de uma nova Assembleia Nacional para promulgar uma nova Constituição democrática”. Contra os grupos revolucionários que propunham a organização em Conselhos e falavam de ditadura do proletariado, eles falavam de igualdade jurídica de todos os cidadãos. A massa de trabalhadores hesitou, pois estavam impregnados do ideário democrático burguês e não ofereceram nenhuma resistência. Com a eleição e reunião da Assembleia Nacional de Weimar, a burguesia alemã obteve um novo ponto de apoio, um centro de decisão, um Governo estabelecido. Assim se iniciou o curso dos acontecimentos que ia conduzir à vitória do nazismo.

Em crises sociais e revoluções políticas, quando um governo rui, o poder cai nas mãos das classes trabalhadoras; e para a classe proprietária, para o capitalismo surge o problema de como tirá-lo da mão deles. Assim foi no passado, assim poderá ser no futuro. A democracia é o meio, o instrumento apropriado de persuasão. Os argumentos de caráter legal e formal têm que induzir os trabalhadores a ceder seus poderes e deixar sua organização ser inserida como parte subordinada de uma estrutura estatal. (2018, pág. 226-227)

Para fugir desta trama, os trabalhadores devem ser organizar em Conselhos, pois esta é a única forma de igualdade pois ele é o seu próprio senhor. Se os indivíduos devem adaptar-se ao conjunto, não há, portanto, governo sobre o povo, mas sim o povo mesmo é o governo. A organização em Conselhos é o único meio pelo qual a humanidade trabalhadora organiza suas atividades vitais, de maneira autogestionária. Enquanto a democracia burguesa, baseada na representatividade, apenas fornece aos indivíduos uma paridade de direitos legais, a democracia dos Conselhos, ao contrário, é uma verdadeira democracia, posto que assegura a subsistência de todos os produtores que colaboram entre si enquanto donos livres e iguais de suas fontes de vida. A organização em Conselhos representa a mais elevada forma de democracia, a verdadeira democracia, pois é a democracia da classe trabalhadora.

Considerações Finais

Há uma convergência na opinião dos dois autores: a democracia burguesa, externada na eleição de deputados para integrarem o Poder Legislativo, não atende aos interesses dos trabalhadores, mesmo que estes estejam representados por seus pares. A luta passou a ser para a universalização do voto, abrangendo uma maior parcela da sociedade (mulheres, menores púberes, analfabetos, presos, militares, etc.), reforçando a democracia política, mas as condições gerais dos trabalhadores piorou ao longo dos anos. Os trabalhadores, geralmente, não se recordam em quem votaram para o deputado ou vereador – o voto para cargo majoritário também costuma ser esquecido, mas, neste caso, a maioria das vezes é por arrependimento – e a grande distância ao centro do poder dificulta manifestações contrárias ao ocupante do poder.9 

Contudo, como avançar para a emancipação da classe trabalhadora continua uma incógnita. Lukács defende, nas Teses de Blum, que as lideranças do partido devem defender a posição de defesa da ditadura democrática, aproveitando o aparato burguês de maneira estratégica, como decisiva para a classe, isto é, que se trata de um inevitável pressuposto para a conquista do poder e para a libertação do proletariado. E, 

Não deve, pois, surgir a opinião de que isto “não é ainda o socialismo”, de que o interesse em manter a produção e em satisfazer as necessidades da classe operária pede uma outra política etc. todos os membros do partido devem compreender que aqui se trata de uma questão fundamental da passagem da revolução burguesa à revolução do proletariado, que o poder da grande propriedade fundiária e do grande capital na Hungria só poderá ser aniquilado com uma tal revolução, e que os restos do feudalismo somente poderão ser extirpados com a eliminação do capitalismo.

Ou seja, a ditadura democrática será parte do processo de ascensão dos trabalhadores ao poder e etapa primordial para conscientização de classe. Uma classe dirigente, como defendida pelo marxismo-leninismo, assumiria essa função. O objetivo a seguir seria a eliminação do capitalismo. Algo parecido com a Carta ao Povo Brasileiros,10 negando uma grande ruptura ou descumprimento de contratos. É quase um salvo conduto as atrozes ações de Stalin: conter e organizar as massas “socialmente” sob vigilância estatal. A forma democrática de fascistização extremamente eficaz para este duplo objetivo: organizar e vigiar.

Já Panneköek considera ser um dilema fundamental o debate entre  democracia ou ditadura, pois o vocábulo democracia política serve apenas para desviar os operários de seu verdadeiro objetivo, a liberdade. Para ele,

O verdadeiro significado dessa afirmação de contraste é que a opinião capitalista se divide entre o capitalismo manter o domínio numa suave democracia ou numa rígida ditadura restritiva. É o velho problema de saber se escravos rebeldes são mantidos submissos melhor pela bondade ou pelo terror. Os escravos, se lhes fosse perguntado, é claro que prefeririam o tratamento gentil ao terror; porém se se deixassem enganar confundindo uma escravidão suave com a liberdade, isso é pernicioso para os propósitos de sua libertação. (2018, pág. 227-228)

Aponta que o real dilema deve ser: ou a organização dos Conselhos, a verdadeira democracia do trabalho, ou a democracia aparente e enganosa de classe média dos direitos formais, uma democracia falaz. Ao expor o dilema, já aponta o caminho a seguir: ao encaminhar a democracia dos conselhos, os trabalhadores transformariam a luta da forma política ao plano econômico. Ou seja, substituem as fórmulas vazias com a ação política revolucionária, que é a tomada dos meios de produção e, conseguir a sua liberdade. Contudo, o que vemos é a ampliação de uma política neoliberal que reduz os direitos fundamentais e penaliza a classe trabalhadora, a qual convive com uma violência crescente: além da uma crise humanitária externada pelo aumento crescente de moradores de rua, Policiais Militares e milicianos alvejam pobres, principalmente negros da periferia das grandes cidades, criminosos ou não, vítimas da pena capital onde o seu algoz é ao mesmo tempo, promotor, juiz e executor da pena de morte, seja no Rio de Janeiro ou Minneapolis, para ficarmos nos dois países que citamos no início. 

Alheios a estes problemas, há uma crescente concentração de renda. Para imporem os seus interesses, a grande burguesia – representada pelos banqueiros, empresários (e os seus CEOs), a grande mídia e as STARTUPs11 – buscam ampliar o controle sobre as “instituições democráticas” adulterando o conceito original de democracia e aplicam a concepção levada a cabo nas revoluções burguesas. Assim, para muitos pseudo-democratas, democracia consiste em respeitar aquilo que ele defende, de maneira submissa, sem questionamento. A máxima do Rei Luís XIV (1638-1715) – o Estado sou eu – é apropriado e adaptado pelos capitalistas: a democracia sou eu. 

1 O AI-5, o mais duro de todos os Atos Institucionais, foi emitido pelo presidente Artur da Costa e Silva em 13/12/1968. Isso resultou na perda de mandatos de parlamentares contrários aos militares, intervenções ordenadas pelo presidente nos municípios e estados e também na suspensão de quaisquer garantias constitucionais que eventualmente resultaram na institucionalização da tortura, comumente usada como instrumento pelo Estado.
2 Hegel apontava este evento como o modelo acabado de revolução (ver: Hegel e o conceito da revolução in Hegel e nós).
3 Gyorgy Lukács (1885-1971) – Filósofo e político Húngaro de origem judaica, ingressou no Partido Comunista Húngaro em 1918. Foi Comissário do Povo durante o efémero governo de Bela Kun, e tornou-se, no pós 2ª Guerra, uma espécie de porta voz do Marxismo intelectual.
4 As Teses de Blum (1928), publicadas sob pseudônimo (Blum) quando Lukács vivia na clandestinidade, constitui sua primeira análise política concreta da situação conjuntural. Derrotadas as teses, e ameaçado de expulsão pelo partido, Lukács afasta-se da política partidária; mas a ideia central desse importante texto – a defesa de uma “ditadura democrática do proletariado e do campesinato” – e da ruptura com o isolamento da classe operária, seria recorrente na obra futura do filósofo húngaro. Lukács fez uma autocrítica, meses depois, em 1929.
5 KPU – Partido Comunista Hungáro.
6 Conde István Bethlen de Bethlen (1874-1946) aristocrata e político hungaro. Serviu como primeiro-ministro de 1921 a 1931. Bethlen foi eleito para o parlamento húngaro como um Liberal em 1901. Mais tarde, ele serviu como representante do novo governo húngaro na Conferência de Paz de Paris em 1919. Naquele ano, o fraco governo centrista húngaro entrou em colapso e logo foi substituído por um comunista República Soviética da Hungria, sob a liderança de Béla Kun. Bethlen voltou rapidamente à Hungria para assumir a liderança do governo anticomunista “branco” baseado em Szeged, junto com o almirante Miklós Horthy.
7 Anton Panneköek, (1873-1960), é um filósofo marxista holandês. Com graduação em Ciências Físicas dedicou a maior parte da sua vida a Astronomia, área em que desenvolveu pesquisas como cientista astrofísico e epistemólogo principalmente, com trabalhos sobre a estrutura galáctica, na astrofísica e na história da astronomia. Lecionou matemática e física em faculdades de Hoorn e Bussum, o que lhe proporcionou grande prestígio no meio acadêmico. Sua real atuação como astrônomo estende-se entre os anos de 1918 e 1946. Neste interim atuou como professor de Astronomia e Matemática na Universidade de Amsterdã e diretor do Instituto e Observatório Astronômico, o qual foi fundado em 1921 pelo próprio pensador e por ele dirigido até a sua aposentadoria, ocorrida durante a Segunda Guerra Mundial, em 1944.
8 Há uma tradução brasileira de 2018, com o título de Conselhos de Trabalhadores (ver referências). 
9  No Brasil, em 1961, o centro do poder foi transferido para o planalto central do país, então um “deserto demográfico” e distante das duas Metrópoles Nacionais (São Paulo e Rio de Janeiro).
10 Texto assinado em junho de 2002, pelo então candidato à presidência da república do Brasi, Luiz Inácio Lula da Silva, assegurando que, em caso de sua vitória, do Partido dos Trabalhadores (PT), respeitaria os contratos nacionais e internacionais. 
11  Startup, termo da língua inglesa sem tradução oficial para a língua portuguesa, é uma “empresa emergente” que tem como objetivo principal desenvolver ou aprimorar um modelo de negócio, preferencialmente escalável, disruptivo e repetível; Destacam-se empresas como UBER e IFOOD.

Saiba Mais

CLAUDIN, F. (2013) A Crise do Movimento Comunista. São paulo: Expressão Popular.

LUKÁCS, G; (1928) Teses de Blum. Dominio PúblicoARX, K; (2005). Crítica da Filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich; (1998). Manifesto do Partido Comunista. Tradução de Álvaro Pina, revisada por José Paulo Netto. 2ª Edição. São Paulo: Cortez.

PANNEKOEK, A; (2018) Os Conselhos dos Trabalhadores; Curitiba/PR:L-DOPA.

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