Nesta parte, Thais Scabio fala sobre suas produções que se alimentam do cotidiano e do conflito das nossas periferias.

Expresso Periférico – “A Melhor Face do Espelho” e “Ipa/Ipá – Efeito e Força” , mostra que sua obra tem uma determinante, uma ressignificância e um resgate do ancestral e do feminino. O primeiro trata da relação da mulher com seu corpo e o outro as vozes e a atuação solidária dessas mulheres periféricas para o enfrentamento de mais uma pandemia em suas vidas. O que te provoca esse olhar sensível, terno e forte sobre esses corpos e qual foi o impacto destes registros? 

Thais Scabio “A Melhor Face do Espelho” foi meu primeiro trabalho como diretora e roteirista, fazia parte do TCC da faculdade em 2003. Engraçado que se você pegar o trabalho de várias mulheres negras que são diretoras, a maioria vai falar sobre o corpo, o cabelo e/ou sua identidade. Li um texto em um jornal, que não me lembro, era independente, e me reconheci muito no texto. Pensei: tenho que trazer esse corpo, falar desse que sempre tive problemas de reconhecer, foi muito bom e na época eu fazia um trabalho sobre sexualidade com jovens e adolescentes e rodou em muitos locais. “Ipa/Ipá – Efeito e Força” uma amiga me ligou e queria saber quem eram as pessoas que estavam distribuindo cestas básicas e ajuda na comunidade durante a pandemia. Aí eu constatei que de Eldorado até Americanópolis todas eram mulheres e mulheres negras, 90% mulheres negras, pensei: tenho que registrar e trazer a luta dessas mulheres. Ao mesmo tempo aconteceu a morte do Guilherme (adolescente assassinado pela polícia militar), a TV mostrando o desespero da mãe e da avó, aquele choro compulsivo, tudo isso provocou uma responsabilidade de como cineasta e na cultura, registrar essas mulheres, essas lideranças da região que enfrentam a pandemia, mas já enfrentavam várias outras situações de violências contra a mulher, de fome e necessidades básicas e agora, estavam se colocando à frente para resolver problemas, não só da pandemia mas como da comunidade como um todo. Senti que era minha obrigação e o audiovisual é uma ferramenta de luta, empoderamento, denúncia e voz. Ipa/Ipá vem como um filme para dizer o que estamos fazendo e quem são essas mulheres, negras, nesse lugar abandonado pelo Poder Público. 

Expresso Periférico – “Cada Estampa uma história” – JAMAC. Em poucos minutos nos transporta por elementos visuais e emocionais para um experimento de sensações de ternura, brasilidade nos movimentos, ancestralidade, transpiração e muita emoção com sua trilha perfeita, de onde vem esse insight criativo que dá um movimento visceral nas estampas? 

Thais Scabio – Foi uma ideia do Giba, meu companheirão. Assim como no JAMAC cada estampa tem sua história, ele achou importante trazer essa linguagem que não são só desenhos, mas a história de vida das pessoas que frequentam o JAMAC ou por onde a Mônica Nador passou. Íamos filmar o desfile que era conclusão do ponto de cultura do JAMAC, o projeto era filmar o desfile das estampas que foram produzidas. Acessamos uma linguagem do audiovisual que se chama fashion film (técnica usada para comunicar/divulgar em vídeos curtos, trabalhos, ideias e conceitos de moda), aí pensamos: vamos fazer um filme do JAMAC, por que não? Por que só as grandes galerias, as altas confecções as utilizam? Ai, como no JAMAC Cinema Digital a gente quis provocar, cinema digital a gente já faz, agora vamos fazer um fashion film do JAMAC Uma das cenas gravamos na Oscar Freire, levamos a estamparia do JAMAC para a Oscar Freire. São várias provocações, os bailarinos são todos da região (pessoal do Arte, do Jardim Luso que fazem um trabalho incrível de dança) e pensamos no corpo e na estampa, num filme publicitário e poético. 

Expresso Periférico – “Barco de Papel” é navegar com delicadeza pela situação de abandono e pelos sonhos das nossas crianças que desde cedo enfrentam a dura realidade da exclusão: – meninos em situação de rua -, transportando para o imaginário de uma vida que jamais deveria figurar no mundo dos sonhos, mas sim dos direitos. É um curta completo, roteirizado com ternura, alegria, cores e magia. Foi escrito há mais de 14 anos, o que muda para os dias atuais? Como ele se materializou e quais os prêmios conquistados?

Thais Scabio – Escrevi assim que me formei na faculdade, eu precisava trabalhar na área do audiovisual e todos os trabalhos que conseguia eram gratuitos, tinha que ficar esperando uma oportunidade paga e eu tinha que sobreviver, então fui trabalhar como educadora social com crianças em situação de rua em Santo Amaro. Todas as experiências na vida são válidas e lá conheci esses meninos em situação de rua, muitas histórias e nasce a inspiração para “Barco de Papel” em homenagem aos meninos que faleceram numa chacina e a única lembrança dos que sobreviveram eram dos sapatos pretos brilhantes. No grupo tinham vários engraxates: guardei por 14 anos os escritos, queria uma animação de papel, porque o papel é uma coisa que se dissolve fácil e os sonhos daqueles meninos se dissolvem muito rápido, sonhos e vida se dissolvendo muito rápido. Eu não conseguia, do jeito que queria, não tinha tecnologia que eu queria em 2003 e nem pessoas. Conheci o Rodrigo Eba!, que era professor de animação do JAMAC na época, super parceiro e profissional, que topou fazer Finalizei e comecei a enviar para vários editais e ele nunca passava. Não parei de mandar e isso foi desde 2010 e em 2017 a SPCINE abriu um edital que tinha ações afirmativas de raça e gênero para a periferia. Isso também é resultado de uma luta, várias conversas com o SPCINE para que fosse concretizado. Com essa política pública tivemos resultados incríveis como o filme “Sem Asas”’ de Renata Martins da Zona Leste, São Matheus do qual também participei como 2ª assistência de direção e que em 2020 conquistou um dos prêmios mais importantes do Brasil, o Grande Prêmio de Cinema Brasileiro, na categoria curta de ficção e foi por políticas públicas, que consegui materializar “Barco de Papel”. Era um filme bem difícil de produzir e fiquei em dúvida Quando escrevi em 2004, a situação era bem diferente, mas infelizmente constato que a situação dos engraxates é um cenário constante da cidade, 

Thais Scabio e Pedro Guilherme (“Peninha”) durante as gravações de “Barco de Papel”.
Foto de Crioulla Oliveira (2018).

“Barco de Papel” participou de muitos festivais e foi selecionado no Brasil e exterior – Argentina, Reino Unido, Alemanha – ele rodou o mundo e ganhou o prêmio de melhor filme de ficção na mostra de Cinema Negro do Mato Grosso – Festival de Cinema Negro. 

Expresso Periférico – No decorrer da sua carreira quais foram suas produções, os avanços e mudanças ocorridas que viabilizaram o protagonismo dos talentos periféricos?

Thais Scabio – Fiz muita produção, produzo desde 2003 na faculdade e em 2005/ 2006 comecei a produzir pela Cavalo Marinho, desde “websérie”, longa, média e curta metragem, não me lembro da quantidade, mas tem muita coisa e é isso, a democratização do audiovisual vem pelo digital. Na periferia nós fazemos cinema digital sim, nós temos a linguagem do cinema, luz, câmera e ação. 

Com o trabalho de ações afirmativas na educação superior também surgiu muita gente boa e importante que faz cinema e tem um trabalho muito legal. 

Estamos em outro cenário, Agora vamos para festivais e vemos gente preta fazendo cinema, aquele monte de filme negro e periférico: muito orgulho. Tem o filme “Periféricu”: ganharam a Mostra de Cinema de Tiradentes em 2020, é um pessoal do Capão, filme LGBTQ+ e todos da periferia. Ficamos todos na mesma casa em Tiradentes porque estava com o Barco de Papel participando. Em um Festival tão elitista e ver eles ganhando foi muito legal, foi um momento especial em minha vida, foi lindo e estávamos torcendo muito.

Existe uma cumplicidade entre o pessoal do audiovisual periférico. Um torce pelo sucesso do outro, não competimos entre nós. Quando um conquista um prêmio é como se todos nós ganhássemos. É uma rede que temos desde os anos 2000 e pouco e que acredito que fortaleceu o cinema periférico, porque um emprestava para o outro equipamento, luzes e daí fomos crescendo juntos. 

Expresso Periférico – O cinema tem uma tarefa educativa dentro dessa nossa sociedade desigual, injusta e que não respeita as diversidades, alcançando um número expressivo de pessoas, como popularizar, viabilizar o acesso a esse instrumento que pode ser de formação e de sensibilização, despertando conhecimento e pertencimento sobre nossas histórias? 

Thais Scabio – Eu sempre levo nas palestras, gosto muito de trabalhar com o infantil, sou educadora também, tenho formação em educação e uma coisa que a gente não discute é o poder do audiovisual na educação, na alfabetização. O audiovisual, todo audiovisual principalmente num país como o nosso com um índice de analfabetismo muito grande, ele é responsável por uma formação educativa, de formação de opinião, de informação para a nossa sociedade. 

Todo filme educa tanto para o bem quanto para mal e eu acho que a partir do momento em que estamos com uma câmera na mão temos que saber da responsabilidade que temos com ela, uma responsabilidade muito grande com as pessoas que estão assistindo, precisamos ter essa consciência, E vejo vários influenciadores, “youtubers” que começaram a entender seu papel e importância no audiovisual, de formação educativa da câmara. 

Um professor meu falava que um médico quando erra, morre uma pessoa e destrói uma família, mas alguém da comunicação quando erra prejudica uma sociedade inteira. É o que vimos nas eleições. Penso muito nessa responsabilidade que eu tenho na mão de educar a população, não só crianças, mas a população em si quando estão vendo meu filme, estão vendo minha opinião, minha posição política, meu olhar que influencia muita gente, temos que nos preocupar com isso. 

Próxima semana 4ª e última parte da nossa entrevista, fechando com sua militância em defesa da profissão, organização com cineastas dos territórios e luta para criação da Casa de Cultura de Cidade Ademar. Uma trajetória com muita disposição para, através das suas lentes, deixar nosso mundo um lugar de pertencimento e acolhimento para todes. Não deixe de ler a primeira e a segunda parte desta entrevista!

Agora, aproveite e assista alguns dos filmes de Thais Scabio disponíveis online:

  • “A festa do Cavalo Nóia ou Como colocamos a câmera na cabeça do Cavalo” (2010). Documentário que registra a Festa do Cavalo Nóia, carnaval fora de época que acontecia na Vila Missionária. Evento criado pelo pessoal da educação e discutia Educação, cultura, meio ambiente, violência, droga. O que é ser nóia? (Direção: Thais Scabio e Gilberto Caetano; Roteiro: Gilberto Caetano)
  • “69” (2007). O filme retrata como é surpreendente a sexualidade aos 69 anos, livre, sem medos e preconceitos. 69 foi uma produção conjunta com idosos da região frequentadores de aula de vôlei para terceira idade. As falas refletem uma oficina de sexualidade. Um filme falando sobre vida e idosos cheios de vida, jogando vôlei, namorando no baile e surpreendendo suas famílias. (Direção: Thais Scabio; Roteiro: Thais Scabio e Gilberto Caetano)

69 from Cavalo Marinho Audiovisual on Vimeo.

  • Caixa D’Água” (2013). Um filme sobre nossa infância. Na periferia toda criança já brincou no tanque ou balde, essas eram invenções das piscinas antes da chegada das piscinas dos CEUS. Os protagonistas são crianças negras, da periferia, brincando ludicamente com seus recursos. Sem os estereótipos da mídia como violência e droga. Discute sobre a realidade de crianças que ficam em casa e os pais saem para trabalhar. (Direção: Thais Scabio e Gilberto Caetano; Roteiro: Gilberto Caetano; Inspirado na fotografia de Jeronimo Vilhena)
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Escrito por Evinha Eugênia

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