Confira a segunda parte da nossa entrevista com Thais Scabio – premiada na V MOSTRA DE CINEMA NEGRO DE MATO GROSSO com o filme Barco de Papel.

Expresso Periférico – O cinema, o áudio visual movimenta uma parte considerável da economia, criando postos de trabalho que atuam “por detrás das câmaras”, que são invisíveis e deslocados para funções braçais (carregam equipamentos, montam cenários, limpam espaços, etc…), porém liderando os processos, criando e dirigindo. Ainda são raros os profissionais negros e periféricos, dá para separar a criatura do criador ou cineasta e militância caminham inseparáveis? 

Thais Scabio – Não tem como separar o audiovisual e entretenimento, acho importante rir e adoro fazer comédia, gosto de ver as pessoas se divertirem, são momentos importantes na periferia. Porém, o audiovisual é nossa ferramenta de lutas e denúncias também. Quantas coisas já denunciamos graças a uma câmera, um celular na mão que salvou vida e denunciou mortes que ficariam escondidas se não fosse a câmara. Meu primeiro trabalho remunerado no audiovisual foi como cinegrafista, a única mulher num programa de TV de futebol e percebi que a caminhada seria árdua.(risos). No JAMAC quando falávamos com os alunos percebia que o pessoal não queria saber desses enfrentamentos, só queriam mexer na câmara e não sonhavam além de ser cinegrafistas. Não pensavam em ser uma direção de fotografia, por exemplo, esse sonho parecia muito distante. Eu gosto de escrever, produzir e dirigir. São áreas de liderança, de organização e nós periféricos não somos impulsionados para a formação de liderança, mas sim para funções braçais, de obediência, subserviência, nossa escola é “Deus ajuda quem cedo madruga”, então pensar em ser liderança em alguma profissão é uma quebra de estereótipo. A classe alta é educada para liderar. Nas oficinas e vivências do JAMAC abordamos de forma assertiva essa questão da liderança e hoje temos um núcleo representativo no meio. Estamos dando a volta e conquistando esse espaço, atualmente temos muitas lideranças periféricas no audiovisual . 

Expresso Periférico – Você, apesar de muito jovem, além de sócia da produtora Cavalo Marinho, tem uma militância na formação de jovens no audiovisual, transformando vidas a partir da arte, e na criação de espaços para organização destes movimentos, conta o que te provoca essa inquietação e como funcionam esses coletivos? 

Thais Scabio – Como salientei frequentava muito Diadema e outros núcleos fora da região, um dia uma liderança do Pantanal na Cidade Júlia, disse para mim: você não tem vergonha de frequentar outros lugares e a nossa região não tem nada? O que você fica fazendo no fórum de cultura de Diadema que conta com diversos equipamentos? Isso mexeu comigo e aí percebi que tinha que devolver o que aprendi na faculdade conseguida com vaga da “ cota racial, era minha obrigação” trazer para a comunidade esse conhecimento que tive, não sei se “ privilégio, por ter apoio da família”, e ter acesso à Universidade, mas também em outros lugares que pude circular (Bibliotecas, teatros, cursos e diversas formações), minha mãe sempre diz que “que devemos transformar, modificar e melhorar o nosso lugar” isso impulsionou meu projeto de formação de jovens. 

Sempre tive essa aproximação com questões e discussões da juventude (sexualidade, educação, artes) e fiz parte da militância, ainda adolescente, para implantação dos Céus e o Alvarenga foi resultado dessa luta, local que dei minha primeira oficina de audiovisual, a partir daí levei a oficina para várias escolas, ocasião em que conheci o JAMAC e a Mônica Nador que, nos convidou para ocupar aquele espaço com o audiovisual. A primeira atividade no JAMAC foi uma exibição com o Mascate, um projeto de Cinema na Rua que iniciamos em 2005. É engraçado que no início do Mascate nos incomodava os falatórios durante as exibições dos filmes, mas aí sentimos que o importante mesmo era o cinema

estar ali e as pessoas se encontrarem e conversarem, Vizinhos que não conversavam há muito tempo, se encontravam no Cinema na Rua e começava essa troca e ainda temos o microfone aberto, momento em que as pessoas falam sobre o filme e também questões da comunidade. Considero esse projeto um movimento de formação da região e ele estimulou a luta pela Casa de Cultura. Desde 2004/2005 entrei nessa luta pela instalação deste equipamento de cultura, ainda não conseguimos, é difícil, é muito difícil chegar na região as políticas públicas, mas nossos jovens carecem desse espaço e eu não desisto de trazer aquelas vozes do Cinema de Rua para o palco da Casa de Cultura. 

Expresso Periférico – Sua luta e mobilização para implantação de um Centro Cultural na Cidade Ademar e Pedreira, tem garantido avanços para a concretização deste espaço. O que o território conquista com sua efetivação e como nossa juventude pode se inserir nessa luta, aglutinando forças e criando essa relação de pertencimento com esse importante instrumento de reunião das diversas formas de expressões artísticas da nossa comunidade? 

Thais Scabio – Meu sonho é ter um modelo do Centro Cultural Vergueiro na nossa região, com espaço de plantio, salas inclusivas, cursos, oficinas, encontros, teatro, cinema e aquela biblioteca gigante que eu adorava ficar lá, lendo, pesquisando e estudando. Muitos jovens não têm acesso a esses instrumentos e isso muda nossa vida, me tornei uma pessoa bem melhor, mais crítica, adquiri uma visão mais coletiva e de diversidades, o mundo fica grande e a cultura proporciona esse engajamento nas lutas sociais, de raça e gênero. As expressões artísticas são importantes para qualquer que seja o caminho que vamos trilhar. Uma enfermeira, um médico, engenheiro, advogado terão mãos mais habilidosas e mentes criativas se tiverem em suas formações as artes (pintura, música, teatro, poesia, trabalhos manuais, etc…) A sociedade precisa de seres criativos, o que a Ditadura fez tirando as expressões artísticas do curriculum escolar tirou das crianças e jovens os instrumentos que davam sentido à escola. Acredito que por isso os Saraus fazem tanto sucesso entre jovens da quebrada, são nos Saraus que encontram sentido para suas escritas, músicas e performances: o ser humano precisa de criatividade e a arte proporciona isso. Sei que um equipamento de cultura não resolve tudo, mas a cultura ferve em nossa região mesmo sem um equipamento público, utilizamos as ruas que, são espaços de convivência e de criação, um território importante que nos diferencia. 

Na próxima semana você vai conhecer os filmes e trabalhos produzidos por Thais Scabio. Acompanhe e não perca sua trajetória de luta por cinema periférico. Para ler a primeira parte desta entrevista, acesse aqui.

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Escrito por Expresso Periférico

One thought on “Uma cineasta da quebrada (Parte 2)”
  1. Estou amando acompanhar essa entrevista. Minha admiração por Thais Scabio só aumenta.
    Sabemos que ser cineasta e periférico não é tarefa fácil nessa nossa sociedade. Agora além disso ainda sendo mulher e negra?!! Aí a missão fica ainda mais difícil. Parabéns Thais. Sucesso.

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