Poesia foi minha primeira armadura, foi com ela e a partir dela que eu aprendi a elaborar meus sentimentos, o medo, a timidez, a insegurança. A poesia foi meu escudo e minha flecha

Daniel  Fagundes, aquele que canta, encanta e tem olhos no coração.

Poeta, músico, cineasta, uma semente brotando palavras que ocupam os livros, os palcos e as telas.

Junto com seus pais – Mônica e Caroço – organizou o Sarau da Roça na cidade de Cajamar, uma casa de cultura popular com ações para juntar as arteiras e os arteiros da região. Na Cooperifa inaugurou o Cinema na Laje e é presença constante no incentivo a jovens escritoras/escritores. 

Suas produções são a expressão das ações que transbordam do lado de cá da ponte, nos trilhos e abre o diálogo, não importa se estamos na zona sul, leste, oeste ou norte. O que não é percebido, é invisível, é promessa, é desconstrução de que as periferias da cidade não plantam o que consomem. A nossa existência só tem sido possível porque produzimos através da arte nosso alimento.

Daniel Fagundes marcou presença  na Roda SESC  de Cinemas Negros  e do Festival Cine MIS com o filme “Olhar de Edite”, sendo o filme mais assistido na programação do 4º. FestCine Pedra Azul, ganhando o troféu “Rota do Lagarto”. As telas do “Festival Primavera Fome de Amor” do Capão Redondo e do  Sarau do Grajaú, ganharam a primeira exibição pública com roda de conversa.

https://youtube.com/watch?v=s3Jp-KUOX8s

“Oxente, Bixiga” levou o melhor roteiro de longa metragem na Mostra de Longas Nacionais do Santos Film Fest – Festival Internacional de Cinema de Santos. Selecionado na 8ª. Edição do Festival Internacional de Cinema de Caruaru na mostra de longas nacionais e no 4º. FestCine Pedra Azul; atravessou oceanos e foi buscar o Prêmio de melhor longa metragem no MIFA – Madeira International Film Awards na Ilha da Madeira – Portugal, e será exibido no Latina Independent Film Festival em Lazio – Itália

“Sobre Pardinhos e Afrocaipiras” saiu quentinho e já foi selecionado para o @ineditbrasil 2022, o maior festival de documentário musical da América Latina. Ainda sobrou um tempinho para, junto com sua companheira Fernanda Vargas, fundar a Caramuja – Pesquisa , memória e audiovisual, um coletivo de produção de mídia com foco na pesquisa, criação artística e audiovisual, no campo da Educação, Memória e Cultura.

O Expresso Periférico, encontrou Daniel Fagundes  numa dessas madrugadas de insônia criativa e, como ele diz, “vamos que o foguete não dá ré”, “garramos” uma prosa pra lá de boa.

Expresso Periférico: Quem é o menino que fazia poemas dentro da Kombi?

Daniel Fagundes: Do ponto de vista formal eu sou Daniel Fagundes, cineasta, educomunicador e poeta. Pai do João, da Flora e do Taiguara, companheiro da Fernanda, mas sou também um menino que nasceu um tanto virado para dentro, a poesia foi minha primeira armadura, foi com ela e a partir dela que eu aprendi a elaborar meus sentimentos, o medo, a timidez, a insegurança: a poesia foi meu escudo e minha flecha. E foi num banco de Kombi nos idos de 1998 que fui aperfeiçoando essa vontade e transformando parte disso em música. 

Expresso Periférico: Escrita, fotografia, audiovisual, a efervescência da produção artística periférica se cruzam, se completam e são ferramentas de conscientização e transformações sociais num momento de abandono e maus tratos sociais que nos atravessam?

Daniel Fagundes: Sim, com certeza eu sou prova viva disso, como falei, foi a poesia minha primeira armadura, mas a arte como um todo é a expressão mais potente da capacidade humana de resistir e refletir as diversas ferramentas que usamos para efetivar nossas querências e daí ensaiar nossas lutas. 

Expresso Periférico: De onde vem tanta inspiração para retratar com tanta delicadeza, beleza e ternura a dureza que é a vida do caboclo urbano que atravessa a cidade para afirmar sua existência e driblar o caos do cotidiano?

Daniel Fagundes: Eu nasci numa família que, apesar de muito pobre financeiramente, era e é muito rica em cultura e em amizades.  Foi das rodas de música e poesia nos quintais da periferia da Zona Sul, com minha família e agregados que muito do que produzo hoje artisticamente surgiu. Bebi na fonte de um grupo de gente que entre trabalho, militância, família, sempre encontrava espaço pra partilhar arte e política, gente muitas vezes migrante, filhos de negros, indígenas e brancos pobres que contestavam o lugar de servidão imposto aos seus. Minha principal influência veio daí, meu trabalho é levar adiante o bastão dos que vieram antes. 

Expresso Periférico: Com 3 livros publicados, “Lágrima terra”, “Flor(e)cimento”, “Contos para descontar o descontentamento com a vida”; os documentários “A primeira Boca, a primeira Casa”, “Oxente, Bixiga”, “O Olhar de Edite”, “Pardinhos e Afrocaipiras” e ainda na produção do curta “Apagamento”, um acervo que dá voz à cultura popular, a memória desse Brasil diverso e desigual poderia ser a semente para um projeto inclusivo de educação social popular,  acolhendo as inquietações da nossa juventude?

Daniel Fagundes: Poderia e é! Minha primeira atuação junto de movimentos organizados foi na escola junto de grêmios estudantis e movimentos populares locais entre M’boi Mirim e Grajaú. Pouca gente sabe, mas minha formação acadêmica é na Pedagogia, sou antes de tudo um educador. Iniciei no audiovisual por meio de projetos sociais ligados ao cinema e vídeo popular, logo, minha luta sempre foi para alinhar minha produção a esse cenário. Então, desde 2006 faço oficinas de audiovisual e literatura em diferentes contextos: de ocupações a escolas públicas, de quilombos a casas de cultura. Eu sempre achei necessário ter a educação como parceira da produção e fruição cultural. 

Expresso Periférico: Falando em inquietações, você sempre foi um corpo e mente em constante movimento e foi assim que organizou e resgatou uma série de produções audiovisuais que poderiam se perder, mas estão disponíveis para acesso numa videoteca popular.  Fale um pouco do conteúdo e como acessar.

Daniel Fagundes: A Videoteca Popular é um projeto que criei junto de Fernando Solidade e Diego Soares em 2007 no contexto do coletivo NCA. Atualmente, toco o projeto com Renan Andrews pela Caramuja. Ao longo desse período, houve muitas mudanças, não só do ponto de vista do grupo gestor, como também da própria tecnologia e forma de disponibilidade do acervo. Como uma iniciativa de disseminação de cinema e vídeo popular periférico, nós começamos fazendo empréstimo de títulos que normalmente não eram encontrados nas vídeo-locadoras da cidade, filmes de coletivos e realizadores independentes de diversas localidades de São Paulo e interior, como também de outros estados. Atualmente, estamos aperfeiçoando uma plataforma online onde os diferentes grupos podem disponibilizar seus trabalhos numa espécie de Netflix da quebrada, qualquer um pode acessar pelo site http://videotecapopular.com.br/ .

Expresso Periférico: A solidão da pandemia, a impossibilidade de juntar pessoas, o corte de recursos públicos, a redução de oportunidades para os atores da periferia, de alguma forma provocou uma imersão criativa e trouxe novidades? Acompanhamos sua caminhada e vimos que os projetos não foram interrompidos e numa gira de idéias os poemas não pararam, o microfone não foi desligado, os roteiros ocuparam o papel e até uma cozinha poética ocupou as lentes da sua câmera. O reconhecimento chegou com diversas produções sendo indicadas para premiações e exibições em festivais de cinema.  Você avalia que, ainda de forma tímida, os artistas desse imenso terreiro que é a periferia estão ocupando a parte que lhes cabe neste latifúndio?

Daniel Fagundes: Olha, resistência é o sobrenome de toda pessoa periférica desse país. A pandemia foi e ainda está sendo terrível para seus moradores de modo geral. Acredito que, de maneira particular, no âmbito da arte e cultura, que já em contextos mais favoráveis não têm apoio e em uma pandemia muito menos. Porém, a pandemia também nos obrigou a fazer algo que a correria dos dias normais não permitia: olhar para o seu próprio trabalho com calma e planejamento. No meu caso particular me permitiu reavaliar a produção toda de 20 anos de luta, pensar novas estratégias, redesenhar perspectivas de futuro. Essa avaliação, acredito eu, foi fundamental para os resultados que estão chegando agora. Nem todo mundo conseguiu ter cabeça e saúde para isso, mas foi a forma que eu encontrei pra passar por esse período, coisa que eu tinha tempo de fazer. Acredito muito que por vezes a quebrada não consegue mais resultados do seu trabalho porque não consegue se organizar a tempo para aproveitar as oportunidades que aparecem. Eu vi na pandemia o tempo que eu precisava pra fazer isso, escrever projetos, formalizar as burocracias do meu cnpj, arrumar os equipamentos, fazer inscrição em festivais, etc. A periferia sempre foi escola de como lidar com crises, nossa vida é por si só uma eterna crise, por isso nossa tragédia não foi ainda pior. Nós, independente de auxílio governamental, fomos nossa própria salvação, cada um ao seu modo: na distribuição de cestas, na comunicação dos procedimentos de saúde, na luta por auxílio emergencial: ficou claro que, como dizia Chico Science “Eu me organizando posso desorganizar”.

Expresso Periférico:  A  fotografia  das suas produções dialogam e resgatam um visual que atravessa nossos olhos. Você fotografa com a alma de um artista que perambula pelas dores, amores e afetos da arte?

Daniel Fagundes: Fico feliz que ache isso, não sei dizer, mas me esforço para mostrar a beleza dos nossos e de seus respectivos territórios, coisas que passamos anos, alheios aos estereótipos da TV e do Cinema branco hegemônico Portanto. é nossa função devolver a autoestima da nossa gente, trazer pra luz sua complexidade e força, suas cores, sabores e saberes por tanto tempo invisibilizados.

Expresso Periférico: Um papo reto para nossos jovens leitores, que por vezes acreditam ser impossível passarinhar pelos seus sonhos. Esperançar é uma urgência?

Daniel Fagundes: Olha, a vida é muito dura e em muitos momentos ela é cruel com as nossas perspectivas de futuro, se há algo que eu posso partilhar com a juventude hoje é que eles não podem desistir sem lutar, quando a tristeza chegar receba ela com a casa arrumada, sirva um café e olhe para trás. Nossos mais velhos batalharam muito para que pudéssemos travar com mais dignidade as lutas de hoje. Denuncie, mas também anuncie, não se ponha na posição de herói, caminhe em bando com a sua coletividade e lembre-se como bem disse o Emicida “tudo que nois tem é nois”, seja pelos seus!

Acompanhe Daniel Fagundes nas redes sociais, assista suas produções no Youtube e boa leitura!

Imagem: Acervo pessoal de Daniel Fagundes

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Escrito por Evinha Eugênia

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