A estrutura racista e machista de nossa sociedade nos faz acreditar que as mulheres não têm o chamado “dom da escrita”. Você concorda com essa ideia?

O processo de escrita, por décadas, foi apresentado na subjetividade humana como um legado destinado aos homens e, homens brancos. 

Quando lançamos nos sites de pesquisa escritoras e escritores brasileiros, não é raro que surjam na primeira linha os nomes de escritores e escritoras brancos. Ao afinar a pesquisa passamos a receber nomes de escritores negros e somente após detalhar ainda mais é que vão surgindo nome de escritoras negras.

A estrutura racista e machista de nossa sociedade nos faz acreditar e, muitas vezes replicar a ideia, de que as mulheres não têm o chamado “dom da escrita”.

E como vamos aprendendo e introjetando esse conceito ao longo de nossas vidas? De onde vem essas ideias? Quem se beneficia com elas? O que vem sendo feito para mudar esse quadro?

Durante muito tempo, na cultura ocidental, a escrita foi considerada como a mais importante forma de se transmitir conhecimento. Pela escrita e com ela, se validavam saberes e com isso se garantia poder.

Era através da escrita que as ideias eram materializadas e reconhecidas como legítimas. Assim, a escrita e, consequentemente a leitura, foram usadas como forma de dominação de povos, de validação de saberes, de classificação de níveis de inteligência.

Seguindo nessa mesma linha de pensamento e ideologia, nós, ocidentais, fomos aprendendo que escrever era papel daqueles chamados pela sociedade como inteligentes. Porém, essa mesma sociedade relacionava inteligência a poder financeiro. Logo, durante anos, fomos convencidos de que escrever era para os ricos. Permitir que um grupo social tivesse mais acesso à leitura e incentivos à escrita foi se tornando uma forma de excluir alguns desses grupos do campo de debates e diálogos nas mais diversas áreas de pesquisa.

Quando pensamos nesse processo de convencimento de gerações e na intencionalidade desse modo de pensar, é possível perceber que a escola seria um ponto estratégico para atingir a classe trabalhadora em massa. Convencida de que não sabia escrever, mesmo quando alfabetizados, não havia também a necessidade de se preocupar com a leitura e assim o ciclo se perpetuava.

A escola, enquanto estrutura, foi, e ainda é, um local de convencimento de que somos incapazes de produzir conhecimento.

Quando pensamos nos níveis escolares responsáveis pela alfabetização da classe trabalhadora encontramos uma escola que não estimula a leitura e a escrita, tampouco a pesquisa ou o prazer pelas várias linguagens artísticas, e tudo isso vai se ampliando para os outros níveis escolares. Chegando ao ponto de vermos nossos adolescentes e jovens sendo vistos e tratados nas escolas como marginais em potencial.

Reforçando o racismo estrutural, quanto mais pretas e pretos são nossas alunas e alunos das redes públicas, mais estimulados são a abandonarem os estudos e se dedicarem somente ao trabalho.

E é assim que ao longo de nossas vidas vamos aprendendo que não sabemos escrever textos que possam gerar reflexões sociais, que não sabemos produzir conhecimento, que não temos capacidade de escrever poesias. É disso que a elite dominante no sistema capitalista quer nos convencer.

No contraponto dessa intenção de apagamentos, podemos assinalar diversas ações, entre elas a organização e intervenção do movimento negro em setores diversos da sociedade brasileira, que associados à outras lutas e coletivos, reforçam a implantação de políticas de cotas, como uma das políticas afirmativas para tentar igualar as condições de acesso. Sabemos que somente isso não garante a equidade, todavia, é um passo importante e necessário.

Nesse mesmo caminho de intervenções que buscam fazer as mudanças a partir da educação, podemos refletir sobre a Lei 10.639/03, que aborda sobre a obrigatoriedade o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas, ressaltando a importância da cultura negra na formação da sociedade brasileira. E, assim como a lei de cotas, por si não garante que os conteúdos trabalhados nas escolas vão ser potentes nesse processo de desconstrução da imagem construída no imaginário coletivo de que a produção de conhecimento boa é aquela disponibilizada pelo homem branco. Todavia, mesmo que a lei em si não baste, é também um caminho importante e necessário.

Como mencionamos em parágrafos anteriores, é um processo, um conjunto de ações que vem desconstruindo, desnaturalizando essa imagem de que a pessoa negra pode ser objeto de estudo, mas que não tem capacidade, potencial, conhecimento necessário para a criação intelectual. E nesse processo podemos apontar a contribuição de muitas autoras que vem cavando espaços, aproveitando brechas, abrindo portas e janelas para essa discussão. São mulheres negras que criam rodas de conversas cada vez mais frequentes e amplas, nas universidades e nas comunidades, para refletirem coletivamente sobre a produção literária feminina negra.

São essas ações que vão, em doses homeopáticas, aliviando dores de alma de mulheres que ainda não conseguem se reconhecer como capazes de escrever porque a escola e a sociedade ainda não sabem valorizar o conhecimento passado por gerações, através da oralidade. Que vão auxiliando mulheres com pouco letramento a reconhecerem que seu conhecimento também é inteligência.

As intervenções literárias, como forma de resistência de mulheres negras, vêm ocupando cada vez mais espaço e auxiliando no processo de fortalecimento dessas mulheres que vão se descobrindo como potência na caminhada individual e coletiva.

Não vou me calar
Nem tampouco caminharei só.
Andarei ao teu lado por onde você pisar.
Confio nas suas passadas e sei que também quer somar.

Minha escrita é forma de expressão
De ação.
Transformação.

Nas minhas letras tem conhecimento ancestral
Pessoal.
Coletivo.
Atemporal.

Não me importo mais se um dia a professora duvidou.
E julgou pela minha pele
Ditou que o texto 
Tão rico em detalhes
Tão forte que prendia a atenção dos ouvintes.
De tamanha criatividade, não fosse meu.

A crítica sem filtro da letrada branca calou minha voz
Congelou meus dedos que ficaram décadas sem escrever
Plantou uma semente perversa de incerteza
Medo, descrédito que ainda persiste em caminhar ao meu lado.

Ela tentou me calar e sei bem que até achou que acertou no alvo.
Mas não.
Não mais.
Porque não caminho só.
E com a minhas Manas que vou por aí andando.
Ressignificando
E transformando o não que a escola me presenteou
Em arma robusta para não permitir que nenhuma outra porta venha se fechar.
E se precisar…
Já me sinto pronta para arrombar.
Deixando espaço aberto para as vão chegar.
Assim como as mais velhas meu caminho preparou.
Não mais…
Não vou me calar.
Zuca Fonseca

Sobre a fotografia que ilustra este texto: A escolha da escadaria do Bixiga para a ação foi uma forma de apoiar a resistência do bairro como território negro, principalmente após ter sido encontrado ali um sítio arqueológico do Quilombo Saracura. A foto feita no Bixiga é uma demonstração e uma prova concreta de que há muitas escritoras negras que contribuem com a literatura brasileira. Com cartazes e livros nas mãos, elas exibiram com orgulho suas escritas e suas obras, compartilhando trocas de experiências, ideias e saberes.

Saiba Mais

Quer ler ou ouvir algumas autoras que falam sobre a escrita tão valiosa das mulheres negras?

No vídeo CONCEIÇÃO EVARISTO | Escrevivência, Conceição Evaristo que atua nas áreas de Literatura e Educação, com ênfase em temas de gênero e etnia, dialoga sobre a potência da escrita que vem através da vivência das pessoas negras. Da capacidade de produção literária e, que por muitas vezes não é reconhecida pela academia como literatura.

No livro: “Pequeno Manual Antirracista”, a autora, filósofa e ativista Djamila Ribeiro nos chama para pensar sobre o racismo, negritude, branquitude, violência racial, cultura, afetos, criando caminhos para o pensar nas mudanças de rotas possíveis e nosso papel nessa mudança social. Esse livro é possível sem encontrado também gratuitamente em áudio no Spotify.Também no Spotify, em “Cada estampa uma história”, nos episódios: “E se a gente olhasse as nossas avós como mulheres históricas” podemos ouvir relatos diversos sobre avós e suas trajetórias dialogando sobre raça, classe e gênero que também nos ajudam a refletir sobre a potência da cultura popular e, como nos ensina a metodologia freiriana, a valorizar as diversas formas de conhecimento.

Imagem: Anna Carolina de Souza Dias/Fridas Comunica e Fotografia/Divulgação

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Escrito por Coletiva de Mulheres

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