Há 30 anos de ser instituído o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, queremos trazer a história de Francia Márquez…

No dia 19 de junho começamos a ler que o povo da Colômbia tinha optado por uma mudança histórica votando no candidato da esquerda, Gustavo Petro, como presidente, mas, especialmente, elegendo Francia Márquez como vice-presidenta.

Este novo governo se enfrenta às oligarquias locais que, por tantos anos, foram os que tomaram as decisões governamentais na Colômbia.  Chega ao longo de muita luta e espera, mesmo à custa de muitos e muitas que já não estão. Chega para dar resposta logo depois do surto social do ano passado, causado pela reforma tributária implementada por Iván Duque, que deixou pelo menos 94 mortos, milhares de feridos, centenas de detidos e processados injustamente e denúncias de violência sexual por parte das Forças de Segurança. Um vento de esperança atravessa as ruas de Colômbia, uma população que quer curar as marcas da violência que a deixou tão fraturada.

O povo elegeu uma mulher negra, ativista pelo meio ambiente, periférica, que lutou e luta contra o racismo ambiental e se posiciona como feminista e antirracista. Como ela mesma se define: “Sou uma mulher negra, pobre, racializada, vítima do conflito armado e que resistiu à política da morte.”

Ela, durante toda a campanha, recuperou e explicou a importância de um antigo conceito africano, o Ubuntu “Sou porque somos”. Sempre se apresentou valorizando o coletivo, a força de sentir a certeza de que eu sou se você for, que nós somos se a natureza for. Ela trouxe uma proposta política preenchida de uma filosofia ancestral  para que as pessoas ressignifiquem o valor da vida.

Na assunção, assistíamos a um palco cheio de mulheres que se abraçavam e consolavam, com uma amorosidade e carinho, que realmente emocionava. Era uma mostra do que ela afirmou: “O feminismo ocorre como produto da luta pela liberdade, lutas que as mulheres negras do mundo também iniciaram.”

Escutar uma mulher que vem para trabalhar pela paz, que uma das suas primeiras palavras logo depois da vitória foi:  “Depois de 214 anos conseguimos um governo do povo, do povo com as mãos calejadas, dos ninguéns e das ninguéns da Colômbia”, nos mostra o câmbio de raiz que se aproxima em nosso irmão país e que, sem dúvida, também anima a esperança de toda nossa América Latina.

Desde a coletiva de mulheres, quando convidamos Maria Paula Botero, uma colombiana que já faz um par de anos que mora em São Paulo, psicóloga e mestre em Ciências pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora de processos migratórios de mulheres e pessoas LGBTI+. Cofundadora da Rede de Mulheres Imigrantes Lésbicas e Bissexuais de São Paulo (Rede MILBI), para nos partilhar seu olhar sobre este momento histórico em seu país de origem.

“Uma das lembranças que tenho da Colômbia é uma Colômbia vivenciada desde o medo. A ansiedade da violência não passa desapercebida em um país no qual os noticiários narravam a guerra de um jeito que mais parecia uma competição de quantas pessoas podiam morrer em um dia só (e de quais formas). 

  A guerra estava presente em todos os cantos da vida das pessoas. Lembro do meu primeiro contato com essa guerra. Foi em uma viagem familiar, princípios da década dos anos 90 (acho). Nessa época, meu irmão começou a fazer parte das forças militares. Durante aquela viagem, fomos parados na estrada por um grupo de uniformizados sem distintivos. Lembro dos meus pais falando algo que, na época, eu não entendia: ‘Por favor, se alguém perguntar, seu irmão é vendedor de roupas’. Realmente eu não entendia nem tinha dimensão da tragédia que era viver na Colômbia. Depois que a gente parou, eles, os sujeitos uniformizados, perguntaram o destino e o que a gente estava fazendo nesse lugar. Sem perceber o perigo e com a inocência de uma criança, empolgada, gritei: ‘Meu irmão também usa esses uniformes!’. Agora eu imagino as caras da família quando me ouviram. No final, as poucas memórias indicam que deixaram ir a gente e nada demais aconteceu (por sorte!). 

Às vezes,  meus pais relembram essa história em uma mistura de medo e riso, alívio e terror. Quando vejo para trás, vejo uma Colômbia na qual todo mundo vivenciou uma história parecida, uma história diferente, mas sempre histórias atreladas à guerra, bem seja em primeira pessoa, ou através do primo que morreu durante um combate, ou o tio médico de alguma guerrilha, ou por algum amigue silenciado pelos ‘paras’, pelo Estado. No final, essa frase que li em algum lugar há muitos anos cobra sentido: ‘Somos os filhos da guerra, uma geração que nunca viveu um dia de paz na Colômbia’.

Hoje, a Colômbia respira um ar diferente. Assinar a paz foi o primeiro caminho para a transformação. Construir um relatório que conta a verdade das vítimas, permite que milhões de vozes que sofreram a guerra na própria pele contem sua versão e suas dores, um relatório que considera, pela primeira vez, o que significa ser mulher e LGBTQIA+ naquele conflito que nos assombra há mais de 50 anos. Hoje, a Colômbia tem a possibilidade de um novo renascimento junto com Francia Márquez e Gustavo Petro. Hoje, a Colômbia decidiu pela primeira vez na história eleger uma vice-presidenta negra e um governo de esquerda. Hoje, a Colômbia quer saber o que é respirar em paz. E vamos nesse caminho.”

No dia 7 de agosto, Francia Márquez se tornou a primeira vice-presidente afro-colombiana. E com esse passo se reafirma o caminho de luta que desde há  tantos anos vem recorrendo às mulheres negras latinas e caribenhas para o fim do racismo e do machismo estrutural. 

Imagem: Marie Claire / Instagram

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Escrito por Coletiva de Mulheres

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