Recordo que, na adolescência, nunca me foi dada a oportunidade de pensar na possibilidade em ingressar em Ensino Superior…

Na matéria desse mês vamos dialogar sobre as dificuldades e os prazeres relacionados ao acesso à educação acadêmica para a mulher preta, para jovens periféricos.

As informações fragmentadas sobre as portas de entrada e políticas públicas disponíveis acabam por tornar esse acesso ainda mais tortuoso e cheio de obstáculos e, dessa forma, envoltos nesse mar de falta de oportunidade. Quando chegam à academia, vem a outra batalha, que é a de nela permanecer.

Dialogar com nossos jovens estudantes da rede pública se faz necessário o tempo todo para que possam tomar ciência de seus direitos e das alternativas para entrar na universidade.

Orientá-los sobre a preparação para o vestibular em cursinhos populares como Educafro, Cursinho Popular Construção, dialogar efetivamente sobre o Estatuto da Igualdade Racial com leituras, rodas de conversa e debates sobre o tema, pode ajudá-los na difícil tarefa de se manter dentro dos espaços universitários após conseguirem ingressar. A luta contra o racismo e desvalorização do potencial e do conhecimento desses jovens vai permanecer após entrarem nas universidades, desmotivando-os e tentado excluí-los novamente e, nesses espaços, eles conseguem criar mecanismos para a resistência emocional e cognitiva, individual e coletiva.

Gabriela Francisco de Oliveira é nossa convidada para a escrita do artigo na Coletiva de Mulheres esse mês.

Pós-graduanda em Direitos Humanos e Lutas Sociais na Universidade Federal de São Paulo e graduada em Ciências Sociais pela Universidade Nove de Julho. Atua como professora de Sociologia na rede estadual de São Paulo, mediadora em debates sobre a mulher na música, participa de rodas de conversa sobre a mulher e a academia, é uma das idealizadoras da Coletiva União Deixa Ela Tocar!

Mulher, preta, periférica e o direito de estudar.

“Em uma das três escolas que lecionei neste ano de 2021, iniciou-se uma discussão sobre a falta de respeito dos alunos ao rasgarem, na porta das escolas, as apostilas e cadernos no último dia de aula. Me fez refletir o quanto esta ação é simbólica, não somente no rito de passagem que é a finalização de um ciclo escolar, mas também, o quanto que a educação formal é violenta principalmente para uma camada da população. Sobre a atitude deles, posso dizer que acho muito válido e devemos repensar a questão da violência que passamos, ao tentarmos adentrar no meio acadêmico, inclusive, e como ter acesso a este conhecimento que deveria ser um direito garantido a todos os humanos é, na verdade, uma estrutura muito excludente.

Relembrando a minha trajetória, eu, aluna de escola pública, recordo que, na adolescência, nunca me foi  dada a oportunidade de pensar na possibilidade de ingressar no Ensino Superior, muito menos sendo ele público.  Na verdade, pelo contrário. Lembro de uma situação que me marcou por muitos anos. Um professor de Português conversava comigo sobre os cursos e projetos que tinham depois do Ensino Médio. Lembro que, em meados de 2003, web designer era a profissão da vez e havia vários cursos profissionalizantes. A promessa da época era que a remuneração de um profissional fosse  a partir de 1200 reais.  Quando mencionei ao meu professor que faria tal curso e qual era a base salarial desse profissional, ele me respondeu que eu não ganharia isso em meu primeiro emprego. Pelo contrário, não ultrapassaria um salário mínimo da época, que era em torno de 400 reais. Não sei qual foi o intuito dele, mas, isto me marcou muito, não fiz esse curso, fiz um outro de Corel Drawn (um editor de imagem) ao qual não me adaptei. Ingressei no mercado de trabalho com a profissão de operadora de telemarketing. A frase desse professor não saiu da minha cabeça por 10 anos da minha vida profissional, pois só consegui ganhar mais de mil reais 10 anos depois. Hoje eu estou com 35 anos, sou professora de Sociologia na rede estadual e fico muito atenta com a mensagem que transmito aos meus alunos. Afinal, reconheço a minha história em cada um deles e me preocupo com as violências que reproduzimos.

 Enquanto cursava licenciatura em Ciências Sociais na faculdade, tive momentos de análise intensa e até mesmo dolorosa quando percebo a estrutura racista e classista que o ensino formal reproduz.

Ao completar 18 anos, fiz uma prova, acredito ser o ENEM, não tive muita orientação na ocasião do que se tratava e qual a finalidade dessa avaliação. Enfim, fiz a prova e recebi a proposta para cursar História em uma faculdade privada da qual não me recordo o nome, como bolsista de 50%. Meus pais não tinham condições de custear, mesmo que a metade (afinal é mensalidade, condução, uma possível alimentação, livros e afins) e eu ainda não trabalhava de forma remunerada. Foi a minha primeira tristeza na falta de acesso à educação. Logo depois, aos 19 anos, comecei a trabalhar em um call center que tinha parceria com a Anhembi Morumbi. No espaço da empresa, ofertavam o ensino Incompany, ou seja, não estudaríamos no campus da faculdade, pois quem tem condições de pagar por essa universidade é de outro poder aquisitivo, mas os professores lecionavam em uma sala cedida pela empresa. O curso era tecnólogo de gestão em marketing e acredito que foram em torno de 3 turmas até o fim da parceria. Aprendi muito no curso. Finalizei, entretanto, ficaram duas disciplinas pendentes e com a falta de verba para pagá-las elas foram esquecidas e, 5 anos depois, o prazo para concluí-las expirou e eu não pude obter o certificado. Muitas pessoas em meu entorno disseram que foram 2 anos e meio perdidos, que o valor de 250 reais de mensalidade (lembrando que o salário mínimo não excedia a 500 reais) foi desperdiçado. Mas nenhum conhecimento é jogado fora e hoje, quando penso sociologicamente sobre o meio corporativo, acredito fazer uma análise mais profunda devido a esta formação.

Minha segunda tentativa de ingressar no Ensino Superior foi em 2013, quando uma ONG que estendeu um cartaz ali na praça da Joaniza dizia que tinha parceria com o FIES e com as faculdades e pagaria meu financiamento estudantil, posterior à conclusão.  Na época não entendia ao certo como era o programa do FIES e iniciei na faculdade UNIESP (que era a junção de várias pequenas faculdades privadas), localizada no centro de São Paulo, e escolhi o curso de História. Entreguei a documentação para a faculdade e meu Fies foi protocolado, já que o governo ainda não havia liberado para este curso. Iniciei com uma turma que já estavam há um semestre junto e foi muito rico esse contato. Havia muitas pessoas mais velhas, havia militantes de grupos diversos. Fiz amizade com a Erlani, uma mulher de seus 50 anos aproximadamente e militante da UNEGRO, foi a primeira pessoa que me alertou da importância em nós negros conhecermos a nossa história e falarmos sobre negritude com propriedade em todos os espaços. Passou um semestre todo, consegui com muito esforço acompanhar a turma. A faculdade solicitou que regularizássemos a situação do FIES e no atendimento da UNIESP fui informada que o governo ainda não havia liberado o financiamento para alguns cursos, sendo o de História um deles, ou seja, se eu quisesse continuar a estudar, teria que pagar as mensalidades de 900 reais do semestre anterior e as próximas. Meu mundo desmoronou, não tinha condições de arcar com essas despesas. Trabalhava como operadora de telemarketing ainda,  ganhava mais que 1000 reais já, mas não tinha como bancar um aluguel, minhas contas e mais essas despesas. Eu estava amando cursar História. Em apenas um semestre a minha mente havia se expandido tanto! Tive contato com tantos intelectuais, tantas linhas de pensamento e aquela experiência de estar em um ambiente acadêmico, um espaço estudantil, era incrível, apesar de cansativo. Aquele saber estava mais uma vez me sendo negado. 

Fui no tribunal de pequenas causas em Santo Amaro. Quem já acessou esses serviços sabe que tem que madrugar para pegar a senha de atendimento, enfim, todo o processo burocrático e difícil que é o atendimento em serviços públicos.  E a advogada me orientou a não dar continuidade já que não havia restrição ao meu nome quanto a esta suposta dívida com a faculdade e mesmo sendo erro deles. Orientou também que, caso eu mexesse nisso, poderia ter um retorno negativo para mim e mais uma vez vi meu acesso negado ao Ensino Superior. Lembro que minha tristeza durou meses.

Por fim, minha terceira tentativa de realizar e concluir o Ensino Superior foi em 2016. Iniciei o curso de Ciência Sociais pela universidade Nove de Julho. Escolhi este curso pois havia tido contato com a Sociologia na UNIESP e fiquei fascinada. Umas colegas me aconselharam outras faculdades privadas em  que havia também bacharelado, mas para conseguir conciliar a distância do trabalho e o valor das mensalidades, me decidi por ficar na Uninove mesmo. Esses três anos de curso abriu a minha mente sobre meus direitos enquanto cidadã, reforçou meu posicionamento enquanto mulher negra e periférica. Claro que para ter contato com os diversos intelectuais negros, principalmente as brasileiras e brasileiros, tive que fazer minhas buscas por fora, mas o questionamento foi despertado. Fiquei desempregada duas vezes e me vi desesperada pois tinha que completar essa etapa. Enfim, aos 32 anos, concluí o curso. Fui a primeira pessoa por parte da família do meu pai a me formar no Ensino Superior e, quanto à família da minha mãe, a primeira a me formar e exercer de fato a profissão.  Hoje estou atuando na rede estadual de São Paulo, fazendo pós-graduação pela Unifesp e me reconheço em cada aluno que tenho.  Busco sempre romper com essas violências que a estrutura racista, machista e classista nos submete e procuro passar o cenário da realidade para meus alunos, mas nunca desacreditá-los de que podem ter acessos e garantir seus direitos.

A violência simbólica é difícil de ser identificada, de ser reconhecida para normalizarmos, naturalizamos. Quando traçamos um perfil, seja ele racial, econômico, de gênero, territorial e afins, e classificamos quem deve ter acesso a direitos, a educação, a oportunidades,  quem são os grupos detentores do saber, excluímos todos os outros. E, analisando minha vida acadêmica, foi isso que me ocorreu por diversas vezes, quando determinaram que não teria chances, por exemplo, de ter um salário digno tão cedo, quando determinaram quem teria fácil acesso a informação de políticas públicas para o Ensino Superior, quem teria condição de receber um financiamento estudantil, quem seriam os intelectuais considerados clássicos e fundamentais a serem estudados na academia e por aí vai. Tiramos o direito dos negros, dos pobres, dos periféricos, das mulheres, das mães solo de terem voz política, de serem produtoras e produtores de conhecimento, de se qualificarem para terem oportunidade justa de disputa.”

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Escrito por Coletiva de Mulheres

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