São mulheres com uma sobrecarga impossível de mensurar, adoecendo emocionalmente….

Assim como o resto do mundo, o Brasil vem passando por um momento único na história, cheio de desafios em decorrência de uma pandemia que parece não ter fim. As ações de combate e enfrentamento são diversas entre as diferentes nações, todavia é visível que os governos que investiram em pesquisas, vacina, informações verdadeiras sobre os fatos e em políticas públicas estão passando por esse processo com um número menor de casos de infecção, de mortes e miséria.

Um fato já apresentado em outras edições desse jornal e nas mídias de modo geral é que, nesse período pandêmico, o índice de violência contra a mulher ampliou, por motivos diversos, como o de ficar mais tempo confinada com seus agressores. Além da violência contra a mulher, os índices gerais de violência doméstica contra crianças, adolescentes e idosos também subiram. 

É possível pensar que, para além do que é constatável e diagnosticado com a COVID e a Gripe H3N2, a população está adoecendo de um modo muito silencioso e com consequências graves para o futuro, pois não se dialoga sobre esse processo pelo qual estamos passando. São crianças acumulando responsabilidades com demandas familiares que não seriam de seu pertencimento. Jovens que, ao vivenciarem um processo de educação excludente, evadiram das escolas e dificilmente vão retornar, permanecendo fora da escola e do mercado de trabalho, sendo cooptados pelo tráfico. São homens mergulhando no alcoolismo como um mecanismo de fuga do desgosto de não darem conta de suprir suas necessidades básicas. São idosas e idosos em situação de abandono, vulnerabilidade e solidão. São mulheres com uma sobrecarga impossível de mensurar, adoecendo emocionalmente ao verem as suas bases desmoronando, sem conseguir compreender porque tudo isso está acontecendo, já que estão se esforçando tanto para manter suas famílias “no eixo”, carregando uma culpa imensa como se a responsabilidade do desequilíbrio fosse delas e não de governos incapazes de dar solução para tantos problemas sociais.

São mulheres diversas. Variadas idades, orientação sexual, formação escolar e cultural, crenças religiosas, nacionalidades, etnias que estão buscando soluções para lidar com a ociosidade dos mais jovens e a maneira como eles estão preenchendo esses vazios nas periferias da cidade, que não oferece espaços de cultura e lazer para que possam extravasar, usar tanta energia de forma criativa e produtiva. Essas mulheres se desdobram para cuidar dos que estão com alguma enfermidade, muitas vezes sem o suporte adequado do SUS que está com seu atendimento de rotina reduzido por causa da pandemia e do adoecimento de seus funcionários. São mulheres e famílias nômades, que mudam de uma casa para outra a cada dois meses, por vezes casas cedidas por parentes ou amigos por algum tempo, até que se estruturem, ou num valor mais barato de aluguel para que não fiquem em situação de rua. Sem mencionar, é claro, as famílias que não conseguiram driblar tudo isso e estão sim, morando nas ruas da cidade, expostas a toda forma de violência física, moral, emocional.

Mesmo com a decisão judicial do Supremo Tribunal Federal (STF) que impede a remoção forçada de famílias na pandemia, os despejos cresceram nos dois últimos anos. De acordo com dados apontados pelo coletivo Despejo Zero, no período de agosto de 2020 a novembro de 2021, cerca de 23 mil famílias foram despejadas no Brasil. Sem políticas públicas para atender essas demandas, a população permanece lutando pela vida como pode. Os abrigos existentes na cidade de São Paulo, que seriam uma solução paliativa e temporária, não dão conta de atender o número de desabrigados e estão dispostos numa proporção muito desigual com os dados reais. A cidade tem apenas 18 centros de acolhida exclusivos para mulheres, totalizando 986 vagas, das quais 50 são para gestantes, mães e bebês. Já para homens existem 11.692 vagas.

Como lidar com tal realidade e não adoecer, não ser consumida por vícios que possam levar essas pessoas, por alguns breves instantes, para outras realidades?

A renda mensal das mulheres diminuiu muito, a rede de apoio que muitas vezes é formada por amigas e parentes ficou distante e com isso vem a sobrecarga e o adoecimento emocional, invisível e, por isso, tratado como demanda de ordem pessoal, quando deveria ser analisado como saúde pública, como uma questão social.

Para potencializar a exposição ao risco biológico e psíquico e a aumento do índice de vulnerabilidade, o governo federal de Jair Messias, que através de seus discursos e atitudes machistas, desde o início do seu mandato, vem deixando claro como vê a mulher na sociedade, não usou de maneira adequada os recursos disponíveis para políticas públicas para a mulher. Essa falta de investimento do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de responsabilidade da senhora Damares Alves, gerou um corte de 33% em 2022 porque foi entendido que, se não foi usado o recurso, é porque não há necessidade, podendo ser direcionado para orçamento anual de outro setor. Segundo dados do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em 2020 foram gastos apenas 44% do orçamento previsto, sendo somente 30% no que diz respeito à proteção das mulheres.

A desigualdade de gênero e a violência contra a mulher são práticas tão marcantes e constantes em nossa sociedade que são encaradas por muitas pessoas como algo comum, está naturalizado. Olhar para a dor de uma mulher e não conseguir compreender, validar a existência dessa dor também está sendo naturalizado. Quantas vezes, ao ouvir de uma mulher que está sentindo-se cansada e com dor na alma, nós não falamos: “Calma. Logo, logo tudo isso vai passar.” Como se dependêssemos somente da ação do tempo para aliviar sofrimentos sociais. Não! Não vai passar se não for cuidado, se não receber o mesmo tratamento que outras doenças, se não houver políticas de combate à miséria, não vai passar.

As mulheres, em tempos de pandemia, crise econômica, de descaso social estão sendo massacradas e se perdendo  em suas dores. E dentro desse quadro geral das doenças que não se vê, precisamos fazer um recorte para uma análise mais profunda sobre os efeitos na população negra. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde – OMS, cerca de 23 milhões de brasileiros possuem diagnóstico de distúrbios mentais provocados por diversos fatores, entre eles os sociais, e a população negra têm 45% a mais de chances para cometer suicídio por conta desses distúrbios mentais diversos.

Quando corremos os olhos por essa informação, nos conscientizamos que vivemos numa país capitalista, que exclui a população mais pobre de toda forma de garantia de direitos que permitam acessar saúde e educação de qualidade, lazer e cultura, além do direito básico à moradia e alimentação saudável. Fazendo essa leitura, tomamos a consciência que também vivemos sob um racismo destrutível que elimina toda e qualquer forma de condições iguais para as competições para emprego e desenvolvimento pessoal e aliamos tudo isso ao machismo estrutural que também faz base de nossa sociedade. Fica fácil  ver em qual posição na pirâmide social está a mulher negra e porque ela está em maior vulnerabilidade, necessitando assim de políticas públicas específicas para que tenha o direito à saúde física e mental e o direito à vida garantidos.

Além do que os olhos podem ver, é a dor que essas mulheres carregam e atravessam a nossa existência, quando paralisamos diante do desespero da mãe que carrega nos braços o corpo inerte do seu filho preto, eliminado por um sistema que oprime, reprime e nega a presença da mulher preta, com o intuito sórdido de apagar os afetos e as memórias.

Sim, são os sistemas. Sistema político, sistema econômico, sistema de poder, sistema desumano que se propõe a nos embrutecer, que nos tira a ternura, que nos rouba a esperança de “ser” quando inunda nossas vidas com estatísticas, índices e números onde nossos corpos pretos aparecem em evidência para justificar as desgraças dessa sociedade desigual, violenta e desumanizada. Mas nós não desistimos de sermos protagonistas, não cansamos, respiramos liberdade para nós e para os que estão chegando.

Que eles não tenham o curriculum engavetado ou descartado, como queiram. Que a vaga na universidade não seja adiada para o próximo, o próximo e o próximo ano. Que as mães possam descansar, tendo a certeza que seus filhos retornarão para casa. Que as mulheres sejam respeitadas em suas escolhas e não sejam mortas por terem rompido com as normativas postas e que interessam somente ao opressor. Que encontre rostos pretos desfilando seus talentos e habilidades, onde quer que estejam. Que a constatação de que morremos mais e comemos menos deixe de ser a naturalização da violência eternizada sobre nossos corpos pretos que homens brancos tocam, recolhem e deixam estéreis, desejos para se perpetuar no poder e nos condenar a escuridão dos porões da grande Casa da Solidão.

Que o cárcere deixe de ser nossa tormenta, a ameaça de prisão das nossas ideias e a negociação da liberdade com migalhas, reduzindo nossas vidas à servidão, julgando, condenando e absolvendo um corpo insurgente e indisciplinado diante de uma sociedade racista, heteronormativa, indecente e deitada nos lençóis de seda de seus privilégios. Que aquele desejo de enamorar a vida seja presente, aqui e agora.

Que enfim, esses atravessamentos nos transformem por dentro, nos empurrem a viver teimosamente, intensamente como única possibilidade de não morrer, porque somos MULHERES DE VERDADE e as palavras rodeiam nossa existência preta que é convulsão e revolução.

A coletividade nos impulsiona e a decência de não deixarmos ninguém para trás nos levará, mesmo que a batalha seja longa e árdua, ao mundo que desenhamos para todes.

Mulheres de Verdade
Choram, sofrem, riem e gritam
Sentem dor, tesão, gozam, se alegram e lutam
Engordam, emagrecem, padecem e na luta crescem, se agigantam e se for preciso se recolhem
Se envergonham, se escondem diante de delitos que não são seus
São julgadas, condenadas, absolvidas e
Desejadas
Mulheres de verdade são incomparáveis, são únicas
Sentem vergonha e são sem vergonhas
Dançam no escuro e encontram luz para seus movimentos
Rodopiam em cirandas e se lançam em voos e pousos
Mulheres de verdade têm encontros marcados todos os dias
Com as paredes da memória, com a liberdade, com a subversão
Mulheres de verdade se juntam para sonhar, resistir e festejar a vida.
(Evinha Eugênia)

Os comitês, entidades, a população de modo geral precisa se organizar para defender a vida plena para todas as pessoas, em especial e prioritariamente para os mais vulneráveis. Precisamos fazer ações de denúncia, enfrentamento, repúdio para que o poder público faça valer as diretrizes dos Direitos Humanos e garantir vida digna para todas as pessoas, independentemente de sua classe social, sexualidade, etnia, religião.

Imagem: Canva

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Escrito por Coletiva de Mulheres

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