A história  de uma manifestação cultural que, ao longo de décadas, se consolidou como referência pelas mãos  de um dos mais importantes mestres de capoeira da cidade de São Paulo. Por Mario Alves – Mestre Chocolate

A história do Brasil é marcada pela sujeição de seres humanos à condição de escravos para garantir vultosos lucros e reproduzir processos econômicos, dentro da lógica capitalista que, no início do século XVI, estava em pleno processo de formação. 

Para garantir mão de obra à nascente indústria da cana de açúcar, aproximadamente 4,8 milhões de pessoas foram extraídas da África e transportadas nas piores condições para serem sujeitas ao trabalho escravo no que pode ser considerado o maior genocídio perpetrado sobre povos que foram sacados de seus territórios e transformados em mercadorias.

Na travessia do Atlântico, nas  embarcações portuguesas, 670 mil morreram!

Sem dúvida, é uma história de tragédias, descasos, preconceitos e muita dor que foi imposta a  milhões de vidas onde, ao escravo, a condição de humano era negada. Situação que até os dias atuais se reflete na forma com que a população negra é tratada no Brasil.

A transição do regime escravocrata para o liberto deu continuidade à espoliação e a de parte significativa da população brasileira que não foi acolhida pelo Estado, pela marginalização. A Igreja e os senhores de escravos foram eximidos   de responsabilidade. Por outro lado, a resistência sempre esteve presente na sociedade escravocrata brasileira: rebeliões, fugas, organização em quilombos e a manutenção da cultura, da religiosidade e resistência com as próprias mãos e pés, é parte desse processo onde negras e negros cerraram fileiras contra a minoria branca escravocrata.

Nesse contexto de contínuo enfrentamento e resistência, forja-se uma forma de luta que, por conta da proibição imposta pelo senhor de engenho, cujos movimentos de combate, que viriam a formar a capoeira, foram associados à música e à dança. É, portanto, uma expressão cultural que durante centenas de anos foi transmitida e preservada oralmente na medida que ao escravo era proibido ter acesso ao letramento.

A origem do termo capoeira é controverso e pode ser associado a um cesto onde escravos transportavam mercadorias para os centros comerciais e, no trajeto, a prática da dança e luta foi associada ao cesto.   

No início do Brasil República, a prática da capoeira foi proibida sob pena de prisão e castigos mais severos aos mestres capoeiristas.

Apenas em 1935 a capoeira saiu da ilegalidade e em 2014 a UNESCO a reconheceu  como Patrimônio Cultural da Humanidade.

Mestre Zumbi: rodas de Capoeira na Praça do Jardim Míriam.

O Jardim Miriam é um bairro periférico onde a população é constituída predominantemente de pretas e pretos, trabalhadoras e trabalhadores que a partir da década de 1950 chegaram ao território como mão de obra vinda do Nordeste e interior de Minas Gerais para trabalhar na nascente indústria que estava sendo implantada na cidade de São Paulo. Na sua maioria, eram trabalhadores rurais que foram se adequando ao processo produtivo como mão de obra barata e formaram um bairro que hoje soma aproximadamente 120 mil pessoas.

É nesse território, na Praça do Jardim Miriam, que o Mestre Zumbi, ao longo das últimas décadas, vem se consolidando com um trabalho que é referência entre os capoeiristas da cidade de São Paulo. É na feira do Jardim Miriam,  uma das mais tradicionais da Zona Sul de Sao Paulo, que, uma vez por mês aos domingos, mestres e aprendizes apresentam uma das mais importantes rodas de capoeiras da cidade. Além de ser cultura viva, é manifestação da resistência e, também, uma referência para uma região desprovida de espaços para as manifestações artísticas e culturais do povo, que tem na Praça do Jardim Miriam  uma verdadeira ação cultural, com protagonismo de mestres que demonstram através da capoeira que a cultura está viva e incorpora crianças, mulheres e idosos, numa verdadeira manifestação festiva e profundamente coletiva que encanta os olhos e demonstra a riqueza e a beleza da Cultura Negra forjada nos porões e também nos quilombos.

Casa de Cultura: Capoeira e Cultura Santamarense

A história da capoeira, sempre tão cheia de resistência, força e persistência, se mantém na região da Cidade Ademar (Jardim Miriam) através da Associação de Capoeira Santamarense na figura do seu fundador e presidente Mestre Zumbi .

Em  uma cronologia rápida, em 1978 Mestre Zumbi montou sua primeira academia na Casa Palma. De 1979 até 1988 esteve em frente à Feira Livre e esteve ativo até 1998 com suas academias trazendo para a região a cultura e a resistência do oprimido contra as forças do opressor que sempre trataram a capoeira com preconceito, principalmente por ser uma cultura vinda da classe menos favorecida e preta que nasceu nas senzalas e se perpetuou nas periferias .

As rodas na região começaram em 1981, na academia de um aluno do Mestre Zumbi chamado Pedro Abreu, que foi levada para as ruas e, também, agregando assim a população e socializando com a comunidade.

Em 2014 foi inaugurada na av. Cupecê, a qual se estende até hoje, suas atividades que trazem à comunidade, em geral, a cultura, o esporte e as várias vertentes desta manifestação cultural que nos ensina a resistir e lutar, dia a dia, pela sobrevivência dos nossos. 

A Casa de Cultura e Capoeira Santamarense (Associação de Capoeira Santamarense), fundada em 23 de fevereiro de 1973 por José dos Santos Pinto ( Mestre Zumbi ), já teve sua sede localizada nos Bairros da Saúde, São José e Jardim Miriam, a qual voltou em 2014 e está em atividade atualmente, tendo também filiais em Talca e Santiago no Chile. A academia, na figura do Mestre Zumbi, foi e é representada por todo o mundo, levando a cultura afro-brasileira e suas vertentes para uma socialização, conhecimento, resistência e educação, sem distinção de gênero ou idade, chegando a ter mais de 600 integrantes entre alunos e formados. Atualmente situada na periferia de São Paulo, mais precisamente na comunidade do Jardim Miriam e região (Cidade Ademar, Jardim Luso, Vila Clara…), tem atividades que recebem todos os públicos nas aulas de condicionamento físico, capoeira, dança afro com integrantes do grupo Horoya de Senegal, muay thai e jiu jitsu (estas, em parceria com o Centro de Treinamento Sapo Team),  aulas de percussão e dança, atuando também no auxilio de cerca de 20 familias desde o começo da pandemia, recolhendo e distribuindo cestas básicas e roupas . 

A Casa tem o intuito de alcançar o maior número de pessoas para que, dentro da comunidade, todos consigam realizar as atividades socioculturais, promovendo a integração de jovens e adultos para trabalhar em equipe e entender o ponto de vista um do outro. Dar continuidade na cultura através do jogo da capoeira e demais manifestações de influência afro-brasileira e africana, contribuindo desta forma com o desenvolvimento e inclusão a nível social, físico, mental e cultural, dentro e fora do país.

Imagem: Associação de Capoeira Santamarense

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Escrito por Expresso Periférico

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