Trabalhadoras da área da saúde nos apontam alguns elementos para refletir nas pautas em prol de promoção de direitos voltados para mulheres. Por Camila Rodrigues e Elizangela Neubaner*

Durante este tempo de acompanhamento de diversas situações de violência contra a mulher na região de Cidade Ademar e Santo Amaro, constatamos o quanto ainda precisamos avançar, não somente no atendimento às mulheres vítimas, e que infelizmente ainda temos que avançar muito neste sentido, mas especialmente no que podemos chamar de prevenção.

Muitas vezes, entendemos a prevenção da violência apenas como o não agravamento e interrupção de um ciclo que está começando ou que é recorrente.  E de fato é fundamental para a diminuição da violência doméstica e do feminicídio que sejam discutidos os vários sinais e mecanismos de como os diferentes tipos de violência operam, com o objetivo de dar subsídios para a identificação dessa violência, pois em muitos casos a mulher acaba não se reconhecendo como vítima.

Mas há de se falar também da prevenção na perspectiva de desconstrução do olhar sobre as mulheres, aqui vale ressaltar todas as pesquisas e escritos sobre o patriarcado e suas consequências danosas em nossa sociedade.

Um dos danos mais antigos é o do controle da sexualidade. Mais do que controle, muitas vezes é uma tentativa de usurpar por completo o direito ao exercício da sexualidade ou ainda um desejo perverso de eliminar de vez essa possibilidade da vida das mulheres. Quase que eliminar de forma biológica. Ainda nesta lógica, pensando que as mulheres são vistas e colocadas muitas vezes como objeto, logo sem desejo sexual, logo sem afeto, logo sem autonomia, logo sem existir.

E dessa situação do “não existir”, muitas mulheres passam “a existir” somente a partir do momento que conseguem fazer o enfrentamento da violência ou que, já num processo final, perdem a vida paradoxalmente na busca de tê-la de fato. Busca de ter a sua própria vida, de mais uma chance de não ser apenas mais um número nas estatísticas, ou mais um número de processo policial ou ainda mais uma mulher na multidão de acusações julgadoras ou simplesmente naturalizadas. 

E não podemos deixar de racializar a questão e pensar na objetificação do corpo e existir das mulheres negras, que historicamente foram escravizadas e violentadas sexualmente durante a colonização brasileira. Seus corpos dilacerados, seus desejos amordaçados, seus afetos despidos e suas ideias repreendidas. E ainda hoje, ao olhar para a mulher negra, constatamos que é a que mais sofre violência doméstica, é a que mais sofre violência do Estado, quando vive em extrema pobreza, quando faz uso de álcool e outras drogas, e ainda, é a que sofre a dor que rasga, quando seus filhos e filhas são assassinados, quando seus filhos e filhas são retirados da vida. Imaginemos o quanto de vida é despontecializada aí.

É preciso urgentemente que façamos o movimento contrário, que busquemos formas de potencializar a vida dessas mulheres, começando por reconhecer a existência de cada uma, valorizando sua singularidade e sua história de vida, possibilitando que nomeiem suas dores e sobretudo seus desejos e sonhos. 

Falar de desejos e sonhos é pensar também na perspectiva de projeto de vida. Que leva em conta todas as dimensões da vida das mulheres, incluindo trabalho, família, amigos, estudos, lazer e sexualidade. 

Sexualidade é uma potência vital da existência humana, não é à toa que quiserem e ainda querem aniquilá-la da vida das mulheres, também não é questão de supervalorização, mas de reconhecê-la como uma dimensão importante da vida e que todas as mulheres têm o direito de vivê-la em sua plenitude, longe de todo tipo de submissão e abuso, de racismo e discriminação.

E não vamos adentrar aqui, mas vale mencionar a questão dos direitos reprodutivos que está estritamente relacionada à condição de existir das mulheres, do exercício da sexualidade, perspectiva e projeto de vida. Mencionamos também a transversalidade da discussão de gênero que busca romper com os padrões sociais impostos na concepção pura e restrita de homem e mulher, ampliando o olhar para as diferentes identidades de gênero e diversas orientações sexuais. 

Por isso, também precisamos continuar falando sobre as mulheres, para as mulheres e com as mulheres, mas também para os homens e com os homens. É necessário incluí-los neste debate, socializar experiências de desconstrução do machismo e das questões voltadas para igualdade de gênero e respeito à diversidade. Disseminar todas as formas de diálogo, abrir os canais da comunicação entre eles e elas. 

E, finalmente, é importante reforçar e acrescentar a fala repetida por tantas mulheres:

Meu corpo, minhas regras! Meu corpo, meus sentimentos, meus desejos, meu existir! 

*Camila Rodrigues (Terapeuta Ocupacional) e Elizangela Neubaner (Assistente Social) são responsáveis pela áreas técnicas de Atenção Integral à Saúde da Pessoa em Situação de Violência e de Saúde Mental na Supervisão Técnica de Saúde de Santo Amaro/Cidade Ademar PMSP.

Fotografias: Acervo das autoras

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Escrito por Coletiva de Mulheres

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