Textos por Vicente Ruiz

O que eu tenho a ver com isso? 

Passeava pelas ruas da cidade de São Paulo com os olhos da consciência abertos. O acúmulo de lixo nos bueiros, depois de um dia de chuva, destravou minha  língua e a mímica de minhas mãos. 

Que vergonha, que falta de amor à   cidade!  Que sujeira!  

Uma senhora, empregada do restaurante ao lado, que fumava prazerosamente, se deu por ofendida e retrucou:  

– O que eu tenho que ver com isso aí?… 

Diante de sua encrespação, recolhi as asas de meus braços e em tom mais calmo falei para a poluente senhora:  

– Esse lixo entrará no seu restaurante sem pedir licença na forma de mosquitos, baratas e ratos. 

– Que horror! 

– Vai ser um tempero a mais para seus pratos. 

Ela acendeu o fogo no seu coração, encheu seus pulmões de fumaça e vomitou pela boca uma lavareda de palavras poluídas. 

Acelerei meu passo com medo de ser devorado pelas chamas. 

Párias errantes nas cidades

 A revolução industrial concentrou as fábricas nas grandes cidades e criou nelas numerosos empregos. 

A mecanização no campo eliminou muita mão de obra. Tratores e colhedeiras executavam em poucos dias o serviço que centenas de agricultores demoravam meses.  

O sudeste brasileiro, São Paulo, foi o principal destino migratório de todas as regiões do país. Milhares de pequenos agricultores venderam suas terras, desistiram de trabalhar no campo e correram atrás do sonho dourado de morar na grande cidade. 

Sem perceberem, esses agricultores arrancaram as raízes, que lhes unia à mãe terra e que garantia sua sobrevivência. Pior ainda, pouco a pouco, esses lavradores e, principalmente seus filhos, foram perdendo a sabedoria de lidar com a terra, de cultivar e produzir. A terra se tornou estéril; não produzia alimentos para os seres humanos. Pais e filhos ficaram reféns do asfalto improdutivo da cidade. Nela multidões de seres   humanos lutavam uns com os outros para sobreviverem. 

Para onde iremos nós, desempregados? Nossas terras não nos pertencem mais.  

O que semearemos se não sabemos plantar? 

O que colheremos se não plantamos? 

O que comeremos se não colhemos? 

O sistema capitalista rouba dos agricultores a terra e a sabedoria que a converte  em mãe generosa de alimentos e os transforma em analfabetos na agricultura e mendigos nas grandes cidades.

Socialismo?

Falamos muitas vezes com amigos sobre os problemas que afligem o mundo na sua globalidade: Pobreza, guerras, drogas, desigualdade, poluição, consumismo, sustentabilidade. 

Para convencer as pessoas, simplificamos nosso raciocínio e afirmamos convencidos: esses problemas só se solucionarão mudando o sistema capitalista por um outro, o socialismo. 

Nosso interlocutor reage rapidamente e  afirma  o que parece um consenso de tanto ser repetido: o socialismo e o comunismo fracassaram na Rússia e nos países comunistas. China não é mais comunista. Cuba vive na pobreza e procura abrir-se para sobreviver. 

Papagueiam a mesma ladainha, principalmente depois da queda do muro de Berlim, sem saber quem começou a rezá-la e o por quê.  

Para não nos enredarmos numa discussão eterna e infrutífera, aceitamos deixar de lado os nomes comunismo e socialismo e perguntamos ao nosso companheiro de diálogo. 

Quais são os valores que devem reger uma sociedade para ser mais justa, pacífica e humana? 

– Justiça, honestidade, solidariedade, cooperação, liberdade, igualdade, irmandade, paz, aceitação das diferenças raciais, sexuais. Igualdade  entre mulheres e homens. Sustentabilidade, cuidado com a natureza da qual fazemos parte, respeito a todas as culturas… 

– Todos esses princípios e valores são o alicerce do sistema que queremos. Quando não praticamos esses valores, nenhum sistema sobrevive. Deixemos de lado os nomes tão desgastados por interesses e comecemos a viver esse modo de vida mais comunitário, na sua radicalidade, como uma alternativa real de sobrevivência para todos.

O erro do gato

Na crônica escrita no livro “De alma aberta”: para todos e com todos falo da democracia e narro o diálogo entre o cachorro e o gato. 

O gato quis convencer o cachorro, em um diálogo aberto e sincero, a repartir o osso que ele estava comendo. Diante da recusa do cachorro o gato disputou aquele manjar e morreu pelo seu atrevimento. 

Qual foi o erro do gato?

Por que o gato morreu?

Não foi por falta de coragem ou descuido. 

Será que ele ensinou ao cachorro o pulo do gato e pagou por sua ingenuidade?

Ou o gato esqueceu seu pulo por tê-lo escondido e não usá-lo com mais frequência?

Não, o gato morreu porque esqueceu de convocar todos os outros gatos, organizá-los e juntos irem dialogar com o cão. Caso este se negasse a repartir o osso, cada gato daria seu pulo particular secreto, menos o gato encarregado de afanar o manjar enquanto o cachorro se distraia com as acrobacias dos outros. 

Se tivessem feito isso, no final todos sairiam para preparar seu banquete, rindo e fazendo caretas para o cão. 

Por que não desligam os aparelhos?

A entrada principal do Hospital Sírio Libanês de São Paulo estava lotada de personalidades: ilustríssimos, excelências e doutores. Todos desfilavam com ternos alinhados e gravatas cuja cor, tempos atrás, denunciava o seu lado partidário. Hoje, no balaio de gatos montado, as cores do arco-íris são poucas para disfarçar a localização de cada um, no leque aberto de esquerda para direita com aglomeração no centro.  

Os funcionários do hospital agitados farejavam o que acontecia. Bisbilhotavam ao pé do ouvido o que escutavam, imaginavam e acrescentavam em cada conversa. O hospital era um reboliço, todos cacarejando sem se entender. 

Lourdes, enfermeira conhecedora de todos os labirintos do hospital, cruzou com o doutor,  que saia da UTI. 

– Doutor, doutor… que esta acontecendo?

– Um político está intubado na UTI. 

Um político intubado….  

Um político?    

Intubado? 

Na UTI? 

Político na UTI… 

Político na UTI: ecoou por todo o hospital. 

Uma voz defensora da” justiça”, da “paz” e temente a Deus no seu cotidiano, se atreve a subir no pedestal do juiz supremo e sentenciar sem conhecer o político e a cor do seu partido:  “Por que não desligam os aparelhos?”.

Androides? Humanos?

Uma a uma chegam ao barzinho convocadas pelo Facebook. Se saúdam mecanicamente com beijos robóticos. Sentam ao redor da mesa. Todas estão hipnotizadas pelo celular e ausentes do mundo real. Vivem no mundo virtual dos Facebook, WhatsApp… Seus dedos pululam no teclado. Não escutam nem falam. Só sentem o latejar da tendinite nos  seus cotovelos. Silêncio, ausência e isolamento  por todas estarem presentes e ausentes ao mesmo tempo. Fogem do mundo dos sentimentos e se refugiam no mundo virtual.

Estão incomunicáveis no mundo real por ter em mãos o celular e os satélites à sua disposição. A proximidade de seus corpos não vence a distância longínqua e próxima dos satélites receptores e transmissores. É necessário a ação da consciência para sintonizar aquelas mentes dispersas, na mesma onda para poderem se comunicar. Devem receber um choque para todas acordarem. 

De repente aparece nos dez celulares: 

– Oi, pessoal, tudo bem por aí? 

É a provocação de uma das amigas,   presente e consciente.

Todas começam a acordar. 

– Você está louca? Não vê que estamos todas aqui?

– Começamos a estar. 

– Mas falando de loucura: será que piramos todas? 

Imagem: Bruno O.

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Escrito por Vicente Ruiz

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