Uma menina, uma jovem mulher, com rosto de resistência e projetos para sonhar e transbordar pelo nosso território, por Evinha Eugênia Andrade e Natália Cruz e Souza.

Um bom papo com Natália Cruz e Souza, Produtora Cultural, Artista Multimídia, Educadora, Idealizadora do Coletivo ArteFato (2012) e da Coletiva União Deixa Ela Tocar! (2017). Participa do Fórum Cultural Cidade Ademar, Pedreira e Jabaquara. Uma menina, uma jovem mulher, com rosto de resistência e projetos para sonhar e transbordar pelo nosso território.

Quem é Natália Cruz? Essa jovem menina mulher que faz sua história na periferia da cidade de São Paulo!

Bom, me considero uma pessoa muito inquieta, um tanto nervosa, mas com um certo humor de virginiana. Acho que tenho uma ligação forte com a arte e a ciência, o que pra mim não se separam. Gosto de pensar como as coisas se desenrolam e os detalhes. Isso me faz achar que posso ter algumas noções mais amplas, mas nem sempre é assim.

Trabalho com educação e produção cultural há quase dez anos. Trabalhos difíceis que fui desempenhando ao longo dos anos e estou constantemente aprendendo. Ambos exigem a capacidade de ter percepção de como as pessoas reagem, como lidar com aquilo que podem oferecer e com o que posso contribuir. Gosto sempre de me sentir contribuindo com alguma coisa, seja ela qual for, mas não consigo muito contar com a “sorte”. Então, acho que estou sempre analisando os processos e valores que estão em jogo. Talvez isso me torne uma pessoa prática no aspecto da ação, enquanto emocionalmente, também nem sempre é assim (rss).

Você nasceu no território e aqui foi fazendo suas opções de vida. Para quais lugares  a convivência com a juventude periférica te levam?

Cresci no Jardim Míriam,  brincava na rua de barra manteiga. Na época, uns vinte e poucos anos atrás, a casa era de chão vermelho e portão de madeirite. Na rua fazíamos campeonato de vôlei e dominó. Como era pequena só acompanhava as atividades e, quando dava “pra me enfiar no meio” , tava lá! Gostava de ir para a escola, era ótimo sair de casa! E sempre estudava meio longe – se morava perto de Diadema, no Jardim Miriam, ia a pé estudar na Casa Palma, que chamávamos de Cidade Ademar. Entendíamos na época que Cidade Ademar era um lugar “um pouco melhor”. Então, para ficar um pouco mais distantes de alguns fluxos, meus pais sempre optavam por colocar eu e meus dois irmãos (um irmão e uma irmã) em escolas de Cidade Ademar e Jabaquara. Bom, era uma certa ingenuidade isso, mas entendo o pensamento. Estudei na Escola Estadual João Evangelista Costa. Para chegar lá, eu caminhava na Avenida Cupecê cerca de 40 minutos (rss), o que mais tarde me fez receber apelidos de andarilha (kkkk). Conhecia muita gente no caminho, às vezes caminhava junto. Eu gostava e me acostumei!  Na escola construí a maior parte dos meus laços de amizade. Tenho contato com muita gente até hoje, mesmo indo para caminhos diferentes. Fui rebelde: queria sempre fazer o que diziam que não era pra mim (rss), então aos 14 anos jogava futebol e até cheguei a treinar no Centro Olímpico. Logo depois, aos 15, comecei a andar de skate, andava na AeB no Jabaquara (um antigo Centro de Esportes, que existia na época), beber nos estacionamentos de supermercados e ver shows de rock como muitos meninos e meninas na época, Meninas que inclusive são minhas amigas e atuam no projeto “Deixa Ela Tocar!” e moradoras da região, companheiras de atuação como Bianca Louise, Barbara Magalhanis, Juliana Santana e Gabriela Franscisco.  

Você é Cientista Social e pós graduada em Direitos Humanos e Lutas Sociais.

Nossa! Essa profissão, esse nome “cientista social” é meio difícil, porque parece que a gente consegue saber de muita coisa na sociedade, quando na verdade a gente só tenta compreender alguns processos. A universidade mudou a minha vida, me fez ver muitas coisas diferentes, realidades diferentes mesmo. Felizmente, eu entrei numa universidade pública. Era ainda uma realidade um pouco distante, mas, como disse, gostava de apostar no que diziam que não era pra mim. Na UNIFESP, ainda que bem nova, tinha uma vivência de bairro, o reconhecimento de muitas coisas que vivia e a cultura punk, me proporcionaram muitos questionamentos. Acho que por isso escolhi as Ciências Sociais. Essa bagagem que antecede a acadêmica fez com que conseguisse me desenrolar nos lugares. 

Ter sua base de formação e as experiências do cotidiano num lugar privado de diversos acessos te encaminhou para desembocar e mergulhar neste universo de estudos políticos e sociais dessa comunidade?

Eu não sei bem se eu queria de fato estudar a minha própria comunidade. Na antropologia falávamos muito do “outro” para perceber as diferentes camadas sociais e de cultura. Ocorreu que eu não tinha tantas opções assim. Na época da conclusão da graduação eu tinha que optar por algo que daria conta de fazer, trabalhando em dois locais diferentes, me deslocando da periferia da Zona Sul de São Paulo para a periferia de Guarulhos (Bairro dos Pimentas), o que demorava em média 3 horas. Era pouco possível fazer pesquisas de imersão em outro contexto. Então eu usei o que tinha (kkk), no caso o metrô e o trem (kkk). Minha pesquisa se desenrolou em torno da reprodução da frase nos trens: A CPTM informa:  “Pedir esmolas e o comércio ambulante são práticas ilegais. Não incentive essas ações”. Minha intenção foi perceber o quanto de informação de desigualdade, vigilância, injustiça, história social, marketing, violência, que temos  expressas nestas mensagens. O nome da pesquisa foi “O comércio ambulante nos trens de São Paulo – sociabilidade e conflito”. Detalhe:  na época também fazia estágio na CPTM (kkk). Então, de fato, tive que enxergar o meu próprio cotidiano de modo diferente! E agora munida de conhecimento também acadêmico!  É inegável que isso fortalece!

Imagem: Natália Cruz (Acervo Pessoal)

Você acumula uma trajetória de experiências coletivas e independentes. O Coletivo Artefato é uma possibilidade de reunir a juventude talentosa em projetos reais e possíveis, canalizando essa energia criativa de maneira compartilhada?

Com certeza o coletivo ArteFato significa isso. Mas a gente nem sabia disso, quando começou!  Pra gente estávamos só trocando ideia, isso que tornou a ação tão descomprometida como compromissada. A gente sabia que não tinha shows perto de casa, que não tinha muita gente com instrumentos e equipamentos de som pra fazer um barulho, mas a gente via que todo mundo tinha ideias, o Sarau da Ademar rolava no bar, as ideias e os pensamentos regados a breja ou drink barato. Ninguém do grupo no início: eu, Carlinhos, Danilo, Marcelo, Rodrigo, Lidiane sabia o que era um coletivo cultural (kkk)… A gente queria fazer um som no bairro. Essa perspectiva fez a gente ir entendendo vários processos, e com isso, novamente enxergar nossa própria realidade. Nesse coletivo foi a possibilidade real de entender mais sobre política, economia, lazer, direitos com os Festivais Independentes “Rock na Veia”, e mais tarde, o projeto de Festivais na Escola   E.E. Testando”. Sou grata e tenho enorme carinho com todas essas pessoas que participaram e participam.

“Deixa Ela tocar” é muito sugestivo.  Nos encaminha para lugares que são negados para nós mulheres. Será essa a construção desse ajuntamento de Mulheres que têm o olhar no infinito de todas as possibilidades, mesmo que o caminho seja de muitas pedras?

E muito sugestivo mesmo (kkk). Por isso ! (kkk) … Essa é uma construção possível, acredito que tenham várias! Acho que todas as construções podem atingir parcelas, camadas de entendimento. Essa construção tem CEP, CLASSE, COR … tem também um certo humor, mas há várias ferramentas a serem experimentadas… então acho que é um caminho possível, nem o único, nem o primeiro, nem o último.

É  um pedido de licença ou um recado, bem escrito, de que podemos ocupar o lugar que desejamos  e ser o que quiser para ser feliz?

Sempre falo isso … não é um pedido de licença, é uma forma de impor sim o que de forma explícita ou implícita nos é negado. Ainda não conseguimos ocupar, nem mesmo ocupar da nossa forma. A ocupação baseada nos valores construídos unicamente pelo homem, também tem suas problemáticas, então não basta só ocupar, temos muitas vezes que mudar os termos dessa ocupação! É por isso que o projeto existe.

Uma aventura, uma viagem, um querer, uma mulher partilha a sua criação e voz para uma Antena Loka. Como acontece esse tecer artístico e esse desejo?

Que engraçado! Sempre quis uma banda pra chamar de minha! A ideia da Antena Loka e tão antiga, desde a criação do Artefato. Eu queria sempre ver mais bandas de mulheres nos Festivais Independentes “Rock na Veia” e nas apresentações nas escolas durante o “E.E. Testando”, e, cada vez mais eu penso que ia deixando o tocar de lado pra fazer inúmeras funções. E aí a gente percebe que há condições reais de os homens sempre acessarem os instrumentos e o tempo necessário para ser um instrumentista profissionalmente, ou mesmo amador. Deixa Ela Tocar é um grito! Pra ter acesso, tempo, oportunidade de modo geral.

Quem é Natália Cruz em todos esses espaços? Toda arte emana do povo e é pertencimento dele ou deveria ser. Direito à informação e comunicação deve ser uma luta para um futuro que chega velozmente. Como alcançar uma relação de trocas de conhecimentos sem passar pelas construções elitistas que distanciam quem detém o conhecimento daquele que necessita destes saberes? Por que popularizar a comunicação, assusta tanto aqueles que têm o privilégio de acessar esse mundo de conhecimento? Qual o caminho para transformar/construindo, diminuindo essa distância?

Nossa!  Essas perguntas são difíceis e não sei se consigo responder, apenas sugerir caminhos. Eu acredito que sou parte de todos esses espaços, às vezes mais, às vezes menos institucionais. Por mais que neguem a arte, a ciência como construções de todos os seres humanos, o pertencimento é feito magia, inseparável. A luta é para o reconhecimento disso e que seja oportunizado a todos. Infelizmente, por conta das  construções serem hierarquizadas, e a partir do capital, suas pré modulações direcionadas a determinados grupos historicamente privilegiados, acabamos passando por “esses elitismos”, o que faz a gente ter dificuldade em acessar conhecimentos poderosos. Quando a gente acessa, acho que ameaçamos quem sempre esteve ali! Isso é muito forte na arte, na política, na ciência. O caminho pra gente é não abrir mão! É tentar articular ao máximo com quem está perto, seja numa causa, num território, num ideal. Se der pra ser tudo, ótimo! Por isso acredito muito nas lutas do território da cidade Ademar, Pedreira e Jabaquara. Porque podemos construir cenários atípicos. Já se espera que aqui “não tenha nada” (cultura, arte, lazer…)! “Só que tem!” Porque a gente faz saberes pra isso! Isso não significa que a gente não precisa de nada do poder público! Mas sim, que o poder público deve compreender as nossas necessidades e nossas culturas, senão, vira só opressão mesmo! Então a gente tende a dialogar novamente em termos que não são os nossos – e, de novo, temos mais essas dificuldades. Mas, (e se…) a gente consegue atuar em todo e em qualquer nível podemos construir chances reais de “mudar a dança” (as prioridades, as formas, a ordem, os valores). A distância diminui à medida em que os termos passam a ser os nossos. 

Conta para o Expresso Periférico dessa conquista em ter sido contemplada com o Edital de Fomento e como influência na vida das mulheres do território.

A Deixa Ela Tocar! foi esse ano de 2021 contemplada. Antes disso, tive a trajetória com o VAI I e II (edital de iniciativas culturais) junto ao Coletivo Artefato, todos editais públicos. Parece que o dinheiro não constrói ideias, a falta dele sim (kkk), porque se a gente não tem “dá um jeito”, mas o desgaste “é osso”, “mais osso ainda” quando se tem que buscar o sustento em outras fontes. Então, mexer com cultura no território estando fomentadas já é um lugar de privilégio em termos comparativos, temos que ter essa noção, senão ficamos reproduzindo discursos de mérito, ou mesmo construções elitistas como você pontuou na pergunta acima. O dinheiro ajuda a gente a conseguir comprar o básico, ajuda a realizar com a qualidade, tempo, direcionamento que gostaríamos. Ainda que pouco ou precário, a verba que chega traz muita perspectiva de continuidade para os grupos e expectativa pra quem vivencia algum processo de acesso em iniciativas culturais periféricas. Então a verba é bem-vinda! Gostaríamos de não ficar refém disso, mas ainda é difícil conseguir sobreviver na cultura.

“Deixa Ela Tocar” – Projeto que vai fomentar o protagonismo feminino através de oficinas de percussão, canto e cordas para mulheres, pocket show  (apresentação musical de curta duração) e pesquisas. Enfatiza as potencialidades e produções de mulheres na arte com destaque para a musicalidade que circula no território

Evinha Eugênia Andrade – Coletiva de Mulheres do Expresso Periférico

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Escrito por Expresso Periférico

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