Onde estão os artistas periféricos, os trabalhadores da arte, na pandemia? Por Evinha Eugênia e Professor Betinho.

“…Com a roupa encharcada e a alma repleta no chão
Todo artista tem de ir aonde o povo está
Se for assim, assim será
Cantando me desfaço, não me canso 
De viver nem de cantar…”
Milton Nascimento

Passado mais de um ano do início da pandemia de Covid-19 no Brasil, com situação fora de controle e sem previsão de normalização da situação a curto prazo devido ao descaso com a vida das pessoas, falta de coordenação, planejamento e interesse em realmente combater o vírus por parte das autoridades sanitárias e, em especial, do governo federal, mas com responsabilidade pelo caos dividida com governos estaduais e municipais, buscamos respostas à pergunta que inicia esse artigo. Será que nossos artistas periféricos estão conseguindo ir aonde o povo está? É a pandemia a única responsável pelo descaso e falta de recursos públicos que, desde sempre, desafiam nossos talentos?

Os palcos recebendo grandes artistas e shows lotados e gratuitos, nos fazem acreditar que existem investimentos, fomento público à cultura como um todo. Só que não! A arte periférica sobrevive pelos coletivos, pela teimosia dos artistas que arriscam defender – com música, cinema, poesia, dança e outras expressões artísticas – suas artes como instrumento de alento para “todas as faltas” que rondam diariamente o cotidiano dos que sustentam a nação.

Nesta edição em celebração ao 1º de maio – Dia Internacional do Trabalhador – o Expresso Periférico conversou com alguns desses artistas que, como uma massa de trabalhadores, vivem na informalidade, sem direitos e sem vínculos empregatícios formais, que nos trouxeram as angústias e urgências para sua sobrevivência e no enfrentamento da ausência do poder público fomentando cultura na periferia.

Edilene Santos (Fotografia de Daniel Alexandrino)

Edilene Santos – Moradora da zona sul da cidade, onde nasceu e cresceu, atua na rede pública de ensino e é autora dos livros “Caçando Estrelas” e “O Saci”. É mãe e avó, poeta e militante nos coletivos feministas Nísia Floresta e Bruxas da Quebrada e uma das organizadoras do Sarau do Grajaú. Acredita na arte e na cultura como transformadores sociais.

Clodoaldo Arruda (Acervo pessoal)

Clodoaldo Arruda – É rapper, produtor musical, líder do grupo Resumo do Jazz. Integrante da cultura Hip Hop, militante do movimento negro, movimento pelos direitos humanos e movimento feminista desde 1997, integra a ONG Geledés-Instituto da Mulher Negra. Idealizador do Arruda Crônico https://www.facebook.com/arrudacronico/, onde fala sobre filosofia, política, cultura e comportamento, com quadro fixo no Sarau do Vinil, propaga o estudo da Filosofia de forma popular.

Roger da Rua (Acervo pessoal)

Roger da Rua – MC, rapper, compositor e produtor. Nascido e criado na Vila Joaniza, zona sul, é fundador do grupo de rap DARUA-2010, em parceria com DJ Pablo. Realiza atividades culturais nas quebradas. Anualmente promove o FEST MUSIC e mensalmente faz a QUINTA BLACK. Em breve, estará lançando o CD solo “Sabores da Rua”, que mistura música e alimentação saudável.

Joul

Joul Matéria Rima – Joul é o nome artístico de Jodson do Nascimento Silva. MC, palestrante, produtor cultural-musical, empreendedor social e locutor. Ainda muito jovem, desenvolveu uma ferramenta de ensino e aprendizagem que consiste em aliar a matéria da escola à cultura Hip Hop. Em 2002, criou o grupo Matéria Rima . Em 2003, fundou a Bico do Corvo – empresa responsável por produzir shows, videoclipes, músicas e vestuários da linha streetwear. Nos meios de comunicação já atuou na Rádio Comunitária Mais FM Barueri entre os anos de 2002 a 2004 e de 2005 a 2011 na Rádio Astral Fm Jandira, idealizador do talk Show Avisa Lá com 3 temporadas e 17 episódios. Fundador do Instituto Cultural e Educacional Matéria Rima, atualmente, coordena os projetos socioeducativos: Escrevendo Novas Histórias, B.A.S.E, Vem Comigo Hip Hop Arte, Olha Lá Um Livro Ali, Somos o Futuro, Cesta Criativa e No Ritmo da Aula. Com larga experiência em arte como forma de inovar a educação, Joul tem feito palestras e apresentações artísticas em praças e palcos do Brasil e do mundo, incluindo países como Senegal, Alemanha e França.

Como a pandemia afetou seu fazer artístico?

Edilene – Do ponto de vista financeiro ou profissional, nunca pude viver exclusivamente de arte, mas a pandemia alterou muito meu fazer artístico porque saraus são feitos de gente, encontros, trocas e abraços. Editei apenas 1 livro e depois disso me dediquei de corpo e alma aos coletivos. Aprendi muito e sou muito grata. O nós por nós, funciona desde sempre nas periferias, como modo de vida. Com arte e cultura não é diferente.

Clodoaldo – Integro uma banda de rap, o Resumo do Jazz, e em 2020 seria o lançamento do álbum. Lamento o adiamento do lançamento, bem como todos os ensaios, e não pudemos fazer nenhum tipo de planejamento sobre possíveis shows. Não dispomos da estrutura necessária para as tais lives, uma linguagem nova, inventada para a pandemia e que era, no mínimo, pouco usual. Logo, simplesmente suspendemos todas as nossas atividades. As demais atividades que desenvolvo são ligadas à Filosofia, em forma de artigos e vídeos. Tenho feito via internet, mas isso acarretou custos para melhor adaptação de linguagem e adequação à “concorrência”. Custos com iluminação, captação de voz, etc.

Roger – A pandemia foi um espelho de dois lados. Por um lado o caos e pelo outro um oceano de reencontro dentro e externamente a mim e para mim. Fui afetado pela proliferação e evolução da minha arte, tanto  financeiramente como psicologicamente, descobrimentos fantásticos sobre mim, vieram à tona sentimentos estranhos. Tive que fazer amizades, criar intimidades e alguns desses sentimentos conversaram comigo e me ensinaram como a vida é uma vela que às vezes está com uma linda chama e outras apaga e alguém vem e acende. Me afetou tanto positivamente como negativamente. Aproveitei para criar muitas músicas, produção de beats (batidas de rap) aos montes, muitas composições nasceram, me organizei para estudar caminhos para enfrentar a nova terra e como viver nela da minha arte. O caos mostrando possibilidades e me conectando com novas personas e pessoas, todas especiais, me obrigando a renovar minha arte, a maneira de mostrar ela ao público. Agora estudo (home office de arte) para me colocar neste momento desafiador para nossa sobrevivência. Ainda guardo algum entusiasmo, tenho muito a fazer e mostrar e, com fé em Deus, vamos. Outro ponto importante é a sobrevivência financeira. Viver exclusivamente de arte na periferia é quase impossível, apesar de ser o desejo de muitos dos artistas periféricos. Assim, é comum procurarem outras atividades de trabalho, que também muitas vezes se apresentam de forma precária quando falamos de relações e direitos trabalhistas.

Joul – A pandemia não afetou só o meu fazer artístico, mas afetou de toda a classe. Não é fácil você saber que está num momento em que o mundo nunca viveu nada parecido, num momento de incertezas. Por mais que a gente seja esclarecido, seja forte, acaba abalando o psicológico, a nossa rotina, que muda também. De repente você está com um monte de gente, fazendo shows, nos palcos, contato, e de repente você se vê de outra forma, com essas coisas sendo tiradas de você. Para os artistas pequenos, fazendo uma comparação com o futebol, seria igual aos artistas da várzea. Tem alguns times que conseguem manter seus jogadores e outros dispensam, e esses que são dispensados acabam sem ter como levar o alimento para casa e aí começam outros problemas. Então, para você continuar criando, fazendo arte, fica muito difícil porque tem a sobrevivência, a prioridade em sobreviver fala mais alto do que o próprio trabalho, que a própria arte. Para a gente que é artista cidadão, que além de fazer arte mantém uma Instituição sem fins lucrativos, fica tudo mais complicado, porque você tem que arrumar o pão de cada dia para o seu sustento e arrumar o pão de cada dia para o sustento da causa transformadora que fez a gente chegar até aqui. Então, nesse momento, desistir da Instituição é perigoso, porque o retorno disso, talvez, seja muito demorado. Por isso, a gente pretende continuar mantendo vivo, mas não é fácil. Os pequenos apoios que a gente tinha, não apoiam mais porque também não podem. Mesmo assim, quando dá aquele sopro de inspiração, que é a nossa vida, por isso que a gente faz arte, a gente volta para o lugar de onde a gente veio, que é muito importante, esse lugar de onde a gente veio, essa bolsa, esse ventre que a arte nos envolve, que faz com que a gente permaneça com a cabeça um pouco melhor para passar tudo isso. Como muitos brasileiros, esperançoso para que chegue logo a vacina, a gente já vê classe dos professores sendo vacinada, então a gente já começa a ter esperança para que passe tudo isso e a gente retome o mais rápido possível (a normalidade). Os artistas são movidos pelas outras pessoas, pelos aplausos, pelos sorrisos, pelo aconchego que tudo isso traz.

Como você tem feito para sobreviver neste momento?

Edilene – Com a pandemia tudo ficou mais difícil. Hoje participo de alguns coletivos e em toda parte vejo pessoas engajadas em campanhas em prol de artistas e comunidade em geral. O próprio bar (da Tia Nilde), sede do Sarau do Grajaú, que coordeno, precisou de socorro. Sou professora da rede pública e é daí que vem meu salário. Arte e cultura faço por puro amor e teimosia. Salvo os raros editais que surgem, (e que não contemplam a todos), a gente tira mesmo dinheiro do bolso pra fazer as coisas acontecerem.

Clodoaldo – Sou um desses milhares de artistas que têm sobrevivido com projetos de fomento à cultura por parte do poder público, o que raramente acontece, já que são poucos, insuficientes, e hoje temos mais artistas procurando acessar estes recursos. Dou aulas particulares, mas elas também têm sido procuradas por pouquíssimas pessoas. Primeiro porque as aulas estão suspensas e, segundo, porque a crise financeira que acometeu as famílias as leva a não mais investir nesse tipo de serviço. No mais, tenho pego o que aparece: produções e revisões de texto, oficinas online e o que mais pintar!

Roger da Rua – Tento sobreviver com lives de alguns “edi-tais” de fomento, que deveria ser “edi-todos”, promovidas por aparelhos de Cultura e Casas de Cultura. Sou casado, minha esposa é uma pessoa incrível, estudante de Ciências Contábeis, trabalha na produção em uma fábrica de chocolate e torrone e ela tem sido um grande equilíbrio na nossa sobrevivência nessa pandemia. Com quase todos os meus meios de trabalho bloqueados, 70% das despesas ela vem segurando e os outros 30% pago com algum trabalho que consigo. Falo isso porque sei que VOCÊS, MULHERES, TÊM SEGURADO a nossa onda e de nossa sociedade, essa é a realidade. Estamos no fio da navalha, tudo muito caro.   

Joul – A gente vive aqui tocando os nossos projetos na medida do possível para que a gente passe por essa e volte o quanto antes a fazer as pessoas felizes e continuarem a sonhar. Para sobreviver (a esse momento), a gente está de olho nos editais que aparecem para poder se inscrever e participar de alguma forma, mas editais é aquilo, às vezes acontece de você ser contemplado, outras vezes não. A gente já entrou num lance de começar a vender algumas coisas, infelizmente, uns equipamentos, algumas coisas que a gente tinha aqui que não queria se desfazer, mas acaba tendo que se desfazer para passar por esse momento e segurar as pontas.

Nesta celebração do Dia do Trabalhador, para quem é artista (sem as tais reservas financeiras dos consagrados), é colocado um cenário sem palco, de marginalização e insegurança, reforçando que há muita luta para fazer chegar até eles de forma democrática e justa as Políticas Públicas de Fomento à Cultura, como relatado por todos que foram ouvidos.

Apesar da aprovação da Lei Aldir Blanc (Lei nº 14.017, de 29 de junho de 2020), que define ações emergenciais destinadas ao setor cultural durante o estado de calamidade, em função da Covid-19 e que prevê o repasse de R$ 3 bilhões a estados, municípios e ao Distrito Federal para medidas de apoio e auxílio aos trabalhadores da cultura atingidos pela pandemia. O que ainda vemos na prática é a dificuldade do setor artístico de garantir o acesso aos recursos que podem garantir sua subsistência ou minimizar os impactos da pandemia, seja por falta de informações, invisibilidade da classe artística, ou pela falta de apresentação de planos municipais para acessar os recursos garantidos na lei, demonstrando despreparo ou desinteresse dos gestores públicos.

No nosso território, há uma luta histórica de décadas pela construção da nossa Casa de Cultura. Como resultado dessa luta, já há hoje uma Casa de Cultura Itinerante de Cidade Ademar que disponibiliza uma verba para programação mensal na contratação de artistas. Apesar de ser um avanço, ainda é pouco. Precisamos debater e ampliar as verbas públicas para Cultura de nossa região há tempos esquecida nos orçamentos,  repensar e valorizar a Cultura de forma geral em nosso município, estado, nação.

O Expresso Periférico abre espaços para que os artistas dos territórios periféricos manifestem e divulguem seus feitos artísticos. A Casa aqui é de todes.

Além disso, a Casa de Cultura Itinerante de Cidade Ademar quer conhecer seus artistas. Se você reside em Cidade Ademar e Pedreira e tem um projeto que queira apresentar, acesse as redes da Casa de Cultura e preencha o formulário aqui.

Imagem: Bruno O.

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Escrito por Expresso Periférico

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