Conto escrito por Michele Santos.

Até as plantas precisam de lua, a vó dizia na noite mais alta de quando era a cheia, antes de colocarmos todos os vasos de dentro da casa espalhados pelo quintal: tomando lua. Dentro da cabeça de moleca, imaginava as plantas com copinhos invisíveis tomando aquela luz, bebendo a noite. A vó era a mãe desde que a mãe fugiu do pai com outro homem. O pai, como é dos pais fazê-lo, sumiu também. Toda vez que tinha caso pra resolver na escola eu ouvia: a menina criada com a vó, a menina sem mãe e pai – e pensava muito que mãe e pai eram uma entidade muito divina e tinham um segredo muito deles que devia ser passado aos filhos mas que a mim não foi confiado porque eles esqueceram de me contar antes de fugir.

Pensava isso uma milésima vez quando teve presépio na praça e o São José e a Nossa Senhora ficavam olhando pro bebê Jesus e tinha aquela luz por trás e o conjunto dessa santidade de plástico papel e neon que eu não conseguia decifrar achava que podia ser o mistério que fugiu do meu conhecimento. O mundo inteiro que fosse filho de pai e mãe que lhes assistissem eram conhecedores de uma alguma coisa que eu não pude ficar sabendo, então achei o mundo muito injusto porque raios, ninguém me dizia o que eu tinha que saber! Tinha a vó, né. A vó preenchia os espaços todos. Era carinho e sarrafo, sorriso e melancolia, pai e mãe. Daí no quando em que ela morreu era bem a época das manjedouras de novo, o mundo cheirando a natal. Já estava crescida o suficiente pra vender perfume no shopping e conheci o Francisco figurando Papai Noel: a fila ansiosa pela fotografia com o bom velhinho. Francisco não era velho, o que só descobri depois, extraídas a barba e a barriga artificiais. Tampouco bom, isso descobri num depois irreversível.

“Te vejo todos os dias observando o posto. Problemas com Natal?”

“Talvez. Não exatamente.” 

“E com Papai Noel?”

***

Saímos pra dançar, pra beber, pra rirmos desvairados. Era bom não estar tão só depois que vó partiu. Era bom fabular que ele podia ser Família. Me agarrei a esse propósito com tamanha obstinação que ali pintei o amor, e porque constava do quadro, existia. E havia também uma graça, uma salvação – aquela que costura famílias retalhadas e é capaz de transformar qualquer ideário de lar em um comercial de chester com pinheiro colorido piscando rodeado de caixas de presentes para crianças limpas e saudáveis e felizes.

Era lá pro meio de abril quando já não conseguia mais achar onde, onde o Francisco, como fazê-lo saber do resultado positivo, compartilhar a alegria da vida que vinha, recontar a história sem lapsos, o bebê na manjedoura, conhecer enfim: o segredo, o segredo! 

Deu pro fim de maio e nada. Precisei decidir.

***

Quando foi pra dizer adeus, os restinhos do meu primogênito em flocos grossos de sangue na privada lambuzada de dor, a lembrança espetando agulhas no pensamento, a solidão de ser a última viva entre meus fantasmas: a vó, a mãe, o pai, o Francisco, o filho.

Também andam dizendo que não volto mais ao trabalho. Loja de perfume em pleno esquenta para o dia dos namorados e a vendedora de licença médica, vê se pode. Descanso absoluto e limpeza do útero; agora esse diabo de tempo largo pra pensar bobagem.

É noite. Distraio os olhos no quintal. A Lua chegando junho parece que quer tocar na gente, já reparou?  Num gesto ancestral, tiro as plantas de dentro da casa e ponho espalhadas uma a uma no quintal.

Pra tomar uma Lua.

Imagem: Bruno O.

Leitura em áudio: Eliana Alves

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Escrito por Expresso Periférico

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