Texto de Gilberto Caetano.

Zuleica da Silva é uma velha com o rosto muito mais envelhecido do que aparenta, se você ler a data de nascimento em seu RG. Ela veste roupas surradas, sujas e rasgadas – não poderiam ser diferentes. Ela caminha sete quarteirões do ponto de ônibus de onde desce até o banco financeiro onde senta-se todos os dias na calçada para pedir esmolas. Caminha com extrema dificuldade auxiliada por uma bengala.

Ela senta no seu ponto, estende o pratinho de plástico para que as pessoas joguem suas moedas e então tira os panos que cobrem as suas pernas. Nas duas pernas existem grandes feridas, do tamanho da palma da mão de um adulto e em carne viva. Verdadeiramente repugnantes. Cheira a podre. E essas feridas doem e doem muito. Zuleica fica com os olhos cheios de lágrimas a todo o momento. Dor, dor. Moscas nojentas pousam nas feridas. Quando começou a mendigar, ela às vezes cobria as pernas por causa das moscas do dia quente, mas assim as pessoas não se comoviam com seu sofrimento, as feridas tinham que ser vistas. Não importa quais adversidades. E quando as pessoas a veem, jogam suas moedas cheias de pena e remorso e logo se esquecem de Zuleica depois de ultrapassarem duas esquinas.

O dia passa lentamente. Seu almoço é uma coxinha que um menino de rua comprou para ela. Sobram treze reais e quarenta e cinco centavos no fim da tarde. Ela guarda seu dinheiro junto com o pratinho de plástico, cobre as feridas nas pernas, levanta com dificuldade. Caminha de volta por sete quarteirões até o ponto de ônibus. Sua condução chega, ela entra, não paga, ninguém consegue ficar ao seu lado. O cheiro é insuportável, as feridas fermentam durante o dia ao Sol e no ônibus, o ar fica irrespirável.

A velha tem vontade de ter um diálogo qualquer com alguém, conversar sobre qualquer coisa, ela treina às vezes de frente ao espelho, esperando que no dia seguinte isso possa ocorrer. Falar de como foi seu dia, das coisas que viu. Ninguém fica perto, todos se afastam. Às vezes tem medo de que a única frase que saiba dizer é:

− Me ajude. Uma esmola, por favor.

E é realmente o que as pessoas escutam de sua voz. As únicas frases.

Ela chega em sua casa de madeira, afastada de tudo, quase no meio de um nada, cercada por uma mata triste e fria. Coloca o dinheiro em um pote de plástico. Toma banho de água quente. Veste roupas velhas e limpas.

Está finalmente bem cheirosa.

Come seu jantar: arroz, feijão, ovo mexido, farinha e com uma pimentinha que arde pouco mas deixa uma sensação boa na boca. Quando satisfeita, lava a louça. Por fim, pega uma pequena espátula em cima do armário.

Ela senta no sofá e com a espátula raspa as feridas. Todas. Uma a uma. Dor, dor. É muito para Zuleica mas ela não cede. Raspa todas para que não criem cascas, para que continuem a ficar em carne viva. Ninguém sente pena de uma ferida cicatrizada. Ninguém irá jogar uma moeda se a dor não for exposta.

Zuleica da Silva faz isso todas as noites.

Amanhã será outro mesmo dia.

Imagem: Bruno O.

Gravação em audio: Professor Edmilson C. Oliveira

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Escrito por Expresso Periférico

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