Entrevista com Estevão Sabatier, arquiteto responsável pelo Projeto da Casa de Cultura de Cidade Ademar

O Expresso Periférico deste mês entrevistou o arquiteto e urbanista Estevão Sabatier. Formado também em Engenharia Civil, num programa de dupla formação, Estevão trabalhou a maior parte da sua trajetória na área de restauro, com levantamentos e projetos em edifícios históricos tombados em diversos lugares de São Paulo e do Brasil. Em 2019, foi convidado a coordenar a equipe de projetos e obras da Secretaria Municipal de Cultura (SMC), onde está até hoje. Foi um dos responsáveis pelo projeto arquitetônico inicial da Casa de Cultura de Cidade Ademar, desejo antigo de artistas, coletivos culturais, ativistas da cultura e sociedade civil, hoje em fase de desenvolvimento do projeto executivo.

Expresso Periférico:  Estamos diante de um arquiteto da Prefeitura que tem acompanhado o projeto de construção da Casa de Cultura da Cidade Ademar. Qual o seu envolvimento com esse projeto?

Estevão: Desde o Plano Municipal de Cultura existe a intenção de que todas as subprefeituras e distritos do município possuam ao menos um equipamento de cultura. Hoje a única subprefeitura ainda fora da rede é Cidade Ademar e, desde que entrei, tentei dar vazão e retirar os entraves para a viabilização desse projeto. Esse é um processo longo, a referência mais antiga do plano de construir uma casa em Cidade Ademar que conheço é de 2016. O terreno só foi decidido e começou o processo de ser transferido à SMC em 2018, tendo finalizado apenas em 2020. E o projeto teve diversas etapas também, houve 3 estudos iniciais até chegar ao desenho atual. O primeiro era um projeto-tipo (quase um carimbo) pensado para implantar em diversos locais da cidade. Depois surgiu a ideia de aproveitar o galpão existente na implantação da Casa, mas acabou travado na legislação do Plano Diretor, a área é uma remanescente das margens do Córrego do Cordeiro e é preciso manter muita área permeável no terreno, então esse projeto acabou rejeitado.

EP: Nesse processo, você entrou em contato com produtores,  artistas e coletivos culturais da região, representados pelo Fórum de Cultura de Cidade Ademar e Pedreira. Qual a sua relação com esses artistas hoje e com a arte no geral? Um arquiteto também pode ser considerado um artista?

Estevão: O terceiro estudo recuperou a ideia de projeto-tipo inicial, se verticalizou um pouco mais para ocupar pouco do terreno, mas ficou mais potente justamente quando se aproximou das necessidades e potencialidades do local. De cara fizemos um estudo dos coletivos locais e percebemos uma tendência grande para grupos de produção audiovisual, animação, cinema e fotografia, como o Coletivo Caco de Tela, JAMAC Cinema Digital, Mascate Cineclube, Graffiti com Pipoca, outros responsáveis por rádios comunitárias como a Rádio Tambor e a Rádio Poste. Disso, já partimos para tentar colocar um cinema a céu aberto, um palco externo que pudesse permitir apresentações visuais externas tradicionais, mas também um edifício que pudesse ser anteparo para projeções mapeadas e outras formas mais avançadas e inovadoras. Isso já deu ao edifício um caráter forte de grandes empenas disponíveis a essas apresentações. Internamente também tivemos a intenção de ter espaços como ilhas de edição e prover uma sala de computadores onde pudessem ser realizadas oficinas de edição, tratamento de imagens e outras formas de mídias digitais. 

Além disso, na região, também há grupos musicais, de maracatu, como Princesa da Zona Urbana e o Maracaguejo, além de grupos de música e dança como Coletivo DançArte, Ubuntu Coletivo de Dança, diversos DJs e MCs ligados ao Hip-Hop e disso o projeto também se inspirou para ter três espaços de apresentação, além das salas multiuso internas, também deixar bastante área livre num terreiro aberto pra fora, um palco externo com a possibilidade de virar cinema ao ar livre, espaços que pudessem dar infraestrutura para esses coletivos.

Mas acho que, mesmo com boas ideias, as conversas com os coletivos melhoraram muito o projeto. Organizaram melhor os fluxos de utilização dos espaços, sem contar que vieram ideias ótimas, como a cozinha externa para eventos mais gastronômicos e a possibilidade de usar as grandes empenas do edifício como parede de escalada.

Então, pra mim, é claro que foi justamente quando aquele projeto-tipo genérico encontrou a comunidade e os coletivos do território que ele realmente ganhou raízes, que ele ganhou relevância e potência para deslanchar.

EP: A luta pela Casa de Cultura vem desde a década de 1990. Já ultrapassou diversos governos que prometeram, mas não efetivaram sua construção. O que temos de diferente agora? Explique para o nosso público em que pé está o projeto da Casa de Cultura de Cidade Ademar.

Estevão: Olha só! E eu achando que tem apenas uns 6-7 anos! Quero saber mais dessa história!

Eu vejo que realmente há muitos entraves para um projeto desses andar. Como técnico, eu vejo muitos entraves de origem técnica, há cada vez menos arquitetos e engenheiros dentro do poder público e, para um processo desses andar, é preciso que alguém traduza as intenções em desenhos, que esses desenhos atendam dezenas de normas. Aí cabe um desabafo, são tantas normas que é humanamente impossível um só técnico saber aplicar todas, mas é cobrado por isso. Depois, esse desenho precisa ter um orçamento balizado legalmente com pesquisas públicas. E há cada vez menos técnicos com capacidade de atuar em todas essas áreas ao mesmo tempo e capazes de tirar as pedras do caminho para um projeto desses andar.

Eu sei que existe também muita questão política, essa demanda de um equipamento de cultura precisou passar tantos anos pressionando para acontecer, mas até mesmo o político fica refém do técnico nesse sentido. Se não há ninguém para montar projetos detalhados o suficiente para não serem barrados numa licitação, para não sofrerem diversos recursos ou serem barrados juridicamente, mesmo que o político destine recurso e aprove a priorização, sem projeto aquilo não anda, fica na promessa. Talvez seja por isso que tem tanto político formado em engenharia: Maluf, Serra, Covas, Kassab, a lista é longa.

Esse projeto de Cidade Ademar também passou muito tempo travado na destinação de um terreno porque um arquiteto normalmente não consegue desenhar nada no vácuo, é a territorialidade que fornece problemas e potencialidades para que um projeto se desenvolva. Foi só depois que o terreno foi confirmado que o trabalho de projeto arquitetônico começou, por exemplo.

Você me perguntou ali atrás se o arquiteto pode ser considerado um artista. Eu não vou ousar dar uma resposta afirmativa, mas se pode existir algo de artístico no trabalho do arquiteto é justamente essa capacidade de traduzir a necessidade da população, a forma geográfica do território, sua história e juntar tudo isso numa forma física onde aquelas potencialidades podem habitar. A arte do arquiteto é saber dar forma ao que está na cabeça do outro.

Essa semana saiu o Nobel da Arquitetura e, pela primeira vez, um Arquiteto Negro ganhou o prêmio. Francis Kéré, de Burkina Faso. E o que mais caracteriza sua arquitetura é valorizar os materiais mais comuns do local, como o barro, a madeira, depois treinar a população local a usá-los na construção. Fazendo arquitetura com o que é ali barato, mas sem perder em nada na qualidade e beleza. É sutil, mas é um processo de valorização e empoderamento, aquele barro, o tijolo, a técnica tradicional, sempre ignorada, quando trabalhada junto à comunidade pode dar forma a uma construção linda e ser motivo de orgulho. Não é apenas construir um edifício para a escola, que por si só já é necessária, aquilo passa por uma valorização não apenas de um material, mas da população que também vive ali. Eu acredito que o arquiteto hoje deve ser cada vez mais assim, saber ver beleza até onde ninguém mais tenta buscá-la. Por que, mesmo estando na África, não posso ter um edifício de qualidade? Aquele arquiteto projetando na torre de Marfim acabou, e ainda bem! 

EP: Pela sua experiência no serviço público, quanto tempo ainda teremos que esperar para usufruir da nossa Casa de Cultura?

Estevão: Ainda existem muitas pedras no caminho, estamos no contrato do projeto executivo, faltam ainda muitos detalhamentos de elétrica, hidráulica e muitos outros. A Casa está com uma proposta de ter diversos dispositivos ambientais, como reserva de água de reúso e painéis fotovoltaicos, que também ainda precisam ser desenvolvidos. Quando um projeto já tem todos os parâmetros para ser executado, daí vamos para a obra. Uma licitação cara e que vai demandar bastante fiscalização. O projeto tem a vantagem de usar de um sistema construtivo bastante rápido que é a alvenaria estrutural, mas, mesmo com o prédio subindo rápido, ainda vão ter diversas instalações a serem desenvolvidas dentro. Então, nossa previsão é que a casa esteja pronta no final de 2024.

EP: Como você vê a importância da participação da comunidade, da sociedade civil organizada, para a realização desse projeto da Casa de Cultura em particular, mas também em âmbito geral, em outros projetos que você acompanha ou participa?

Estevão: Ajudar nessa concretização de uma demanda tão antiga é muito recompensador, porque a gente vê que é uma luta difícil, antiga. E que se não tivesse sido mantida acesa por tanto tempo, certamente teria sido atropelada por outras demandas consideradas mais urgentes. Há muita rotatividade no poder público e, se a pauta não se mantém numa troca de gestão, você pode perder quase tudo. Existe um monte de projeto abandonado na Prefeitura e que dificilmente serão ressuscitados. Quando a demanda vem da gestão, é muito raro que aquilo volte à pauta, mas, quando é uma demanda da sociedade civil, aquilo persiste. 

Outra coisa é que ninguém conhece melhor as necessidades do que quem vive na região. É incrível ver como quem já está imerso num território sabe ler e propor coisas novas com facilidade. E é uma delícia quando as ideias explodem em potência ao projeto. Às vezes, essas ideias acabam também expondo a fragilidade de um projeto, daí vem uma certa humildade do projetista de aceitar a crítica e aceitar recomeçar um desenho do zero. É justamente quando você vê um problema arrasador no projeto e decide recomeçar que vem um bom projeto. E é conversando com a comunidade que você descobre essas coisas. Dizem que sonho que é sonhado junto já é realidade, não? Pois sem participação da comunidade a gente pode até levantar um prédio, mas ele fica com uma perna bamba, fica faltando alguma coisa. É raiz.

EP: Há alguma coisa que você gostaria de falar e que não perguntamos? Qual a mensagem que você gostaria de deixar para os produtores, artistas, coletivos, trabalhadores da cultura em geral e, principalmente, para os consumidores de arte da nossa região? 

Estevão: É um privilégio e também uma grande responsabilidade participar da concretização desse projeto, mas vejo a Casa de Cultura Itinerante de Cidade Ademar como uma iniciativa linda, ocupando praças, fazendo eventos em vários cantos. Quando a Casa for entregue, quero que todos os artistas da região se apropriem da Casa e que ela traga potência à arte de cada um, mas também espero que essas iniciativas itinerantes não se percam: é na rua que a cultura nasce.

Imagem: Thais Scabio

Compartilhe:

Escrito por Prof. Betinho

Roberto Bezerra dos Santos, professor Betinho, é formado em Letras pela USP e atua na rede pública de ensino desde 1996, sendo desde 2002 professor concursado de Língua Portuguesa no município de São Paulo e desde 2003 no município de Diadema. Ativista cultural, do movimento negro (Círculo Palmarino) e Hip Hop, é presidente de time de várzea (GRE Congregação Mariana). Facebook: professorrobertobetinho Instagram: profbetinho Twiter: profbetinho1973

Deixe um comentário