Por Eliane Ornellas Cardeira
À minha amiga e a todas as mães que se sentem inadequadas a essas datas que são meros produtos do capitalismo e do comércio e que apenas reforçam padrões de uma sociedade capitalista, branca, hétero, cristã, patriarcal e neoliberal, eu sigo não gostando do Dia das Mães.
Começo esse texto parafraseando a minha amiga e parceira de vida Renata Gibelli, em seu texto “Eu odeio o Dia das Mães e odeio com força”. Sim, minha amiga, “o Dia das Mães dispara ausências”!
Hoje, dia 07 de maio, me sinto num enorme processo psicológico para conseguir conviver e sobreviver a esse próximo Dia das Mães, sem me isolar ou isolar meu filho. Mãe solo, preta e periférica, arrimo da minha família como 11 milhões de mães em nossa sociedade (sendo 56% vivendo abaixo da linha da pobreza – dados do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas Ibre-FGV), sigo fortemente não gostando do Dia das Mães. Em mim, esse sentimento se configurou exatamente quando virei mãe. Sempre gostei dessas datas comemorativas e, assim como nos vendem, vivi numa família tradicional onde nos reunimos para comemorar todas as datas num grande almoço em família. Na verdade, existia um deslocamento, pois eu, com 38 anos, era a única que ainda não tinha composto uma “família”. Porém, ser mãe me trouxe a inclusão e, também, o sentimento das ausências.
O meu primeiro Dia das Mães foi traumático! Meu filho estava com 3 meses e eu em um puerpério dificílimo psicologicamente. Passei uma gestação em grande parte solo, pari sozinha. Enxoval, chá de bebê, consultas do pré-natal, ultrassons, tudo solitário. Até a solidão é algo relativo e se encaixa perfeitamente nesse disparador de ausências, pois tive uma família (pais, irmãos, cunhadas) extremamente presentes o tempo todo, inclusive meu parto humanizado, com doula, trilha sonora e escolha de posição de parto, com toda uma equipe de médicas mulheres, fui acompanhada por minha cunhada, esposa do meu irmão. E qual seria a ausência, então? A ausência patriarcal, o pai do meu filho! É como se para exercer a maternidade fosse necessário existir o pai (e não a paternidade). Diante de uma gestação extremamente saudável, aos 39 anos, com estabilidade financeira, profissional e com toda uma rede de apoio familiar e médica, a ausência se faz no padrão da família burguesa, cristã, hétero: a ausência, o pai do meu filho. Essa mesma ausência que percorre o número elevado de abandono paterno que existe em nossa sociedade, diria, é uma doença social. Ausência que destrói todo o sonho do ideal e lindo imaginário de maternidade.
O mais hilário é constatar que em nossa sociedade a solidão materna não se configura apenas em mães solteiras ou divorciadas, a solitude e a ausência estão presentes também nas mães casadas. O modelo de paternidade tóxica, a qual cabe ao homem o sustento da família, o provedor financeiro, enquanto às mães cabe o cuidado com o lar, com os filhos e com o companheiro, não é a realidade. Hoje contamos com a sobrecarga da mulher no mundo neoliberal, no qual “(…) os cuidados com as crianças alcançaram uma situação insustentável atual, na qual são tidos como de inteira e solitária responsabilidade das mães, exemplificado pelas mães chefes de família no Brasil. Em nenhum período histórico anterior, exceto em situações extremas de guerras e calamidades, a maternidade foi imaginada como tarefa individual, ainda que fosse prioritariamente feminina. O adoecimento social decorrente desse fato é notório na clínica psicanalítica. Trata-se de uma sociedade quase obstina desastrosamente a reduzir as responsabilidades dos cuidados das novas gerações as já sobrecarregadas mulheres, de forma catastrófica.” (Iaconelli, Vera – Sobre as origens: Muito além da mãe).
Porém, não vamos entrar na questão da mulher no mercado de trabalho nesse momento ou sobre a sobrecarga da mulher no mundo neoliberal, não é a intenção aqui. Nesse raciocínio, a quem é destinado o Dia das Mães se não ao mercado? A nós, mães da contemporaneidade, das jornadas triplas, do abandono paterno ou da solitude materna, o ideal seria que o Dia das Mães fosse de fato todos os dias. Como seria se todos os dias olhassem para o nosso trabalho invisível diário, fossemos presenteadas, compartilhassem as nossas funções? Como seria se não fossemos julgadas diariamente em várias esferas por sermos mães solos (cabe outra reflexão sobre todos os entraves e interseções que envolvem ser mãe solo em nossa sociedade), e sim enaltecidas como em comerciais que tentam abarcar todos os modelos maternos no Dia das Mães? Como seria se os pais que abandonam, grande parte se diz contra o aborto, não jogassem a “culpa” de gerar um filho somente para as mães?
Para mim, mãe solo, o Dia das Mães é ver postagens com almoços e presentes pagos pelos pais “presentes” elogiando a maternidade que se reduz ao cuidado com os filhos, assim como ver comerciais com os mais variados tipos de mães, na tentativa de encaixar todas nós nesse dia, porém, em nenhuma me enxergo. Já me perguntaram o porquê de tanta raiva para com um dia tão lindo. Você não ama seu filho? Não gosta de ser mãe? Sim, amo muito tanto meu filho como a maternidade, mas, como diz nosso tão amado poeta Sérgio Vaz: “Não confunda briga com luta…” ou “ser feliz não quer dizer que não devemos estar revoltados com as coisas injustiças”. Não chamaria de raiva, chamaria de reflexão, ou de indignação, essa mesma feita por minha amiga em seu texto. Precisamos olhar para as mães invisíveis, mães “das ‘famílias pós-modernas’, que incluem as ‘produções independentes’, os ‘recasamentos’ e as ‘famílias de escolhas’” (…) parâmetros que parecem ser bem-aceitos quando referidos a famílias de classe média ou média alta, mas não acontece em relações às famílias mais pobres” (Rosa, Miriam Debieux, Passa Anel: famílias, transmissão e tradição).
As mães que não receberão presentes, as mães que não poderão estar com seus filhos, as mães como eu que não poderei ostentar um belo jantar, flores, ou uma homenagem nas redes sociais feitas pelo lado paterno, as, 56% de mães abaixo da linha da pobreza que não conseguem acompanhar seus filhos no cotidiano, pois precisam levar o sustento para casa, as mães sem rede de apoio, as mães transexuais ou apenas as mães sem direito ao descanso que prepararão toda a festividade, o almoço para toda a família, ou as mães que sentem o peso de solitude materna, que não conseguem cuidar de si como necessário, pois estão sempre cuidando dos outros, as nossas mães pretas ancestrais que não tiveram o direito a ter uma maternidade por opção, a todas elas e a todas nós, a quem realmente cabe do Dia das Mães?
É claro que homenagearei a minha mãe, assim como é claro que vou amar quando passar a receber homenagens e presentes do meu filho que hoje tem apenas 1 ano, porém, o Dia das Mães para mim, assim como para muitas sempre é e sempre será carregado por ausências e padrões que não nos cabem e não existem de fato no nosso cotidiano. Abraço todas as mães e torço para que essa escrita como a da minha amiga Renata, seja um acolhimento, um abraço e um espaço para as nossas dores da maternidade e também para se pensar sobre a paternidade presente.
Referências e mais informações
Teperman, Daniela; Garrafa Thais; Iaconelli, Vera – Parentalidade. Editora Autêntica, 3°edição.
Iaconelli, Vera – Manifesto antimaternalista: Psicanálise e políticas da reprodução, editora Zahar.
Vaz, Sérgio – Novos Dias.
Vaz, Sérgio – Felicidade – Colecionador de pedras – Editora Globa.
Eliane Ornellas Cardeira, professora de história na rede municipal de São Paulo, psicopedagoga, especialista em Relações para Educação Étnico-Racial.
Imagem: symbl.cc
Uau que texto 👏👏👏👏