O debate sobre a jornada de trabalho é fundamental para organizar o uso do tempo na vida de homens e mulheres, pois a distribuição do tempo é um desafio diário e um dos problemas centrais de todas as sociedades.
A rotina de trabalho sob o regime 6×1 — seis dias trabalhados para um dia de descanso — é uma realidade perversa e desumana para milhões de brasileiros e brasileiras.
Para as mulheres, essa dinâmica é ainda mais perversa com sobrecarga mental, limitação da convivência familiar e do acesso ao lazer e descanso, desigualdade de gênero no mercado de trabalho (menores salários que os homens para funções equivalentes) e dupla ou até tripla jornada de trabalho (trabalho doméstico e de cuidados, trabalho remunerado e estudo), muitas vezes com impacto devastador na saúde física e mental.
Segundo o Ministério das Mulheres e do Trabalho e Emprego (MTE), as mulheres recebem 19,4% a menos que os homens. E, além das 40 horas semanais, também trabalham cerca de 21,3 horas em casa, de acordo com dados de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
No Brasil, o debate sobre a escala 6×1 evidencia desigualdades estruturais que afetam desproporcionalmente as mulheres. Há garantias mínimas na legislação trabalhista, como o descanso semanal, mas não se enxerga e trata a sobrecarga enfrentada pelas mulheres ao conciliar o emprego formal remunerado, o trabalho doméstico e de cuidados não remunerados e a capacitação permanente e/ou pontual (cursos e atualizações e progressão da educação formal).
“Com duplas e triplas jornadas e trabalhando em escalas exaustivas como a 6×1, as mulheres não têm folga, pois com um único dia livre por semana, esse dia, na maioria das vezes, é dedicado a cuidar da casa e da família e, quando termina, já é hora de trabalhar de novo!”
Origem e história de lutas relacionadas à escala 6×1
Em 1940, na gestão do presidente Getúlio Vargas, foi sancionada a Lei n.º 5.452, conhecida como Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que não mencionou a escala do tipo 6×1, mas estabeleceu um limite semanal de 48 horas de trabalho, permitindo que jornadas como a 6×1 fossem adotadas.
O limite atual de 44 horas semanais para trabalhadores com carteira assinada foi definido em 1988, a partir da Assembleia Constituinte que elaborou a nova Constituição Federal. Durante os debates e ao longo dos anos, diversas tentativas de reduzir a jornada não avançaram, como a de 2015, quando o senador Paulo Paim (PT) propôs um projeto de lei para diminuir gradativamente a jornada semanal para 40 e depois 36 horas, mas o processo foi arquivado em 2022, sem votação.
A constituição federal define o limite máximo para jornada de trabalho de 44 horas semanais e oito horas por dia. Há possibilidade de realizar horas extraordinárias com pagamento de, no mínimo, 25% a mais do que a hora normal de trabalho, ou realização de banco de horas, mas dentro dos limites de duas horas por dia e 10 horas por semana dentro das 44 horas semanais.
Hoje, o fim da escala 6×1 está sendo discutido por meio da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da deputada federal Erika Hilton (PSOL), que propõe a implantação do modelo 4×3, com quatro dias de trabalho e três dias de descanso, reduzindo a jornada semanal para 36 horas, e mantém o limite diário de oito horas. A PEC – inspirada no Movimento VAT, Movimento Vida Além do Trabalho – discute o fim da escala 6×1 e visa melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores, colocando o Brasil no centro de debates globais sobre o futuro do trabalho. Na busca da humanização e flexibilização das jornadas, o texto a ser debatido no Congresso propõe alinhar o país a práticas internacionais que priorizam saúde, bem-estar e produtividade dos trabalhadores, resguardando inclusive a redução de jornada hoje vigente em alguns setores onde foi conquistada por meio de negociações coletivas entre sindicatos e empresas e prevê:
● A redução da carga horária semanal.
● Incentivos fiscais para empresas que adotem semanas reduzidas.
● Garantias de direitos trabalhistas sem prejuízo aos salários.
O Movimento Vida Além do Trabalho, em conjunto com a deputada responsável pela PEC, desempenhou um papel crucial ao realizar reuniões com parlamentares e organizar eventos para ampliar o apoio à proposta. A iniciativa reforça o compromisso com a redução da carga horária semanal, preservando os direitos trabalhistas e promovendo maior equilíbrio entre vida profissional e pessoal. Atos em apoio à PEC foram realizados no dia 15 de novembro de 2024, feriado da Proclamação da República, e ocorreram em diversas cidades do Brasil.
Movimentos populares se organizam rumo ao Plebiscito Popular 2025
Por iniciativa das Frentes Brasil Popular e Povo sem Medo e com data marcada para setembro, a proposta é que a população brasileira vote sobre o fim da escala 6×1, com redução da jornada de trabalho sem corte salarial e também a taxação das fortunas, tributando quem ganha mais de R$ 50 mil/mês e garantindo que quem recebe até R$ 5 mil seja isento de Imposto de Renda (IR).
Plebiscitos populares são momentos em que a sociedade civil pode reafirmar a força do poder popular pelo qual os movimentos lutam e seguirão lutando. É quando temos a oportunidade de decidir sobre questões importantes da constituição, sobre leis e decisões administrativas. Além disso, os plebiscitos populares reforçam a necessidade do Estado brasileiro colocar em prática a democracia direta. Para avançarmos na construção de um país democrático, o povo precisa ser participante e protagonista nas principais decisões e nos rumos da sociedade.
O invisível trabalho doméstico e de cuidados
As mulheres não são acometidas somente por escalas perversas como a 6×1 no trabalho fora de casa, mas pela escala 7×0 do trabalho de cuidados de mulheres que carregam o mundo.
A escala 6×1 afeta todas as pessoas pela falta de “tempo para viver”, pois a conta da quantidade de horas necessárias para todas as tarefas não fecha quando se pensa que a pessoa trabalha 44 horas semanais (na escala 6×1), dorme 56 horas por semana (8 horas por dia), gasta 14 horas para ir e voltar do trabalho (2 horas por dia), sobram 54 horas semanais. Mas é que, dessas horas restantes, as mulheres usam quase metade (21 horas) para cuidar da casa e da família e ao fim, são cerca de 4 horas por dia que supostamente sobram mas, essa conta não considera todos os eventos inesperados e perversos no dia a dia e que extrapolam as horas possíveis como, mais trabalho e menos horas de sono, horas extras de trabalho remunerado ou não, maior tempo com transporte público precário e trabalhos de cuidados imprevistos por conta de questões de saúde e acidentes e limitações de mobilidade temporárias e/ou definitivas, que impactam mais fortemente e na grande maioria das vezes na vida das mulheres.
Segundo a Rede Brasileira de Economia Feminista – REBEF, pensando em dados concretos, mesmo com os avanços tecnológicos, uma parte expressiva da classe trabalhadora mundial ainda cumpre jornadas superiores a 48 horas semanais, enquanto outra enfrenta condições de subemprego, com jornadas insuficientes que não garantem sequer a sobrevivência. No Brasil, de acordo com a RAIS (Relação Anual de Informações Sociais) de 2023, 74,1% das pessoas empregadas sob o regime celetista (com acesso a direitos trabalhistas) trabalham 40 horas ou mais por semana. Entre todas as pessoas ocupadas (com ou sem direitos), de acordo com os dados 2ºT de 2024 da PNADc, o percentual é semelhante: 76,4%. Embora as mulheres representem um percentual menor entre as pessoas ocupadas em jornadas acima de 40 horas semanais (71,7% entre mulheres brancas e 65,7% entre mulheres negras), elas são penalizadas pelo elevado número de horas dedicadas ao trabalho doméstico e de cuidados não remunerados, que somam cerca de 21 horas semanais.
Assim, a redução da jornada de trabalho poderia beneficiá-las de várias formas. Por serem maioria entre as desempregadas, a medida pode contribuir para a criação de mais postos de trabalho. Jornadas mais curtas também podem estimular uma maior participação dos homens nas tarefas domésticas, aliviando a carga das mulheres. Além disso, setores onde as mulheres predominam – como indústria, comércio e serviços – frequentemente não permitem acordos de compensação de horas, obrigando-as a trabalhar seis dias por semana com apenas um dia de folga, muitas vezes alternado.
No Brasil, 73,4% das mulheres começaram a realizar tarefas domésticas e de cuidado antes dos 14 anos, mas apenas 9,4% consideram que começaram a trabalhar neste período. Esse seria um demonstrativo de que as brasileiras não veem o desempenho dessas funções como um trabalho. É o que aponta pesquisa realizada pela plataforma Elas Trabalham, divulgada pela revista Marie Claire no 1º de maio de 2024, Dia do/a Trabalhador/a. Essa dificuldade impede que as mulheres reconheçam e nomeiem a exaustão física e mental que suportam ao longo da vida.
A pesquisa buscou mapear como as mulheres enxergam sua mão de obra e se consideram o próprio trabalho como essencial, com ênfase nas atividades ligadas ao cuidado de outras pessoas e da própria casa. Seguem mais alguns dados apurados:
● 56% das mulheres têm histórico de impedimento de trabalho remunerado e, por consequência disto, desvantagem no seu desenvolvimento pessoal, social e financeiro.
● 52% das mulheres não possuem a maior renda da casa e, em contrapartida, 49% sustentam os gastos essenciais da casa, mesmo ganhando menos que os homens.
● 28% tem sua renda formada por duas ou mais ocupações, porém, destas, 48% não possuem a maior renda da casa (42% são mulheres pretas e pardas).
As trabalhadoras no Brasil ainda ganham 20,7% menos do que os homens em 50.692 empresas com 100 ou mais empregados. As informações são do 2° Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios e, se consideradas somente as trabalhadoras negras, a diferença de remuneração se acentua, e elas ganham metade (50,2%) do salário dos homens não negros.
Cerca de 44% dos vínculos de emprego com carteira assinada são de mulheres no Brasil, de acordo com dados parciais do Ministério do Trabalho, que estão em sua maioria nos setores de serviços, saúde e educação. Categorias que têm a escala 6×1 e que, portanto, gera uma sobrecarga absurda. Em São Paulo, Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua do 2º trimestre de 2023, 43,3% das mulheres negras na cidade de São Paulo estão no trabalho informal, enquanto este número em relação às mulheres brancas é de 41,7%. Cerca de 70% das trabalhadoras domésticas são informais e 60% das mulheres autônomas não têm CNPJ ou contribuição previdenciária, de acordo com o IBGE, dados de 2023.
A sobrevivência material, a autonomia financeira e o status social conquistados por meio do lugar no mercado de trabalho não colocou a mulher numa condição de igualdade com o homem, pois não a liberou de nenhum outro encargo feminino, como de dona de casa, mãe encarregada da criação dos filhos e esposa (Hirata e Kergoat, 2007; Kergoat, 2010).
A “divisão sexual” do trabalho é o termo que surgiu na França para tratar da distribuição diferente entre homens e mulheres no mercado de trabalho e também analisar a divisão desigual do trabalho doméstico entre os sexos (Hirata e Kergoat, 2007), e mesmo com as mudanças e reformulação da estrutura familiar, a sociedade ainda considera as ações do marido ou companheiro como “apoio ou ajuda” e não de “compartilhamento” das tarefas. Esse “apoio” nas tarefas domésticas e de cuidados, quando é possível pagar, quase sempre é o serviço de uma outra mulher como empregada doméstica e, na maioria das situações, é trabalho mal remunerado, feito por mulheres pobres, periféricas e negras. Ou seja, o trabalho doméstico e de cuidados que sustenta a vida no dia a dia tem que ser tarefa de todos e inclusive do estado com políticas públicas que tragam os serviços necessários para a manutenção da vida como creches, lavanderias, restaurantes, hortas, centros de cultura e serviços e espaços de cuidados acessíveis, públicos e comunitários para a promoção do bem viver.
A defesa da redução da jornada precisa considerar uma redistribuição dos tempos de trabalho para além da divisão das responsabilidades familiares entre todos os seus membros e como as mulheres realizam parcelas maiores de trabalho não remunerado, será importante buscar evitar que a redução das jornadas, promova o repasse destas horas livres para mais trabalho de cuidado e não pago. Além da redução das jornadas, é preciso pensar estratégias para garantir que esse movimento traga mais tempo livre para todas e todos – não apenas para metade da sociedade.
Alguns debates sobre jornadas de trabalho pelo mundo
Segundo o Portal Lunetas, no Brasil, várias empresas já começaram a testar a semana de quatro dias. A iniciativa faz parte de um estudo da organização 4 Day Week Global, que conduz testes mundiais sobre a carga horária de trabalho reduzida.
Um estudo de instituições de emprego americanas e francesas mostrou que 73% dos brasileiros acreditam que “uma semana de 4 dias de trabalho melhoraria a produtividade”. Desse modo, as consequências seriam também a redução do estresse e “maior lealdade à empresa”, com a diminuição das faltas.
Entre 2015 e 2019, um dos maiores testes piloto de semanas de trabalho mais curtas foi realizado no Reino Unido e na Islândia. Segundo a CNN Business, esses testes não apontaram queda na produtividade, mas sim o aumento no bem-estar dos funcionários. Portugal e Inglaterra são outros exemplos que têm empresas na escala 4×3 por meio de experimentos sociais.
Já na Escócia, o assunto foi pauta de promessas políticas em que os trabalhadores terão as horas reduzidas em 20% sem sofrer redução de salários. O Governo apoiará as empresas participantes com mais de 11 milhões de euros. De acordo com uma pesquisa do Institute for Public Policy Research, no país, 80% das pessoas responderam que melhoraria muito sua saúde e felicidade.
Reflexões
Segundo dados do Dieese, a reforma trabalhista de 2017 acentuou a precarização dos dispositivos relacionados ao tempo de trabalho e disseminou o uso da jornada 12X36h (12 horas de trabalho seguidas por 36 horas de descanso), que deixou de ser caracterizada como exceção e pode ser, inclusive, negociada individualmente. Também incentivou as modalidades de trabalho intermitente e trabalho parcial, e possibilitou a implementação da terceirização irrestrita e teletrabalho, entre muitos outros prejuízos e retirada de direitos, Diante dessa falta de limites para a exploração através da jornada de trabalho, o resultado foi o crescimento de jornadas de trabalho perversas como a 12×36 e a 6×1.
Importante lembrar que o Dia do Trabalhador é celebrado em 1º de Maio para marcar uma greve geral que reivindicava justamente a redução da jornada para 8 horas diárias, em Chicago, em 1886.
Com a conquista do fim da escala 6×1 e melhores jornadas de trabalho, será fundamental fortalecer os sindicatos para reduzir a pressão por acordos com previsão de bancos de horas e contratações informais e precarizadas. A redução da jornada e sua regulamentação também cria espaço de oportunidades para trabalhadores subocupados, desempregados e/ou já em situação de desalento.
A comparação que vem viralizando é em relação ao discurso de alguns parlamentares que não querem assinar a proposta da PEC e é de que o fim da escala 6×1 “prejudicaria a economia”, assim como também era dito que a abolição da escravidão, a instituição do salário-mínimo e do décimo terceiro e de conquistas históricas da classe trabalhadora também “acabariam com a economia”.
Questionar os mecanismos que fazem com que as mulheres estejam todo o tempo disponíveis para os outros é um caminho para articular as resistências que precisamos construir e fortalecer. A luta pela autonomia das mulheres envolve um processo permanente de ampliação da consciência feminista e desalienação do nosso corpo, vida e trabalho.
A crítica feminista ao processo de mercantilização da vida é muito potente porque ajuda a entender como funciona a engrenagem do sistema capitalista, patriarcal e racista. O capitalismo se reestrutura permanentemente usando os mesmos mecanismos violentos de acumulação que estavam em sua origem: a exploração do trabalho, a apropriação das terras e da natureza, o controle sobre o corpo das mulheres, a violência e o poder militar.
Como diz a companheira Maria Fernanda Marcelino, da Marcha Mundial das Mulheres, na coluna SempreViva do jornal Brasil de Fato, a desigualdade no mundo do trabalho escancara uma das maiores contradições do nosso tempo. Enquanto milionários acumulam fortunas recordes, a classe trabalhadora – especialmente mulheres – ainda enfrenta jornadas exaustivas, como a escala 6 x 1, salários muito mais baixos e a ausência de proteção social.
Vamos à luta! Seguiremos em marcha para que exista vida e bem viver para além do trabalho.
Referências e mais informações
- https://www.cesit.net.br/wp-content/uploads/2024/12/Nota-Jornada-6×1-REBEF.pdf
- https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2025/primeirodemaio.pdf?fbclid=IwY2xjawJ_H0RleHRuA2FlbQIxM
- https://blogfca.pucminas.br/colab/o-peso-da-escala-6×1-na-vida-e-na-saude-das-trabalhadoras/?amp=1
- https://www.brasildefato.com.br/colunista/sof-sempreviva-organizacao-feminista/2025/04/25/para-acabar-com-a-pobreza-repartir-a-riqueza-reorganizar-o-trabalho-e-socializar-os-cuidados/
- https://www.sof.org.br/wp-content/uploads/2022/08/sof_trabalho_corpo_e_vida_das_mulheres.pdf
- https://www.sof.org.br/wp-content/uploads/2017/02/Cartilha-conservadorismo-web-1.pdf
- https://www.sof.org.br/wp-content/uploads/2021/06/Juntas-e-misturadas_V7.pdf
- https://lunetas.com.br/iniciativas-que-consideram-o-trabalho-de-cuidado-das-mulheres/
Imagem: Elaine Campos/SOF