Notas para problematizar e pensar sobre questões LGBTQ+. Por Coletivo LGBTQ+ do Grupo Nzinga de Capoeira Angola

O Projeto Bapho na Roda: Gingando por Liberdade é uma iniciativa do Coletivo LGBTQ+ do Grupo Nzinga de Capoeira Angola, contemplado pela 1a Edição do Programa Municipal de Fomento à Linguagem de Cultura Capoeira. Reunimos capoeiristas, artistas, pesquisador+s, educador+s e demais pessoas interessadas nesta proposta que pretende fomentar a troca de experiências e mobilizar a comunidade, sobretudo a da capoeira, para a presença histórica das pessoas LGBTQIAPN+ na luta por direitos, na capoeiragem e seus constantes desafios de permanência, salientando a interseccionalidade das lutas por liberdade. Trata-se de uma proposta de caráter educativo da capoeira, capaz de formar capoeiristas voltados/as/es à atuação no fortalecimento das lutas antiLGBTfóbicas, de caráter antirracista e feminista, denunciando e enfrentando expressões de violência vivenciadas pelas pessoas LGBTQIAPN+ na capoeira (pequena roda) e na sociedade (grande roda). 

Na penúltima semana de maio, estivemos no Jardim Miriam Arte Clube (JAMAC), onde realizamos um ciclo de formação contando com a presença de capoeiristas, da região e de outras localidades, além de outras pessoas interessadas na temática.  Ficamos muito felizes e agradecides pelas trocas e construção de rede nesse encontro e esperamos que este material possa contribuir para a ampliação das discussões sobre o enfrentamento de opressões. 

Por que fizemos este material?

A primeira versão deste material aconteceu em novembro de 2019, durante o I Encontro de Capoeiristas LGBTQ+ realizado em Buenos Aires. A criação deste material surge do desejo e da necessidade do coletivo LGBTQ+ do Grupo Nzinga de Capoeira Angola de socializar, debater informações e ferramentas relacionadas à sexualidade e identidade de gênero. 

Circulamos essas linhas mobilizades pela capoeira e em busca da construção de espaços e comunidades possíveis para corpos e existências que não se encaixam nos padrões da cisheteronormatividade. Gingamos na grande e na pequena roda propondo um jogo de liberdade e respeito, pois, como capoeiristas, nos entendemos como fazedores de nossas comunidades. Como levamos adiante essas construções, é sempre uma questão em aberto e uma nova oportunidade para estabelecer relações respeitosas.

Com frequência, nós, pessoas LGBTQ+, somos expostas a situações que vão desde a infantilização, invisibilização e humilhação, até a violência física e sexual, podendo se estender até a morte. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), em 2023 o Brasil foi o país com o maior número de mulheres trans, na sua maioria negras, assassinadas no mundo por 15 anos consecutivos. Desnaturalizar estas diferentes formas de violência, erradicar o racismo, a transfobia, a lesbofobia, e todo tipo de violência por preconceito, assim como abrir o jogo às palavras, ao reconhecimento mútuo, à problematização dos privilégios da cisheterossexualidade e da branquitude, são algumas das muitas pontas de um emaranhado que urge ser desenrolado.  

O capitalismo ocidental divide a sociedade em grupos, isola e compartimenta. Isso limita nossas possibilidades e potencialidades. A capoeira é um exercício de resistência a esse isolamento. Na roda da capoeira estamos pessoas de diferentes classes sociais, corporalidades, cores de pele, orientação sexual e identidade de gênero. Em tempos em que as diferenças se aplanam, onde a dissidência se silencia, onde as desigualdades são invisibilizadas pelo relato da meritocracia, necessitamos criar pontes e tecer alianças. Este material é um convite a isso. 

Violência estrutural / Violência conjuntural

Quando falamos de cissexismo, heterossexismo e racismo estamos nos referindo às violências que são estruturais, ou seja, fundantes das sociedades em que vivemos, produzidas e reproduzidas pelos estados e naturalizadas no senso comum. Estas violências se manifestam cotidianamente e muitas vezes são desconsideradas ou minimizadas pelas pessoas que as exercem, como é o caso do racismo, do machismo, da transfobia, etc. Estas violências também se traduzem em termos de desigualdades no acesso ao sistema de saúde, ao trabalho, à educação. Também na forma como se distribui a violência de rua, doméstica e aquela exercida pelas forças repressivas do Estado. Assim, a violência estrutural implica em desigualdades estruturais. Neste contexto, a meritocracia, ou seja, a ideia de que todas as pessoas têm as mesmas oportunidades e que alcançar certos objetivos depende apenas das habilidades de cada ume, é uma fantasia que apenas reforça e invisibiliza as desigualdades. Estas violências estão presentes em todas as sociedades e se tornam mais agudas em determinadas conjunturas, especialmente, com o avanço dos setores conservadores, supremacistas e de ultradireita. Em países como Argentina, Chile, Colômbia, Uruguai, Brasil, Bolívia, Equador, mas também nos Estados Unidos, Espanha, França, por mencionar só alguns, assistimos ao avanço de setores que promovem os discursos de ódio, da supremacia da família heterocentrada, branca e cristã. Não se trata de discursos nem de políticas democráticas. Longe de ser uma simples manifestação de “liberdade de expressão”, esses discursos e políticas colocam em perigo nossa integridade, saúde e existências. 

Como capoeiristas de nosso tempo, queremos atuar sobre nossas realidades, contribuir com a construção de sociedades mais livres e respeitosas, assim como a multiplicação de imaginários em relação ao futuro por vir. Por isso apostamos neste material de difusão e no intercâmbio de narrativas das nossas diferenças, para abraçarmos a elas e semearmos potências.

Glossário amigue

A partir do ativismo LGBTQ+, tem-se elaborado distintas categorias que podem nos ajudar a desnaturalizar e problematizar a violência estrutural, assim como nossos privilégios individuais. Aqui compartilhamos alguns. Há muito material disponível para ampliar estas ideias!

Gênero: matriz cultural (conjunto de elementos, valores, crenças, tradições e práticas que formam a base de uma cultura ou sociedade) a partir da qual as pessoas se constroem como homens-masculinos-heterossexuais e mulheres-femininas-heterossexuais. A coerência e continuidade entre esses termos está regulada pelo gênero. 

Heterossexismo: regime político que coloca a heterossexualidade como o modo de relacionamento sexual natural, normal e válido. Ao mesmo tempo, coloca aos que não nos ajustamos nesses parâmetros no lugar da doença, do mal e/ou do anormal.  

Cissexual ou pessoa cis: todas aquelas pessoas que vivem em concordância com o sexo designado ao nascer. 

Cissexismo: regime político que estabelece que as identidades das pessoas cis são mais verdadeiras e naturais do que as das pessoas trans. O conceito de cissexismo nos ensina que o sexo, assim como as identidades de gênero de todas as pessoas (cis e trans), são resultado de longos processos e complexos, que não ocorrem de forma mágica ou instantânea. O problema que esse conceito expõe é que o cis é considerado “natural”, tendo uma infinidade de privilégios, em contraposição ao trans. Decidir mudar ou manter o sexo atribuído ao nascer é uma das muitas decisões que tomamos sobre nossos corpos e vidas. As pessoas trans não são, nem têm, um sexo menos verdadeiro do que as pessoas cis. Supor que o único sexo verdadeiro é o atribuído ao nascer é cissexista.

Transfobia: violência que se exerce de múltiplas formas sobre pessoas trans, desde piadas, estigmas, rejeição, não reconhecimento, invisibilização, podendo se desdobrar em violência física e assassinatos. Os transfeminicídios são uma realidade brutal que precisamos transformar com urgência.

Homolesbobifobia: violência exercida sobre lésbicas, caminhoneiras, afeminadas, bichas, viados e bissexuais pela sua sexualidade, formas como se expressam e põe em prática o desejo sexual e/ou também pela sua expressão de gênero. Chama-se expressão de gênero o modo pelo qual o gênero se manifesta, ou seja, a como se expressa aos olhos de outres. 

Essas e outras questões permeiam o debate do ciclo de formações e que desencadeará na produção de um guia ao final do projeto, voltado especificamente para as novas gerações de capoeiristas que estão se aproximando ou se aproximarão da capoeira. O ciclo de formações se encerra com um evento principal nos dias 30/08, 31/08 e 01/09, em que reuniremos capoeiristas, artistas, pesquisador+s, educador+s e demais pessoas interessadas em atividades que pensam a capoeira e elementos ao seu redor, articulando a tradição com os sentidos de liberdade para todes. 

Imagens: Coletivo LGBTQ+ do Grupo Nzinga de Capoeira Angola

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Escrito por Coletiva de Mulheres

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