Com potência e afetividade, Sulamita de Paula Martins transborda as memórias ancestrais de sua família e deixa sementes no caminho

A tessitura da memória a partir da ancestralidade ao considerarmos que ancestralidade é o ontem, o hoje e sobretudo, o amanhã, portanto, os que vieram antes, os que já estão e os que ainda chegarão. Os fios das experiências que constituem a identidade cultural, abrindo fendas nas memórias e lembranças, bordando fios de tecnologia ancestral, saberes, novos valores e rotas para o povo e cultura afro-brasileira, descendentes da diáspora africana forjada nas lutas diárias no plantio em prol da vida e continuidade existencial. Transbordadas na trajetória de vida de nossa entrevista, não se trata somente de ressignificar, mas de tirar da invisibilidade as potências e legado do povo africano.

Para transbordar suas memórias e trajetórias, a Coletiva convida Sulamita! 

Estou como Sulamita de Paula Martins, atualmente, mulher preta, divorciada e mãe de um casal de filhos, Paulo e Naomi.  

Meu nome é Sulamita de Paula porque o meu pai era um nordestino analfabeto e tinha o desejo de aprender ler e escrever e aí começa a história do meu nome.  Era um piauiense destemido que passou pelo interior de São Paulo, Rio Claro e depois veio para capital em busca de uma vida honesta e digna.  

Entrou no Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), conheceu uma professora chamada Sulamita que ensinou ele a ler e escrever. E com isso ele começou a trabalhar e não precisava mais pegar restos de comida na feira para sobreviver em meio a tantos desafios.  Ah! Detalhe importante: a origem do meu nome veio através da gratidão do meu pai para essa professora Sulamita, e o de Paula porque sou filha do Paulo, ele quis deixar a semente plantada.  

Nessa mesma época ele conheceu uma senhora que o ajudou muito, dando comida pronta porque ele não tinha onde cozinhar devido a situação precária do cortiço onde morava.  O meu pai, o Paulo, conheceu minha mãe Josefa, mulher trabalhadora, determinada, baiana nascida em Alagoinhas, filha caçula de treze irmãos e verdureira.  Determinada a vencer, veio para São Paulo na década de 60 para melhorar a vida, veio junto com sua irmã para trabalhar como empregada doméstica.  

No início, trabalhou em uma casa em que não comia, e ela passava o dia com pão. Conversando com uma amiga, descobriu outro lugar que precisava de empregada. E assim, lá foi ela negociando o salário dela, que por sua vez, segundo ela, dobrou o valor e ela tinha comida à vontade.  A patroa Geraldina Marx, diretora no tribunal justiça, orientou a minha mãe a colocar os seus salários na poupança porque via que ela guardava o seu dinheiro em uma caixa no seu quarto e não tinha rendimento nenhum.  Ainda insatisfeita, Geraldina incentivou a minha mãe Josefa a comprar um terreno, onde foram geradas notas promissórias e ela pagava com uma segunda mão de obra que era fazer coadores de pano para um amigo da dona Geraldina que tinha uma mercearia.  

Minha mãe conheceu meu pai quando comprou o terreno dela. O meu pai ia perder o terreno dele, porque tinha muitas notas promissórias atrasadas, ele havia comprado meio a meio com irmão que não pagavam devido às dificuldades deles.  Minha mãe casou-se com meu pai, e sugeriu que meu tio trabalhasse na construção da casa, e ela pagava as notas promissórias atrasadas deles.  E assim, foi feito, até que ele vendeu a outra parte do terreno para os meus pais.  

Meu pai era Umbandista, praticava a caridade, ajudava pessoas carentes, em alguns momentos as situações financeiras ficavam apertadas para manter o pagamento da água, luz, café, velas, banhos e etc …  E novamente, minha mãe atua criando um cartaz dizendo quais seriam os valores dos banhos, e dos fundamentos ali praticados, e nunca mais faltou nada. As doações eram feitas, o seguimento espiritual do meu pai sendo realizado a todas pessoas que chegavam pedindo ajuda.  

Meu pai trabalhou por 20 anos em uma empresa que se chamava K- refresco, que fazia doces como: confete, bala soft, sucos em pó e etc … Nas festas de Cosme e Damião, eles doavam doces, minha mãe fazia bolos, caruru e vatapá e montava a mesa.  Com 7 crianças para comer primeiro, e depois todo mundo servia-se à vontade, era uma grande festa, que saudade!!! 

 É daí que vem a minha raiz, e quem sou eu! Uma menina periférica, preta, filha de Paulo e Josefa, nordestinos e macumbeiros.  Não posso deixar de citar a abolição dos meus avós que traziam a marca indigna de um sobrenome Leite, para marcar a liberdade da escravidão apagando a história. A minha avó chamava-se Febronia Leite e o meu avô Zeferino Leite, isso era a forma organizada de dizer que eles eram alforriados de uma escravidão marcada de anulação da própria identidade.  

Me tornei mulher, fui buscar conhecimentos e desenvolvimento na Casa espírita de Dr. Bezerra de Menezes, fiz o curso e finalizei em 2019.   Exercitei a olhar o meu EU, e a minha essência, e nessa caminhada fiz trabalhos voluntários como, atendimentos como Coach, entregava sopas na rua, e dava palestras na casa.  Tudo isso me fazia muito feliz, só que eu buscava mais na espiritualidade.  

Comecei a ir nas giras no Ilê Axé Oxum Opará Caboclo Ubirajara, para entender mais o meu caminho, porque tinha anseios e entendia que alguma coisa faltava, mas não sabia o que era, e qual direção tomar.  E um dia, a ancestralidade preparou tudo do jeito que é, fui suspensa pelo caboclo Ubirajara dessa casa, e hoje sou feita no Santo e no Axé, há exatamente 9 meses pela Mameto Sambaleci (sacerdotisa e liderança espiritual da casa).  Atualmente, darei continuidade às sopas, aos atendimentos com terapias holísticas, palestras, rodas em grupos e todas terças-feiras estarei no espaço em frente à casa de Cultura Cidade Ademar e Pedreira tecendo a continuidade das raízes dos meus pais jogando sementes para que mais frutos doces e maduros nasçam através de mim. Continuo em busca de mim…

Imagem: Acervo pessoal da entrevistada

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Escrito por Coletiva de Mulheres

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